Oswaldo de Camargo: “Sou um negro brasileiro”

FONTEPor Roberta Flores Pedroso e Luís Augusto Fischer, do Matinal
Oswaldo de Camargo (Foto: Pedro Borges/Alma Preta)

Um elo entre as gerações: assim é visto o escritor Oswaldo de Camargo por muitos autores e autoras negras. Filho de lavradores muito pobres, nasceu em 1936, em Bragança Paulista – SP. Mesmo nascido muito depois da abolição da escravatura, o escritor viveu em ambiente com todas as marcas do mundo escravocrata, que estão em sua obra de modo vivo. Com a morte dos pais ainda na infância, morou em instituições de caridade, no interior. Quando adolescente estudou em seminário católico, o que lhe rendeu uma formação intelectual sofisticada, mas acabou não seguindo a carreira eclesiástica – em sua percepção, o caminho estava bloqueado. Em entrevista ao site Geledés, ele observou: “A noção de que existia, sim, preconceito na sociedade brasileira mostrou-se clara para mim nos meus 16 anos”.

Esta passagem foi marcada por uma forte crise emocional, como também reforçava a importância da melanina como passaporte para o futuro deste que é hoje um dos poucos autores negros, da sua geração, ainda em atividade. Foi na escrita que encontrou uma forma de tornar-se visível diante desta sociedade que muito o rejeitou. Desta forma tem início a trajetória da produção literária de Oswaldo de Camargo, quando antecipa em sua escrita a voz e a consciência de indivíduos marcados pelo pertencimento a uma coletividade negra. Além disso, foi um dos principais protagonistas do debate público em torno da presença do negro na literatura, enquanto autor, por meio de obras, palestras, matérias em jornais e pesquisas que realizou, desde os anos 50.

O fato de participar de muitas atividades sociais distintas, e não raras vezes inconciliáveis, permitiram ao escritor Oswaldo de Camargo desenvolver um olhar afinado e ambivalente que sintetiza, em certa medida, os dilemas e os horizontes das possibilidades do artista negro.

Em 1955, inicia sua participação em entidades negras que fariam história na vida do cidadão afrobrasileiro, como a Associação Cultural do Negro, em São Paulo. É também neste período que as atividades literárias do autor começam a tomar corpo, quando lança seu primeiro livro de poemas, Um homem tenta ser anjo, de 1959. Ao mesmo tempo, inicia sua participação na imprensa negra paulista. Em meados da década de 70, no tempo da ditadura militar, o escritor abandonou o associativismo negro, para mais tarde, junto com outros pares, fundarem um dos espaços literários mais importantes para a divulgação de escritores negros, que sobrevive até os nossos dias: o marcante trabalho dos Cadernos Negros e, na próxima década, o Grupo Quilombhoje, ambos sediados em São Paulo.

A passagem de Camargo por esses dois grupos foi breve. Ainda que tenha publicado poemas e contos nos números iniciais dos Cadernos, o autor rompeu com os parceiros, por discordar dos critérios de seleção de textos. Com sua convicção e persistência, Camargo manteve-se no ativismo literário da literatura negra, tendo organizado e participado de antologias literárias nacionais e internacionais. Para ele, a qualidade estética literária deveria preceder o ativismo, não menos importante, mas que não definiria a escrita negra.

Seis filhos: Oswaldo de Camargo Filho, produtor cultural e músico; Maurício Nascimento de Camargo, músico; Marcos Nascimento de Camargo, ou Marcos Munrimbau, músico e arte-educador; Márcia Helena Nascimento de Camargo, enfermeira; Daniel Nascimento de Camargo, consultor do grupo Itaú; e Sérgio Nascimento de Camargo, jornalista. (Sérgio é o atual presidente da fundação Palmares e tem posições extremadas em bem outra direção: quer abolir o feriado de 20 de novembro, dedicado a Zumbi dos Palmares – uma conquista simbólica da geração do pai –, e se define como “um negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”, como registrou a Folha de S. Paulo. Perguntada, a família prefere não se pronunciar sobre o tema.)

Há na literatura de Oswaldo de Camargo uma espécie de convicção em torno do fazer literário vinculado a uma missão intelectual, sobretudo ligada à experiência de ser negro e ao impacto disso na produção literária, ligadas a momentos-chave da formação de uma outra literatura, escrita por homens e mulheres negras.

Foi pela mão do editor Luís Paim Gomes, da editora Sulina, que eu, Roberta, conheci Oswaldo de Camargo Jr, o Wadico, e por intermédio deste tive o privilégio, junto com o professor Luís Augusto Fischer, de mantermos contato com o escritor Oswaldo de Camargo. O resultado é a entrevista abaixo, feita por email.

