Pacote de maldades

Foto: Marta Azevedo

O termo designa ações que penalizam mais os que menos têm

Por Flávia Oliveira Do O Globo

Foto: Marta Azevedo

É recessivo e inflacionário, além de tardio, o plano do governador Luiz Fernando Pezão para tentar livrar o Rio de Janeiro da bancarrota. Até aí, nada de novo sob o sol dos luminares da política econômica. Os governos no Brasil são, tradicionalmente, gastadores em tempos de bonança e austeros nos anos de penúria, o avesso do recomendável. Vida que segue. Mas salta aos olhos o caráter regressivo do pacote de maldades da sexta-feira, 4 de novembro. Aos que não têm intimidade com o conceito, o termo designa ações que penalizam mais os que menos têm.

As medidas anunciadas pelo governo fluminense em resposta à crise que já dura um par de anos são recessivas, porque vão tirar poder de compra dos consumidores e capacidade de investimento das empresas. O economista Istvan Kasznar, professor de economia e administração pública da FGV, tratou disso em artigo no último sábado no GLOBO. O Rio pretende reter 30% da renda de servidores ativos, aposentados e pensionistas por 16 meses, num período de aguda retração do Produto Interno Bruto (PIB), desemprego crescente e encolhimento da Petrobras, locomotiva da economia local em anos recentes. Em 2015, o Rio tinha 245 mil aposentados e pensionistas, a quem o estado destinou R$ 13,3 bilhões.

O pacote é inflacionário porque eleva impostos de serviços essenciais para famílias, comércio e indústria. No IPCA-Rio, índice de inflação da Região Metropolitana calculado pelo IBGE, energia elétrica pesa 4,25%; telefonia fixa, móvel e pacote de internet, 3,36%; gasolina, 2,96%. Ou seja, a elevação de alíquotas do ICMS só com esses itens vai alcançar mais de 10% da cesta de consumo dos lares fluminenses. Sem falar nos 2,42% de participação no IPCA-Rio de cerveja, refrigerante e cigarro, outros alvos do aumento de tributação.

O pacote foi tardio, porque Pezão assumiu o governo em janeiro de 2015 já sob as nuvens da crise. Poderia ter iniciado ali o enxugamento da máquina pública. Esperou dois anos para anunciar um redesenho atrelado mais à política do que a critérios técnicos. A Cultura foi incorporada pela Secretaria de Ciência e Tecnologia; a Assistência Social pela Saúde. Obras, Transportes, Desenvolvimento Econômico e Agricultura se fundiram na Secretaria de Infraestrutura; Governo, Trabalho e Direitos Humanos, na Casa Civil. Contudo, mesmo com o fim do ciclo megaeventos esportivos, a Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude, ocupada por Marco Antonio Cabral, filho do ex-governador Sérgio Cabral, foi preservada.

O ajuste é regressivo porque, além de elevar a carga tributária da sociedade fluminense, interrompe políticas sociais destinadas à base da pirâmide. O programa Aluguel Social, que remove moradores de áreas de risco iminente, será extinto. Vão desaparecer os repasses financeiros do Renda Melhor e do Renda Melhor Jovem, colchão monetário para famílias pobres. Ao Bilhete Único será imposto teto ao subsídio, que afetará os que gastam mais com transporte, provavelmente porque moram mais longe do trabalho; as tarifas também vão subir na virada do ano. Para completar, o governo resolveu deixar os Restaurantes Populares a cargo dos municípios, igualmente em desconforto orçamentário.

Não há como negar a necessidade de ajuste das contas fluminenses, especialmente no que diz respeito ao déficit previdenciário. A deterioração fiscal sequer é tragédia exclusiva do Rio de Janeiro. Ela ameaça demais entes da federação; outros governadores já elevaram alíquotas de ICMS, parcelaram salários, ameaçam não pagar o décimo terceiro. Tal cenário exige que o governo federal participe ativamente do debate. Primeiro, para articular estratégias comuns na direção de um estado mais eficiente e coeso. Depois, porque a mudança súbita de regras na relação com as empresas gera desconfiança e cria empecilho à desejável retomada dos investimentos no país. O Brasil parece frágil, errático e sem liderança.

Por fim, passou da hora de os arquitetos dos ajustes levarem em conta os impactos negativos dos pacotes que elaboram tanto na atividade econômica quanto no bem-estar da população. Em 2014, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) apresentou contundente Relatório de Desenvolvimento Humano, no qual propunha receita nada ortodoxa para blindar segmentos vulneráveis de população da conjuntura econômica adversa. O texto defendia que algo entre 4% a 10% do PIB fossem reservados a um pacote de assistência, que englobaria serviços públicos básicos, rede de proteção social e pleno emprego, especialmente para os jovens. Nas medidas de ajuste fluminense faltou o viés pró-pobre. Seria a forma de tentar proteger o futuro das necessárias correções do presente.

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