Os presentes da Consciência Negra

Foto: Jorge Bispo

No Dia da Consciência Negra assisti ao espetáculo “O Topo da Montanha”, que descreve os diálogos entre o líder negro Martin Luther King e uma camareira, na noite anterior ao assassinato do ativista político norte-americano.

Por Felipe da Silva Freitas , do Brado Negro

Escrita por Katori Hall, jovem escritora negra norte-americana, e traduzida por Silvio Albuquerque, diplomata negro brasileiro que foi Diretor da Divisão de Temas Sociais do Itamaraty, a peça é estrelada por Taís Araújo e Lázaro Ramos e marca o encontro de talentosos profissionais – negros em sua absoluta maioria – com diferentes tipos de colaboração à luta contra a discriminação racial no país.

O Espetáculo é mais do que uma encenação sobre a luta pelos direitos civis dos negros no Estados Unidos ou sobre os desafios e possibilidades da luta antirracista norte-americana, ainda que estes pontos estejam evidentes ao longo do texto. O grande debate proposto pela peça é sobre amor, medo, afetos, sonhos e humanidades, como já destacou a jornalista e ativista do movimento negro Ana Flávia Magalhaes Pinto, em texto escrito por ocasião do lançamento da montagem. (http://porfalaremliberdade.blogspot.com.br/2015/10/o-topo-da-montanha-e-afirmacao-da.html )

Desde a forma afetuosa com que o elenco recebe ao público antes do início do espetáculo até à profusão de fotos, beijos e histórias partilhadas ao final, passando pela forma completamente extasiante com que o elenco interpreta o texto; tudo aponta para um “modo diferente de fazer arte”; para um teatro engajado, que, preocupado com as pessoas, envolve e sensibiliza para o desafio de parir um mundo melhor. Uma reflexão precisa sobre como o racismo hierarquizou nossas noções de poder, beleza e prestígio.

A atuação de Taís Araújo, que se consagra no rol das grandes atrizes brasileiras, merece muito destaque; o teatro cheio de pessoas negras, felizes com a possiblidade de um texto e de atores que também os representassem soma-se à decisão política de, no coração da elite paulistana (no prestigiado Teatro da FAAP em São Paulo), realizar arte negra provocando os limites estéticos e políticos da branquitude monótona e violenta que tem sequestrado secularmente a cultura nacional. O espetáculo é um bom debate sobre a possibilidade de dialogar com as maiorias e de questionar o poder hegemônico por meio da arte.

A montagem brasileira de “O Topo da Montanha” nos lembra do quanto as pessoas negras têm sido aniquiladas pelos discursos eugênicos sobre cultura nacional, e, por outro lado, recorda que os “temas da militância negra” são temas universais porque são temas referentes às formas de reconhecimento e representação do humano e referentes às contradições presentes em cada um é cada uma de nós: medo, vacilação, coragem, crítica, altivez.

Num tempo em que as violações aos corpos negros são a regra geral; que jovens negros são mortos aos milhares e em que a presença negra nos espaços públicos continua a provocar reações de brutal violência e discriminação é revolucionária a arte que – pelo corpo e pela expressão das pessoas negras – afirma que o amor é, em si, um ato radical e revolucionário.

O Topo da Montanha questiona os sistemáticos processos de desumanização a que as pessoas negras vêm sendo submetidas e indica, que, se falar de racismo é falar de dor e covardia; falar de antirracismo é falar de amor, de cuidado, de carinho e de paixão.

Estes foram, para mim, os presentes de Lazaro e Tais no Dia da Consciência Negra.

Felipe da Silva Freitas é mestre em direito pela Universidade de Brasília e pesquisador associado do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira e Santana.

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