Parêntese – De sua primeira infância, o senhor guarda qual lembrança?

Oswaldo de Camargo – Sou um negro brasileiro. Quando nasci, era mais fácil neste país prever a via pela qual transitariam o corpo e a sombra de um recém-nascido preto. Nem precisava pôr-se à espreita, observando o seu trajeto, porque quase sempre era pouco interessante ou mesmo enfadonho, de tão repetitivo. Será entre os demais, um brasileiro comum, nada soerguido acima do chão que recolheu suas primeiras pegadas; a pretidão que o realça – o seu mais notado emblema – não se enveredará por caminhos imprevisíveis. No geral, era isso no meu tempo de nascimento.

Essas são as primeiras linhas do meu livro Raiz de um negro brasileiro (Ciclo Continuo Editorial, 2015), que é um esboço sobre meus primeiros anos em Bragança Paulista.

Parêntese – Em que ano o senhor nasceu? Como era sua vida com seus pais?

Oswaldo de Camargo – Nasci em 1936, na Fazenda Sinhazinha Félix, distante uns 8 quilômetros da catedral de Bragança, que fica no centro da cidade. Sou filho de caipiras analfabetos, apanhadores de café. O que escrevo está marcado fundamente por essa realidade. Nos meus livros de ficção, sobretudo no romance A Descoberta do Frio (Editora Ateliê, 2ª edição, 2011) ou na novela Oboé (Com-Arte, USP, 2014), a paisagem ficcional que aparece em abundância é reminiscência do que vi na Fazenda Sinhazinha e arredores. A minha primeira visão de mundo. Meu pai nasceu em Tuiuti (SP), a 20 quilômetros de Bragança, em 1910, portanto 22 anos após a Abolição. Minha mãe era 5 anos mais nova, viveu apenas 27 anos; a tuberculose a levou, em 1942, quando eu tinha 6 anos.

Parêntese – A escrita e a infância estão associadas em quais aspectos?

Oswaldo de Camargo – Essas lembranças me fizeram ser alguém que escreve sobretudo diante de memórias da infância, uma infância dolorosa que muitas vezes eu procuro transfigurar. Em 2017, escrevi para o livro A Personagem (Editora Contexto, mesmo ano), da professora Beth Brait, da PUC de São Paulo e da USP, a pedido dela, um depoimento para dizer por que eu escrevia. Tratava-se da segunda edição do livro, que teve respostas de escritores como Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga, Ignácio de Loyola Brandão, Marilene Felinto e tanta gente mais de renome.

Transcrevo algumas linhas desse depoimento: “Os seres que ponho na minha ficção, alguns nascem na minha cidade, Bragança Paulista, a Cidade Poesia. A criança sem nome do conto “Maralinga”, de O carro do êxito, só podia sair de uma cidade como Bragança, que na ficção ganha o nome de Rosana. Acredito que se meu pai não tivesse sido um apanhador de café analfabeto e fazedor de música caipira, na Fazenda Sinhazinha Félix, no bairro de Bocaina, em Bragança Paulista, eu jamais seria pego pela obsessão de escrever a novela Oboé, povoada de potentados da época áurea do café, colonos alemães, nem imaginado um povoado, Pretéu, em que só viviam pretos”.

Sou, como se pode deduzir, um autor que escreve autoficção. Nela, parte da realidade vivida se mistura com a ficção. Isso venho fazendo desde o meu primeiro livro, de 1972, O carro do êxito. Naquele tempo, o que eu escrevia não era ainda chamado de autoficção, como vem sendo denominado a partir de uns anos para cá. O intuito é o de trazer uma experiência negra a partir da minha.

Parêntese – Como começa a acontecer a sua escrita?

Oswaldo de Camargo – Em alguns aspectos, tive duas orfandades. Como já expus em algumas linhas acima, em primeiro lugar, a orfandade pela perda dos pais, quando pequeno. Após, a orfandade de confrontar-me, nos anos de formação, com uma cultura sempre passada pelo crivo da cultura do homem branco. Ausência negra, que, ironicamente, é um dos temas de minha literatura negra. Afinal, a quem estou falando? Então, o que escrevo, além da tentativa de amparar-me no repertório de lembranças de minha infância, um tanto dolorosa, é uma resposta intelectual e espiritual à deslealdade brasileira que me apareceu quando me deparei com o racismo, quase sempre escamoteado. Por isso é que teimo em nomear o que escrevo de Literatura Negra. Isto é, uma Literatura com que — a par de outras circunstâncias, como o fato de eu ter nascido em Bragança Paulista, a Cidade Poesia, 42 anos depois da Abolição; de ser sexualmente um homem, um caniço pensante de que falava [Blaise] Pascal; a par de ter uma formação rigidamente católica, etc. — trago ou procuro trazer, nitidamente destacada, em plena luz, a minha experiência de homem negro. Hoje, alguns estudiosos de literatura e história, que versam a questão negra, estão notando esse aspecto do que escrevo desde os meus 22 anos. Tempo em que frequentei a Associação Cultural do Negro, em São Paulo.

