Para além do orgulho, Dia Internacional de Combate à LGBTQIAPN+fobia é um dia político

Apesar de conquistas, comunidade LGBTQIAPN+ ainda enfrenta entraves na garantia plena de direitos e reconhecimentos

FONTEJornal da USP, por Danilo Queiroz
Ato em memória aos LGBTQIAPN+ assassinados no Brasil, em frente à Igreja da Candelária, centro do Rio de Janeiro, em janeiro de 2010 - Foto: André Gomes de Melo/Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos RJ via Flickr

O mês de maio, especialmente o dia 17 – Dia Internacional de Combate à LGBTQIAPN+fobia -, é um dos mais importantes para a comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Travestis, Queer, Intersexo, Agênero, Pansexuais, Não binários e mais outras identidades (LGBTQIAPN+) ao redor do mundo. Para além do orgulho, a data escolhida tem uma importância política e histórica, já que marca a retirada da homossexualidade, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), do Código Internacional de Doenças (CID), em 1990. 

Apesar de tardio, a comunidade LGBTQIAPN+ entende o reconhecimento internacional como um passo em direção à legitimação de outras existências para além dos corpos no padrão “heterocisnormativo”. Ou seja, que não se identificam pela heterossexualidade nem pelo seu gênero de nascimento.

“Tivemos de passar por algumas décadas para conseguirmos ser entendidos como pessoas e não como doença. Celebrar esse dia é comemorar nossas existências”, celebra Lucas Bulgarelli, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Ainda são muitos os avanços que a comunidade LGBTQIAPN+ carece conquistar, sendo algumas identidades mais afetadas que outras. Em âmbito internacional, por exemplo, a OMS ainda permanece com o termo “transexualismo” [o sufixo -ismo se refere a doenças] na décima versão do CID.

A nova versão do CID, o CID-11, apesar de não possuir o termo “transexualismo” apresenta “incongruência de gênero”, que pode estigmatizar a transexualidade enquanto “transtorno mental” – Foto: Reprodução / CID-10 e CID-11

Já o Brasil carrega a triste marca de ser o país que, há 14 anos, mais mata pessoas trans e travestis. Somado à ausência de leis federais que assegurem os direitos da comunidade, o contexto nacional revela os desafios no reconhecimento da diversidade.

Monitoramento realizado pelo Trans Murder Monitoring revela o Brasil como o País responsável pelo maior número de assassinatos de pessoas trans e travestis – Foto: Reprodução/ Transrespect vs Transphobia (TvT)

Além disso, no País, os direitos civis da comunidade, como a livre expressão da orientação sexual e/ou de gênero em espaços públicos e a redesignação do sexo, estão assegurados somente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para Lucas, que também é advogado formado pela Faculdade de Direito (FD) da USP, isso não basta. “A luta não acabou! Permaneceremos, por meio da história, relembrando nossas conquistas e derrotas”, afirma ele.

Ao Jornal da USP, Lucas conta que “para algumas pessoas, esses direitos são vistos como privilégios. Na verdade, são direitos reparatórios e equipatórios: reparar o que nos foi causado no passado e nos assegurar como iguais no futuro”, observa. “Nosso País gosta de dizer que é diverso e plural, mas ao mesmo tempo não gosta de revelar que é intolerante. Há uma hipocrisia nisso”, aponta. 

É necessário nos reafirmarmos com todas as letras! Pois, para a saúde éramos doença, para o direito éramos criminosos, e para a religião, ainda continuamos sendo pecadores.”Lucas Bulgarelli

A Constituição Federal, ou a Constituição Cidadã, formulada em 1988, não inclui expressamente a orientação sexual, apenas lista como objetivo promover o bem de todos. Para Lucas, é importante compreender que as conquistas da comunidade não são como leis lineares, progressivas. “Ou seja, isso significa que não vamos conseguir mais e mais direitos. E, nos últimos quatro anos, vimos que o que tínhamos conquistado foi reduzido.”

Sendo pesquisador no Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas) da FFLCH, o doutorando reforça, ainda, a participação ativa de todas as pessoas da sociedade na busca por mais direitos à comunidade,  por meio das eleições. Apesar do avanço, mesmo que mínimo, do Congresso Nacional possuir hoje mais de 15 deputados assumidamente LGBTs, isso não é suficiente. “Ainda temos uma luta  muito grande no Legislativo, que é justamente o poder responsável por promover as leis que a gente precisa. Isso nos revela que a sociedade não está disposta a eleger representantes políticos que defendam esses direitos. Isso é um problema muito sério para que tenhamos ainda mais avanços”, propõe Lucas.

