Em 2022, o escritor e tradutor Stefano Volp provocou uma onda de solidariedade e indignação ao compartilhar no Twitter uma crítica negativa a seu livro de contos “Homens pretos (não) choram” (HarperCollins, 2022). Escrita por Luiz Maurício Azevedo, pesquisador ligado a FFLCH/USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) e autor de “Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra” (Editora Sulina, 2021), ela afirmava que a obra somava clichês ao tentar parecer poética.
“A estratégia de lançar a obra com paratextos adulatórios de nomes que já provaram seu valor no cenário cultural brasileiro — como Jeferson Tenório e Emicida — reforça a sensação de que talvez essa obra seja importante porque quem a escreveu o é”, escreveu Azevedo. E concluiu: “Isso, é claro, funciona muito bem para a celebração das mídias sociais, mas não para o ofício literário. A existência de Volp, afinal, merece nosso festejo. A julgar por essa obra, sua literatura ainda não”.
O tom não agradou a internautas e ativistas, que rechaçaram a resenha.
Para Vagner Amaro, fundador da Malê, editora voltada ao resgate e valorização de autores negros, o crítico literário precisa ter maturidade para ser criticado. Segundo ele, a ideia de paridade no mercado literário é uma falácia. “Os pactos da branquitude estão em todas as estruturas da nossa sociedade”, afirma Amaro ao TAB. “Por que vamos entender que não estão nos prêmios, nas instituições do livro e da leitura?”
Na opinião do editor, “me parece inocente pensar que a literatura estaria imune ao racismo. O racismo pode gerar críticas positivas para obras de autoria negra, por condescendência. Mas pode gerar também críticas muito negativas por um imaginário de desqualificação da intelectualidade negra”.
Mas o que seria, num contexto de racismo estrutural como o brasileiro, uma crítica isenta? “Seria aquela em que o crítico se despiria totalmente do que foi racista em sua formação cultural. Não sei se é possível. Mas não tenho dúvidas de que a autoria negra precisa e requer críticas honestas, elaboradas com critérios técnicos e transparentes — e não impressões tomadas pelo gosto pessoal de quem as escreve.”
Doutor em letras e professor titular de Literatura Brasileira da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o poeta e crítico Antonio Carlos Secchin, membro da ABL (Academia Brasileira de Letras), sinaliza para os perigos do surgimento de uma certa modalidade de identitarismo no setor, que acaba, no limite, consolidando guetos, com apenas pretos podendo escrever sobre pretos, mulheres sobre mulheres, gays sobre gays. “Sempre valorizei perspectivas de diálogo e de inclusão. Se apenas os similares têm direito de falar sobre seus similares, o debate, a meu ver, fica bastante limitado no campo de um autorreconhecimento hostil à diversidade”, afirma.
Secchin questiona se os que propõem exclusividade nesse lugar da fala almejariam a mesma exclusividade para o lugar da escuta. “Eles desejam alcançar leitores para além das delimitações étnicas? Nesse caso, o outro, o diferente, tem licença para ouvir, mas não tem para falar?”, questiona.
Lugar de escrita
Regina Dalcastagnè, doutora em teoria literária pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professora de literatura brasileira na Universidade de Brasília, considera lamentável a controvérsia que se instaurou a partir do posicionamento de Itamar Vieira Júnior frente à resenha negativa de Lígia G. Diniz sobre seu romance “Salvar o Fogo”.
Para a professora, parte do incômodo provocado pelo autor se deve ao fato de ele ser de fora do eixo Rio-SP e ter feito grande sucesso com uma obra que, quaisquer que sejam seus defeitos, não pode ser descartada como meramente comercial. “Ele [Itamar] é o alvo perfeito para gerar uma ‘treta’, o que mostra como o campo literário também se curva à dinâmica das redes sociais, da busca por gratificação imediata e ‘lacração'”, diz.
Ao mesmo tempo, diz ela, se não é papel da crítica provocar os autores para gerar polêmica, tampouco o autor deveria receber a crítica como agressão ou lançar mão de uma acusação de racismo, sem evidências para sustentá-la. “Não precisamos de mais cerceamentos, precisamos de mais espaço e reconhecimento para todos — especialmente para mulheres e negros”, defende.
