Para Ives Gandra: sobre direitos e privilégios

São Paulo, 20 de novembro de 2017.

Prezado Ives Gandra,

Márcia Lima [1] para o Portal Geledés

 

Hoje, 20 de novembro, feriado nacional,  resolvi dedicar parte do meu dia  para responder às suas perguntas tão sinceras:

  1. “Não sou nem negro, nem homossexual, nem índio, nem assaltante, nem guerrilheiro, nem invasor de terras. Como faço para viver no Brasil nos dias atuais?”
  2. “E são tantas as discriminações, que chegou a hora de se perguntar: de que vale o inciso IV, do art. 3º, da Lei Suprema?”

Podemos começar pelo feriado de hoje que acredito ser mais um incômodo na sua lista. Hoje o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra, uma data que para muitos é um absurdo. Afinal, mais um feriado. Celebramos Tiradentes, Independência, Proclamação da República porque não celebrar e reconhecer a luta contra escravidão, um massacre histórico contra uma população?

Saiba que como um homem branco heterossexual, o senhor pode continuar a viver tranquilo. Esse pequeno conjunto de  direitos adquiridos pela minoria que tanto lhe incomoda, está longe de abalar o seu quinhão de privilégios assim como já está sendo devidamente retirado pelo ilegítimo governo de Michel Temer. Pelos dados mais recentes divulgados pela Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, a situação dos negros deste país voltou a piorar. O senhor não verá nenhum dos seus preteridos na busca pelo emprego pelo simples fatos de serem brancos. Problema que a população negra historicamente enfrenta todos os dias. Os negros deste país, por conta do racismo e da discriminação contemporâneos, reforçados cotidianamente por estereótipos e violências do tipo “coisa de preto” são sistematicamente preteridos. Isso faz com que os negros representem 54% da população do país e correspondam a 75% dentre os mais pobres. Há muitos livros de renomados intelectuais (inclusive brancos, se o senhor preferir) que que vão lhe explicar isso direitinho.

Dados recentes e oficiais demonstram que os negros com nível superior controlado por hora trabalhada, ganham 63% do salario do seu grupo (homens brancos). As mulheres brancas, senhor Ives Gandra, fique tranquilo, também ganham menos que os homens brancos, mas mantêm um salario mais elevado que  o das mulheres e dos homens negros. Ou seja, a educação permanece como uma enorme barreira para os negros no Brasil, mas superá-la não tem sido suficiente para evitar o tratamento discriminatório, algo também proibido pela Constituição.

Por falar nisso, essa mesma Lei Suprema, prevê que o estado corrija desigualdades.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Foi baseado neste princípio que o Brasil adotou as políticas de Ações Afirmativas. Houve um longo debate sobre isso no Supremo Tribunal Federal. Sugiro a leitura dos votos dos ministros afirmando que essas políticas não ferem a Constituição. Mas eu creio que o senhor já sabe disso, né?

Mais um dado tranquilizador: seus descendentes jovens podem continuar saindo às ruas que terão menos chances de serem vítimas de violência policial. Eles também têm menos chances de serem mortos. De acordo com os dados do Fórum de Segurança Pública e do Atlas da Violência do IPEA/FSP, em 2015, 58.467 pessoas foram vítimas de mortes intencionais no Brasil. O que significa 161 mortos por dia. Dentre os mortos, 54% eram jovens na faixa dos 15 a 24 anos e 73% eram negros. Não se preocupe, Senhor Ives Gandra, a taxa de homicídio dos negros aumentou 18,2%, mas a dos brancos reduziu 12%.

Mais um dado para lhe tranquilizar. Em 2015, 4.621 mulheres foram assassinadas. Entre 2005 e 2015, houve um crescimento de 22% da mortalidade de mulheres negras e a redução de 12% das mortalidade das mulheres brancas.

O senhor não verá nenhum dos seus assassinado por homofobia. Sim, senhor Ives Gandra, as pessoas morrem por que são gays e transexuais. E o Brasil é o país que mais mata. O inciso III do artigo 1o.  ressalta que a Republica Federativa do  Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Ora, se as pessoas morrem tendo como causa sua orientação sexual cabe à República garantir seu direito a vida. As Conferencias LGBT procuraram justamente discutir meios para isso porque (talvez isso lhe incomode um pouco) eles são cidadãos iguais ao senhor.

O senhor continuará bem alimentado, apropriadamente vestido, não estará sobre a mira da polícia, seus filhos e netos  têm mais chances de conseguir um emprego, acessar uma educação de qualidade (mesmo com as cotas, viu?). Se cometer algum delito terão direito a julgamento justo, não serão abordados de forma inapropriada nem violenta. Ninguém lhe ofenderá de macaco, fedido, anormal, depravado e suspeitará que é um ladrão e tentará tirar a sua vida simplesmente porque o senhor é um homem branco, heterossexual.

Eu acho que o que realmente lhe aflige é a ideia de igualdade, pois para alguns esta é uma condição a ser conquistada e o estado brasileiro tem a obrigação de garantir isso. Sua igualdade não está sendo violada. Ele está sendo estendida a outros indivíduos através das políticas que tanto lhe afligem. O inciso  IV da Constituição, citado pelo senhor, trata da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ora, se o bem é de alguns e não de todos, como corrigir a discriminação sem produzir políticas para os grupos discriminados?

Quanto aos quilombolas, indígenas e concentração de terras, sinceramente….. Qualquer dado precário sobre isso nos informa que a desigualdade no acesso à terra está entre as nossas maiores vergonhas nacionais.

Diante deste quadro, sugiro uma mudança na pergunta: Como fazem negros, mulheres, transexuais e indígenas para viver neste país? Já adianto a resposta: lutamos, senhor Ives Gandra, e temos uma péssima notícia: não vamos parar nunca!


 

Arquivo Pessoal

[1] Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento associada ao Centro de Estudos da Metrópole (CEBRAP-CEM).

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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