Parêntese – Uma escrita negra e para os negros?

Oswaldo de Camargo – Sem dúvida, e é natural. Eu dialogo sobretudo com os que se parecem comigo. E daí a indagação: quantos negros se parecem comigo? Mas a questão se expande: como escrever para fazer transbordar a minha experiência negra em grau de universalidade, para pessoas que não são? A minha obsessão é a de ser entendido como um músico. Por todos: negros, brancos. Será que é possível?

Parêntese – A busca dessa compreensão, que faz transbordar a experiência negra, passa de que maneira pela sua formação?

Oswaldo de Camargo – Tive a sorte de viver, dos meus 17 aos 20 anos, um tempo em que a cidade de São Paulo propiciava contatos intelectuais com mais facilidade. Cheguei, em 1954, de São José do Rio Preto (SP), onde tinha sido seminarista com uma formação dada por padres holandeses. Duas experiências inesquecíveis já me haviam marcado. A primeira: o racismo (eu tinha sido recusado em todos os seminários menores existentes em São Paulo, na época, por ser um menino preto). A segunda: de ser por alguns anos o único aluno negro entre 35 brancos.

Parêntese – Como foi o tempo de seminário?

Oswaldo de Camargo – Em alguns aspectos eu me tornara, por acaso, uma peça de laboratório racial. Digo isso porque, à minha chegada, o reitor do seminário falou sobre o que aconteceria ao aluno que tivesse comportamento preconceituoso comigo. O apontamento do reitor, diferenciando-me, acabava marcando o preconceito. Mas o seminário me deu um arsenal de conhecimentos que muitos negros gostariam de ter para conseguirem ser respeitados. Isto: respeitados.

Dos 13 aos 17 anos, no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto (SP), estudei Latim, Português (todos os dias), Francês, Grego, música. Aprendi harmônio, uma espécie de pequeno órgão, que se usava na maioria das igrejas; com 16 anos tocava na catedral da cidade, dedicada a São José. Além de preto, eu era o único aluno chegado de fora de São Paulo. Despertara curiosidade até o modo de eu pronunciar certas palavras, o que era notado e comentado.

Parêntese – O senhor chegou à capital em 1954, numa época eufórica da cidade. O que dá para contar sobre esses anos, em relação a sua carreira literária?

Oswaldo de Camargo – Quando cheguei a São Paulo, no ano do quarto centenário da cidade, 1954, a Associação Cultural do Negro tinha saído da Praça Carlos Gomes e se mudara para o Prédio Martinelli, hoje Edifício América, sediando três salas no 16º andar de um prédio que perdera muito do antigo fastígio.

Em relação a saber como era o ambiente em que vivia o escritor negro, em número reduzidíssimo, pode-se dizer que o ambiente privilegiado eram as associações culturais. Havia um bom número dessas associações na Capital. Mas quero me ater brevemente à, acredito, mais importante, em muitos aspectos memorável, que é a Associação Cultural do Negro. A Associação foi a minha faculdade negra. Em se tratando do povo negro, lá preenchi lacunas que minha formação de seminarista me deixara. Nos meus 22 para 23 anos, me abismava diante de intelectuais de que eu havia vagamente ouvido falar antes de conhecer a Associação.

Em 1960 fui redator chefe da revista Níger, da Associação. Puxei muito para o lado da Literatura, o que era normal. Visto que escrever, declamar, discursar, em suma, coisas do espírito, faziam parte do arsenal para se conseguir respeito. Minha formação de seminarista e músico (além de tocar piano eu compunha também) foi recebida com júbilo. Eu me tornei uma garantia de respeito intelectual, não só em São Paulo, mas em cidades do interior, como Ribeirão Preto, Limeira, Piracicaba, Campinas. Em vez de “eu me tornei”, devo deixar claro: a moldura em que eu me achava impunha, só por ela mesma, respeito.

(Foto: Arquivo Pessoal)
(Foto: Arquivo pessoal)

Parêntese – Que depoimento o senhor dá sobre alguns dos intelectuais que compunham essa moldura entre os anos 50 e 70? Pensamos em gente como seus companheiros dos Cadernos de cultura negra, mas também em Florestan Fernandes e outros.