Reafirmação necessária

Antes mesmo do movimento LGBTQIAPN+ decidir reorganizar sua história, a comunidade sempre existiu. Lucas conta que invisibilizar esses corpos foi e ainda permanece sendo uma estratégia de decidir quem deve ser esquecido ou lembrado na história. “Em meados dos anos 1970, no movimento LGBT brasileiro começamos a ser vistos. Nós éramos invisíveis até então”, lembra o advogado. “No entanto, estamos em todas as esferas da vida, apesar da parcial inclusão que conquistamos, mas foi interrompida no último governo, com a retirada da comunidade das diretrizes de direitos humanos. Atualmente, o ministério está sob a responsabilidade de Silvio Almeida, doutor em Direito pela USP, o qual afirmou na sua posse que ‘LGBTs existem e são pessoas valiosas para nós!’”, destaca.

Esses avanços e retrocessos nos movimentos de diversidade levaram Lucas a pesquisar, no doutorado, os significados decorrentes da noção de ideologia de gênero no Brasil. A ideia foi criada por setores conservadores da sociedade que alegam que a comunidade LGBTQIAPN+ tem tentado desconstruir os tradicionais conceitos de família. Ele explica que a retomada desses discursos, que envolvem a política da moral e dos bons costumes, é um dos mecanismos encontrados para promover um duplo ataque: aos corpos LGBTQIAPN+ e às universidades que estudam o tema. “Quem ataca esses estudos sabe da legitimidade desses conhecimentos na formulação de leis e políticas públicas para a comunidade. Não é opinião, nem luta pessoal, é ciência!”, salienta o doutorando.

Escrevendo uma nova história

Narrar as lutas e conquistas da comunidade é um dos caminhos viáveis para escrever uma nova história. É por meio do ensino e do ativismo político que o advogado de direitos humanos Renan Quinalha, doutor pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, propõe narrar e escrever uma nova história a respeito da comunidade LGBTQIAPN+. Seu doutorado, intitulado Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão contra a comunidade LGBT, tornou-se livro e, em seguida, uma série de vídeos no Canal USP do Youtube.

Dedicado a estudar a história da comunidade, ele conta ao Jornal da USP que, por meio da escrita, consegue estimular para além do orgulho, coragem. “A capacidade de narrar essas histórias nos restitui a possibilidade de conhecer a nossa própria história e orienta as novas lutas que precisamos desenvolver para o presente”, diz ele, que atualmente é professor e coordenador do curso de Direito da Universidade Federal Paulista (Unifesp), onde também é coordenador adjunto do Núcleo Trans.

Para além de suas outras produções, Justiça de Transição: contornos do conceitoDitadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade História do Movimento LGBT no Brasil, Renan agora pretende romper com a literatura especializada a respeito da temática LGBTQIAPN+. Para ele, esta literatura adota um recorte que procura em primeiro plano adotar vivências da comunidade em contextos de maior vulnerabilidade e precariedade. Organizada por ele e por Paulo Souto Maior, professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a mais recente obra Novas Fronteiras das Histórias LGBT+ no Brasil promete explorar novas narrativas por meio de três fronteiras: territoriais, temporais e temáticas.

A partir de 24 artigos de especialistas em diversidade do Brasil e do mundo todo, Renan explica que “pretende explorar a historiografia da comunidade por meio de pesquisas a respeito dessas temáticas. A ideia é compilar e divulgar esses estudos, além de trazer visibilidade, uma vez que são produzidos fora do Centro-Sul do Brasil”. O livro atualmente está em pré-venda e pode ser adquirido no site da Editora Elefante neste link. O lançamento será em junho, mês em que se comemora o Orgulho LGBTQIAPN+, pois celebra a série de protestos da comunidade na luta por direitos e reconhecimentos sem represálias. Ocorrido em 1969 nos Estados Unidos, o movimento ficou conhecido como Rebelião de Stonewall e contribuiu para a explosão de levantes ao redor do mundo, impulsionando novas reivindicações até hoje.

Capa do livro “Novas Fronteiras das Histórias LGBT+ no Brasil” – Foto: Divulgação

“As pessoas da comunidade existem e estão em todos os lugares. Conhecer nossas histórias não representa apenas produção de conhecimento. É uma atitude antes de tudo política”, diz Renan. “Por isso, a importância de nos tornarmos cada vez mais visíveis e prestigiarmos as nossas diversidades. Celebrando isso em alerta, pois os quatro anos de bolsonarismo nos sinalizaram que ainda precisamos ainda mais avançar”, admite.

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