Pandemia afeta a volta ao trabalho para a mulher negra

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Foto: Scott Olson/Getty Images

Análise do PNAD/IBGE de momentos distintos do cenário nacional aponta que o trabalhador negro sempre é o primeiro a perder a carteira assinada e o posto de trabalho em momentos de crise econômica no país. Em estudo elaborado por professoras de Economia da FACAMP (Faculdades de Campinas), os dados colocam em último lugar a mulher negra, como a que sofre as piores consequências.

No caso da grave crise enfrentada pelo Brasil entre 2014 e 2019 (taxa de desocupação era de 11% no quarto trimestre de 2019 e a taxa de subutilização, 23%), com grandes percentuais de desemprego e perda de postos de trabalho, a mulher negra, mesmo neste contexto desfavorável, foi a que mais se movimentou em busca de oportunidades. No total do Brasil, nesse período, o número de mulheres ocupadas aumentou 5% (principalmente em conta-própria e em empregadoras), mas quando se analisa o recorte de cor da população (divisão em população negra – preta e parda – e a não negra – branca, amarela e indígena), o bom desempenho das mulheres no período de crise deveu-se principalmente ao aumento da presença das mulheres negras (crescimento de 10,6% na ocupação, enquanto o número de mulheres ocupadas não negras se reduziu no período, -0,6%). Segundo uma das autoras do estudo, a professora Daniela Salomão Gorayeb, “Não foi um aumento em vagas mais qualificadas e sim em ocupações mais precárias. E, ainda, são mulheres e meninas que antes ajudavam nos trabalhos do empreendimento familiar, sem rendimento, e que tiveram que buscar renda fora de casa”.

Para a economista, “as ocupações que apresentaram maiores variações para as mulheres negras neste período foram a de empregadoras, conta-própria e emprego no setor público sem carteira. A posição de empregadoras e conta-própria, a despeito de não serem, em geral, categorias formalizadas e com acesso a direitos trabalhistas e previdenciários, são as que permitem às mulheres obterem algum rendimento (ainda que muito baixo) e terem, ao mesmo tempo, possibilidade de aliarem trabalho doméstico e de cuidados aos dependentes (crianças, idosos e doentes) com o trabalho remunerado”. Como muitas delas são chefes de família, muitas com filhos e sem cônjuge, e responsáveis pelos cuidados e sustentação de seus dependentes, essas mulheres não podem sequer ficar por muito tempo desempregadas. A perda de um trabalho para elas representa uma migração a outro tipo, mesmo que seja em condições e com rendimentos muito menores do que o trabalho anterior. Por exemplo, foi o constatado nesta fase, quando o emprego de empregadas domésticas diminuiu 8% com carteira, mas aumentou 11% do emprego sem carteira. São ocupações mais precárias e com menor rendimento que as anteriores.

Os dados do PNAD/IBGE apontam também que entre 2014 e 2019 a expansão da força de trabalho da mulher negra no Brasil foi bem maior (18,9%) do que as outras categorias neste período (homens negros, 9,3%, mulheres não negras, 3,7% e homens não negros que tiveram uma redução, -1,4%). Esse aumento da força de trabalho das mulheres negras esteve associado à elevação das mulheres ocupadas (+10,6%) – ainda que tenham sido às custas de subocupações (aumento de 63,1%) – e das mulheres desocupadas (+101,5%), que em grande parte podem ser mulheres que estavam fora da força de trabalho e, por ocasião da perda de empregos dos homens, passam a buscar trabalho. Assim, as mulheres negras na crise econômica são as que mais conseguem ocupações (tendo o maior crescimento das subocupações dentre as categorias analisadas) e também são as que mais crescem na busca por emprego com relação ao período anterior. Na pandemia, no entanto, este esforço foi perdido e elas foram as que mais perderam ocupações em 2020.

Na pandemia, as mulheres negras foram as que mais perderam postos de trabalho e as que ocuparam menos vagas de emergência criadas pela crise sanitária

O cenário grave de 2019 se acentuou com a crise sanitária da COVID-19. No total da população brasileira houve, em um semestre, a perda de 11 milhões de ocupações. A redução do total de mulheres ocupadas foi de 12,9% e a de homens, 11%. E em termos de divisão da população por cor, a categoria que mais perdeu suas formas de ocupação foram as mulheres negras (-16,7%).

Estas perdas foram enormes em quase todas as ocupações, inclusive nas categorias em que essas mulheres conseguem trabalhar mesmo nas crises econômicas (empregada doméstica sem carteira e conta-própria). As demais mulheres também apresentaram perdas importantes, mas tiveram, pelo menos, acréscimos relevantes em emprego do setor público com carteira e como militares e servidoras públicas. Uma das hipóteses, aventadas pelas economistas, foram as contratações de urgência que o setor público teve que fazer para as áreas de saúde e educação e que não foram ocupadas por elas. As mulheres negras tiveram redução do emprego do setor público com carteira e apenas um leve aumento do emprego do setor público sem carteira.