Oswaldo de Camargo – Lá estava Afonso Schmidt, autor do romance abolicionista A marcha; Fernando Goes, mulato, crítico arguto e cronista do jornal Diário de São Paulo; Florestan Fernandes, já respeitado sociólogo, que escreveu o prefácio do meu livro 15 Poemas Negros. Tive na Associação a amizade e o apoio de “negros históricos” a quem se deveu, nos anos 30, a fase áurea da Imprensa Negra. Nomes como o de José Correia Leite, Jayme Aguiar, Henrique Cunha. Nair Araújo, declamadora de mérito, e Jacyra Sampaio, a primeira Tia Anastácia da televisão. Muita gente.

Me imiscuí, naqueles anos, com intelectuais de vária feição. Minha primeira amizade foi com Paulo Bomfim, o poeta de Antônio Triste; participei de um movimento literário chamado Desagregacionismo, acontecido no saguão da Biblioteca Mário de Andrade, em 1960; ali, na rua Martins Fontes, morava a Lygia Fagundes Telles, muito lida com seu livro Ciranda de Pedra; na companhia de alguns companheiros a visitei certa vez. Era já, nessa época, um nome muito alto no romance brasileiro. Fiz amizade com Hilda Hilst, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, que escreveu a orelha para a minha estreia, Um homem tenta ser anjo. Andei com o Solano Trindade, o desenhista Joel Câmara, que ilustrou meu livro de poemas O estranho; participei do primeiro número de Cadernos Negros, segui até o terceiro, depois não compareci mais.

Parêntese – Como o senhor entrou em contato com a obra de Carolina Maria de Jesus? O senhor lembra de amigos e conhecidos seus terem se interessado pelo tema? Houve depois contato pessoal seu com ela?

Oswaldo de Camargo – Quando Carolina Maria de Jesus apareceu, ruidosamente, com a publicação de Quarto de Despejo, eu era desde 1955 revisor do jornal O Estado de S. Paulo e havia estreado em 1955, na poesia, com o livro de versos Um homem tenta ser anjo, bem recebido pela crítica. Carolina, antes do Quarto de despejo, já havia tentado mostrar trabalhos seus a alguns intelectuais negros. No livro E disse o velho militante José Correia Leite, em que o poeta e militante de Literatura Negra Cuti (Luiz Silva) entrevista este extraordinário lutador da causa negra, há uma passagem em que Carolina desce da igreja da Consolação e se dirige à rua Augusta, onde mora Correia, que todos chamavam de Seu Leite. Lá passa a tarde dizendo versos. Antes do Quarto de Despejo Carolina queria ser vista e reconhecida como poeta.

Conheci Carolina. Fui convidado em algumas ocasiões para estar com ela, em entrevistas (uma delas em televisão), em palestras. Não tive influência dela. Como aprendiz, minhas leituras eram os livros dos poetas do Clube de Poesia, onde militavam o jovem Haroldo de Campos, cuja estreia, Auto do Possesso, adquiri. E Décio Pignatari, que iniciou com o livro de versos O Carrossel. O pessoal do Clube de Poesia me situava como pertencente à Geração de 45.

Parêntese – Como o senhor se vê? Como vê a literatura?

Oswaldo de Camargo – Sou, então, um negro brasileiro que tenta ser escritor.

Dê-me a mão.
Meu coração pode mover o mundo
com uma pulsação.
Eu tenho dentro em mim anseio e glória
que roubaram a meus pais.
Meu coração pode mover o mundo,
porque é o mesmo coração dos que são cinzas
e dormem debaixo da Capela dos Enforcados….
é o coração da mucama
e do moleque,
e eu sei muitas canções de ninar gente branca,
sei histórias
todas feitas à sombra das palmeiras
ou nas margens do Nilo. (…)

O trecho é de meu primeiro poema publicado, em 1958, Grito de angústia. Ele é transcrito no livro Protagonismo negro em São Paulo – História e historiografia, de Petrônio Domingues (Sesc Edições-SP, 2019). Com poemas de Solano Trindade e de Carlos Assumpção, Grito de Angústia foi por bastante tempo o poema mais declamado na Associação Cultural do Negro e em tertúlias comuns, em São Paulo, nos anos 1960. Era estreito o caminho para se chegar à igualdade naquele tempo. Continua estreito. O que me impressiona é que ele fala até hoje, em sua angústia, para muitos negros e negras, transcorridos mais de 60 anos de sua publicação.

Fecho afirmando: a Literatura me marcou e continua marcando. O que escrevo como Literatura Negra pretende ser a expressão do meu espanto diante de um país que teima em ser difícil e desleal para 75% do povo negro, a maioria dele historicamente ferido em sua humanidade.

Creio na Literatura.
Ela pode colaborar para que isso melhore.

 

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