Para as crianças cientistas que nós fomos – por Denize de Almeida Ribeiro

História das Mulheres Negras XXII

Eu sei que você já foi criança, meu caro leitor, por isso me sinto a vontade para te contar certas coisas. Compartilho com você uma determinada perspectiva de olhar de certa forma, que eu não tinha enquanto as vivia. Agora quando olho pra trás espero encontrar o seu olhar e que as narrativas que faço agora, não sejam tão duras para você da mesma forma que elas realmente foram, afinal de contas são histórias, casos, fatos inventados, ou ouvidos e nesse espaço eu determino o fim. De uma coisa tenho certeza aqueles anos, morando naquela casa, com aquele salão de beleza e essas mulheres negras todas, marcaram minha vida e minha visão de mundo se expandiu.

Para vocês terem uma ideia, era véspera de carnaval e o movimento no salão iria aumentar, porque as mulheres queriam se enfeitar para sair em seus blocos de samba, afoxés, bloco afro, bloco de índio ou simplesmente ir atrás de um cordão ou do Jegue de Cueca. Conceição sabia disso, pois muitas já tinham feito reserva de horário e encomendado os penteados. Ela estava agitada e acordou cedo, pegou uma vassoura e saiu praguejando dizendo que hoje ia ter…

Começou a varrer a calçada resmungando baixinho. Bom, nesse ponto é importante entender que a temperatura dessas mulheres pode ser medida, e quando elas acordam como Conceição acordou hoje é porque as coisas vão esquentar, isso as crianças sentem. Há um movimento diferente, o clima fica meio parado, um silêncio estranho onde só se ouve o resmungo delas. Então, na nossa concepção de crianças era o momento de cair fora, de ir brincar bem longe delas, pois provavelmente de agora em diante tudo que desse errado era nossa culpa.

Tratei logo de me arrumar e ir pra rua buscar novidade. Fui à casa de Marinalva e chamei ela para correr pícula. Ela veio meio desengonçada, porque, eu já falei pra vocês de Marinalva, ela é assim mesmo, veste roupas dos irmãos maiores, ou das doações dos brancos, mija na cama, não gosta de pentear o cabelo, daí a coitadinha anda assim. Eu gosto dela assim, porque a faço de minha boneca, ai eu penteio seu cabelo, passo batom, pinto suas unhas, às vezes ela não me deixa pentear o cabelo, então eu amarro um lenço. Enquanto isso, vamos conversando como gente grande. Marinalva fica parecendo uma mãe de santo, só dá ordens.

Conceição estava agitada porque muitas mulheres não queriam espichar o cabelo, o que elas queriam era fazer tranças e penteados em nagô. Segundo elas, para brincar os dias de carnaval era melhor e mais fácil de arrumar. Mas, para Conceição era mais trabalho, ter que escolher os penteados, trançar cabeça por cabeça. As que iam aos blocos de samba queriam algo prático e que o cabelo não ficasse caindo na nuca; as que iam ao bloco afro queriam tranças e penteados mirabolantes, diferentes umas das outras e com fitinhas nas cores do pan-africanismo; as que iam a bloco de reggae queriam tranças soltinhas e cabelo rastafári; as que iam aos afoxés queriam turbantes estratosféricos, mas as mais engraçadas eram as que iam a blocos de índio, pois estas queriam o cabelo alisado e de franja.

Eu concordava com elas, naquela época, afinal carnaval era fantasia e eu não ia querer sair de mim mesma, então eu também sairia de índia, se pudesse. Joanete era uma dessas, ela queria o cabelo bem alisado para brincar no Apache do Tororó. Eu pedi várias vezes a Conceição pra alisar meu cabelo e fazer uma franja também, as mulheres riram e Conceição ficou mais irritada ainda e me mandou ir comprar fitas nas cores do pan-africanismo. Agora meu caro leitor, que cores são essas e como eu iria saber? Ela não me deu tempo de perguntar…

E como vocês já sabem, terei que explicar agora o que é Pan-africanismo. Vocês têm sorte de ter alguém como eu, que explico as coisas, pois na minha época não havia internet e eu aprendi apanhando, literalmente, sonhando, vendo na TV ou adivinhando.

O Pan-africanismo é uma ideologia que propõe a união de todos os povos da África como forma de potencializar a voz do continente no contexto internacional. Essa ideia se tornou bastante popular entre as elites africanas ao longo das lutas pela independência, na segunda metade do século XX. Eles propunham a unidade política de toda a África e o reagrupamento das diferentes etnias, inclusive entre nós da diáspora. Valorizavam as religiões ancestrais e defendiam o uso das línguas africanas que foram proibidas pelos europeus.