Igual redução de oportunidades aconteceu nas ocupações de homens negros, em termos percentuais, um pouco menos (-15%) do que as mulheres negras (-16,7%). Os homens não negros foram os menos afetados por esse semestre de enfrentamento à pandemia, os que menos perderam emprego do setor privado com carteira e foram, junto com as mulheres não negras, aqueles que aumentaram suas ocupações como empregados do setor público com carteira assinada.

Assim, as mulheres negras que, duramente, conseguiram encontrar alguma forma de ocupação no período de crise anterior (2014-2019) – mesmo em posições muito precárias e com baixos rendimentos – no semestre da pandemia foram elas as que sofreram a maior variação das demissões (nos empregos) e, seja por questões sanitárias, econômicas ou domésticas (crianças sem escola ou creche, paralisação de atividades, etc.) também não puderam exercer suas atividades de conta-própria ou de seus pequenos estabelecimentos.

A análise dos últimos seis anos mostra, portanto, um agravamento da situação das mulheres negras sobretudo considerando a frágil situação em que se encontravam já antes da pandemia. Essa situação é ilustrada pelo crescimento da população subutilizada no país, categoria formada por pessoas que, apesar de precisarem e desejarem trabalhar, não encontram formas de conseguir um rendimento de forma suficiente. Este cálculo leva em conta a soma da população desocupada, subocupada e aquela que está na força de trabalho potencial (que desejam trabalhar, mas estão indisponíveis ao trabalho ou em situação de desalento).

No caso das mulheres negras a taxa de variação da subutilização neste período foi de 110,4%, pouco menor do que a dos homens negros, 111,2%. No entanto, no 2º trimestre de 2020, das 4 categorias analisadas (mulher negra, homem negro, mulher não negra, homem não negro), as mulheres negras são a maioria da população brasileira na população subocupada (32,7% versus 31,2% dos homens negros, 20,9% das mulheres não negras e 15,2% dos homens não negros) e são maioria da população na força de trabalho potencial (38,5% versus 29,1% dos homens negros, 28,4% das mulheres não negras e 15,4% dos homens não negros), mesmo tendo observado um crescimento significativo dos homens nessas categorias na crise da pandemia.

Na ponta do lápis, salta aos olhos a gravidade da situação das mulheres negras no Brasil. Nos três trimestres analisados este ano, a taxa de subutilização da mulher negra é maior do que as outras categorias analisadas, mas a dramaticidade é ainda maior quando se atenta para o valor que essa taxa alcançou no 2º trimestre de 2020, de 40,5%. Essa taxa significa que quase metade das mulheres negras do Brasil estão com seu potencial de trabalho subutilizado, seja porque trabalham horas insuficientes, seja porque não encontram trabalho ou porque estão indisponíveis ou em desalento, ainda que precisem muito trabalhar. “Com a perda de postos de trabalho e com o fim do auxílio emergencial, o potencial de explosão social dessa taxa é enorme, colocando quase um terço da população do Brasil em extrema vulnerabilidade. Milhões de famílias brasileiras dependem exclusivamente da mulher negra como provedora”, alerta a professora Juliana Filleti.

ESTE ESTUDO FOI ELABORADO pelo Núcleo de Pesquisa de Economia e Gênero da FACAMP, formado pelas professoras Daniela Salomão Gorayeb; Georgia Christ Sarris, Juliana de Paula Filleti, Maria Fernanda Cardoso de Melo, Camila Veneo Campos Fonseca, Juliana Pinto de Moura Cajueiro e Tatiana de Amorim Maranhão. A FACAMP é uma faculdade privada com espírito público fundada em 2000 por João Manuel Cardoso de Mello, Liana Aureliano, Luiz Gonzaga de Melo Belluzzo e Eduardo Rocha Azevedo.

Anexos

Fonte: elaboração NPEGen a partir de dados do PNAD/IBGE:

Taxa de participação (%)          
  4º trim. 2014  4º trim. 2019  2º trim. 2020 
  M
População total 50,6 72,2 53,1 71,6 46,3 65,5
População negra 49,3 72,3 51,9 71,1 44,8 64,4
População não negra 52,0 72,1 54,6 72,3 48,0 66,8

 

OBS: Gráficos da análise: Demarcações de período, Com Carteira (CC) assinada e Sem Carteira (SC)/ 2014: auge do mercado de trabalho/ 2019: fim do período de crise 2015-2019 /2020: pandemia

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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