Crítica literária e doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP, Yudith Rosenbaum lembra: “Tivemos críticos e críticas, de cor negra ou não, extraordinários, que trataram de autores negros na historiografia literária brasileira. Machado de Assis lido por Roberto Schwarcz, Lima Barreto por Alfredo Bosi, entre outros, que só enriqueceram e aprofundaram a fortuna crítica desses escritores”.
“O valor da crítica e da obra depende, a meu ver, da consistência e pertinência dos argumentos, no caso da crítica literária, e da obra em si”, afirma ela, que ressalta, no entanto, que “vivemos uma época em que as políticas identitárias são absolutamente necessárias e fundamentais em sua luta inadiável”.
Para Rosenbaum, é importante que o crítico tenha noção disso. “Acredito que seja importante reconhecer a inequívoca conquista de haver cada vez mais publicações de autores que pertencem a essas maiorias minoradas. Isso em si mesmo já é uma enorme diferença em relação ao passado.”
Leitor racista
Na visão do escritor, biógrafo e crítico Tom Farias, o mercado literário “não dá ponto sem nó”. Para ele, “a indústria do livro está investindo em autores negros, porque tem algum retorno. Ainda não é o retorno necessário. Como a grande maioria das editoras brasileiras é comandada por pessoas brancas, o vínculo é de subordinação e o investimento ainda é pouco proporcional em relação aos escritores brancos”, sustenta.
“Nos ‘calhaus’ dos jornais, a veiculação é sempre de autores brancos. Aponte quem quiser qual autor negro tem o mesmo tratamento nestes espaços. Qual editora banca isso? Conceição Evaristo é uma das mais queridas autoras brasileiras. Ela mesma se lançou nos anos 1990 pelos “Cadernos Negros”. No entanto, só agora, 33 anos depois, atingiu a marca de 500 mil livros vendidos. Quando Conceição ficou na lista dos mais vendidos? O comportamento do público leitor brasileiro também é racista”, afirma Farias.
Para ele, há uma falta de sensibilidade e uma leitura rasteira das obras de autores negros. E assinala que esse superficialismo analítico recai tanto em Itamar Vieira Junior como em Stefano Volp. “A capacidade de fabulação desses dois autores é muito grande. O domínio da escrita, idem. No passado, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) também passou por isso. Ela sobreviveu, independentemente de seus detratores.”
“Reconhecer o talento de Itamar e Carolina — dois escritores de autoria negra — é muito difícil. A economia de elogios, neste caso, é parte do padrão de dominação”, diz Tom Farias. “Cerca de 80% de todos os autores publicados no país são de origem branca ou não negra. Gostaria de saber quais deles também ‘escrevem mal’.”
Para a escritora e historiadora Cidinha da Silva, uma crítica bem fundamentada pode ajudar autores a corrigirem seus erros e melhorarem seus textos. “A crítica pode apresentar argumentos, com os quais, como autora, posso concordar ou não. Mas aceito-os enquanto algo divergente do que penso ou escrevi. Posso até contra-argumentar, mas a crítica fundamentada não será objeto da minha ira”, diz.
Ressaltando que não deseja discorrer sobre o posicionamento político de colegas que se insurgiram contra críticas desfavoráveis, Cidinha afirma: “Mesmo que discorde muito do que um determinado crítico diga a respeito de um trabalho meu, não será admissível que eu mobilize a minha minúscula rede de seguidores para intimidar, ameaçar e agredir o crítico e seus familiares.”
“Contudo”, completa ela, “se a crítica é estruturada sem que se faça uma leitura profunda da obra, sem que haja argumentos honestos e respeitosos, que demonstrem como e porquê o texto é ruim, eu me insurjo. Não aceito piadinhas, comentários irônicos de quinta categoria, achismos, julgamentos ideológicos e pirotecnia verbal lacradora em cima do meu trabalho sério e intelectualmente honesto.”