Essa ideologia foi desenvolvida principalmente pelos africanos na diáspora americana, particularmente William Du Bois e Marcus Garvey, entre outros, e posteriormente foi defendida por africanos como Kwame Nkrumah e no Brasil foi bastante divulgada por Abdias do Nascimento.

Você nem imaginava caro leitor, que na cabeça dessas mulheres negras houvesse tantas histórias hein! É coisa pra contar! Acho que elas também não sabiam, mas mesmo assim era o que elas queriam ser nos dias de carnaval. As cores são: o amarelo, verde, vermelho e o preto, cada uma com seus significados e estão representadas na maioria das bandeiras dos países africanos.

Agora lá estava eu em frente a tantas cores de fita para escolher as do pan-africanismo, então fui escolhendo as que mais gostava e Marinalva dando a opinião dela também. Eu queria cortar o cabelo, fazer uma franja bem bonita, pois na comunidade do Barro Vermelho só uma menina branca tinha franja, Alice, ela e as bonecas brancas é claro. Meu tio ouviu minha conversa e deu o maior apoio: “Corta a franja menina, vai ficar linda, invade o mundo de Alice!”

Bom, com o apoio da família fica bem mais fácil né? Mas ao chegar ao salão Cora estava se arrumando para sair e me levou com ela. Fomos à casa da ex-patroa, uma branca da Barra Avenida. Toda vez que ela me levava com ela eu já sabia que a mulher iria me perguntar o que eu queria ser quando crescesse. Porque será que os brancos se preocupam tanto com isso?

Dessa vez minha resposta estava pronta e definida, essa era mesmo uma boa pergunta por que me fez pensar realmente em crescer e ser alguém diferente, mas quem? Dona “B” fez a pergunta e eu respondi na lata: “Quero ser cientista louca”, minha tia se assustou, mas Dona “B” caiu na risada aos montes e disse: “Louca tudo bem, mas cientista que absurdo!”. Aí, meu caro leitor, Dona “B” conhecia Cora e não devia ter provocado, ela não admitia esse tipo de coisa, imagine a “B” me discriminando.

Cora tirou dos cachorros e disse: “Porque ela não pode ser cientista? Melhor a senhora cuidar dos seus filhos ignorantes e do seu marido chifrudo, ela estuda, gosta de saber coisas e tem a tia dela aqui pra trabalhar pra gente como a senhora, só pra fazer dela uma cientista, é porque ela é negra? A senhora é racista e eu não venho mais aqui…e saiu batendo a porta e me esticando”.

Dona “B” foi atrás de Cora, pediu desculpas, que não era isso, nem aquilo. Enfim, voltei pra casa decidida a ser mesmo “cientista louca” e Cora ainda tentou me convencer a tirar o “louca” e a ser só “cientista”. Mas eu achava só “cientista” tão chato, bom mesmo é ser das loucas e inventar coisas que ninguém inventaria: remédios, máquinas, aparelhos, receitas… “Já imaginou tia eu poderia fazer a branca entortar a língua toda vez que me discriminasse?” E Cora dizia: “Ai só feitiço menina, só feitiço…”

Voltamos à comunidade e o furdunço continuava, agora porque comprei as cores erradas das fitas e Conceição estava me caçando… Como eu não sabia fui ao quarto e cortei o cabelo, finalmente teria minha franja, mas o cabelo!!!!

Não vou explicar a vocês o que acontece com nossos cabelos crespos, creio que vocês desconfiam e muitos já sabem, mas uma coisa com certeza que eles têm é identidade e eles não gostam de franja, logo de cara percebi que teria que dar um jeito pra abaixar o cabelo, pois a franja não se formou.

Cora chegou ao salão já contando a história da casa de Dona “B”, as mulheres riram e falavam que eu realmente levava jeito de “cientista louca”, mas louca mesmo, pois vivia tentando chocar ovo gelado, ressuscitar lagartixa, fazendo remédio de folha, criando caranguejo de coleira, cantando pra passarinho, dando água com açúcar a todo mundo. Nessa hora Maria Helena me olhou dos pés a cabeça, com seu exame de Gêge e definiu: “Cientista talvez, mas feiticeira com certeza e das boas!” Todas riram muito, menos Conceição.

Então pedi a Conceição, mais uma vez, pra alisar meu cabelo, “minha franja deu errado tia”, mas daí em diante não vi mais nada, alguém me sacudiu, me bateu, gritou comigo dizendo: “Você é louca, é louca? Quais as cores do pan-africanismo? E eu respondi: “Não tia, louca não, só quero ser cientista”.

DENIZE DE ALMEIDA RIBEIRO
Coordenadora de Políticas Afirmativas – PROPAAE/UFRBProfessora do Centro de Ciências da Saúde – CCS/UFRB

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