Racismo é um conceito transformado em realidade, desenvolvido a partir de pré-conceitos inerentes a qualquer ser humano, que afeta direta e sistematicamente um conjunto de seres humanos em detrimento a outro. Em outras palavras, racismo é uma estruturação social e de poder que acarreta um processo de dominação de pessoas sobre outra, de maneira estrutural e organizada, visando a reprodução e perpetuação das estruturas de poder e de seus benefícios materiais e simbólicos restritivos ao grupo étnico-racial e social dominante. Sendo, portanto, um equívoco confundirmos ou equipararmos preconceito com racismo, pois embora estejam intrinsicamente ligados, com um (racismo) não existindo sem o outro (preconceito), eles não são a mesma coisa(1), são manifestações humanas – em seus sentidos históricos, culturais, sociais e psicológicos – distintas. Nesse sentido, todo ser humano é preconceituoso, mas não necessariamente racista, pois para tal, deve ocorrer uma série de combinações simbólicas e desenvolvimentos históricos para tal. Por isso, historicamente e economicamente, o racismo é uma construção sofisticada de controle e dominação acerca de um grupo sobre outro. Um fenômeno histórico-social que nos permite abordar e problematizar o desenvolvimento da humanidade ao longo do tempo, suas complexidades, contradições, conflitos e os processos de resistências a esta realidade e a busca por sua superação, que acaba por revelar as mazelas (preconceito/racismo) e as virtudes (humanismo/solidariedade) que nos caracterizam dialeticamente enquanto espécie.
O racismo não é um fenômeno recente, pois está atrelado ao próprio desenvolvimento civilizatório da humanidade, mas o que diferencia sua versão moderna das demais é a sua utilização para justificar os processos de ocupação territorial – em nome do Deus cristão – de África e Ásia, de “descobrimento” e colonização da América e Oceania, naturalizando a dominação de um grupo específico (europeu) e ideal tipo (homem branco cristão) de humanidade a ser atingido, justificando assim os processos de escravização moderna que resultariam na etapa de acumulação de riquezas e exploração do trabalho humano que resultaria na constituição do capitalismo e na solidificação das desigualdades e diferenças enquanto base das relações sociais das sociedades ocidentais.
Sociedades estas constituídas ou desenvolvidas em cima do trabalho de seres humanos escravizados e desumanizados de maneira sistematizada, por gerações e mais gerações, causando chagas não somente físicas, mas mazelas econômicas e sequelas psicológicas que cravam a alma das sociedades contemporâneas, além de suas estruturas sociais racistas e excludentes. De tal maneira, que daí se explica a existência de seculares movimentos e construções históricas e políticas de resistências antissistêmicas e antirracistas desenvolvidas pelas populações indígenas e africanas/afrodescendentes ao longo dos últimos séculos.
Um conjunto de manifestações e ocorrências históricas, que demonstram cabalmente o fato de não existir “racismo reverso” nem como conceito, muito menos enquanto prática, pois para tal ser verdadeiro deveria existir, ou ter existido, uma sociedade construída integralmente em torno do trabalho escravo e suas consequências sociais e psicológicas, em que as suas relações sociais e práticas de sociabilidades fossem caracterizadas por uma “naturalização” dialética de superioridade de um grupo humano sobre o outro motivado por sua “raça”, em que o sujeito social dominante, o referencial tipo não fosse o “branco/europeu”. Há modelo civilizatório moderno, contemporâneo, baseado nessa estruturação social? Nas sociedades desenvolvidas ou construídas a partir do modelo de ocupação-colonização europeia, há exemplos de relações sociais coletivas que fujam a essa dinâmica estrutural e ideológica eurocêntrica?
A resposta é não! Não existe sociedade baseada em tal estrutura de inversão de valores e em que não houvesse uma herança escravocrata que se faça reproduzir cotidianamente nas vidas dos historicamente marginalizados. O racismo moderno possuí uma historicidade, um conjunto de fatores e fenômenos que não permite a adulteração dos fatos, que não permite a edificação de falsidades e mentiras ante a tanto sofrimento, dores e mortes que essa abjeta construção humana ainda causa nos dias de hoje!
Por isso se faz fundamental que se fale, que sempre se exponha a verdade, para que ela não seja deturpada ou ignorada, racismo reverso NÃO EXISTE!
E a tentativa de se construir uma narrativa que viabilize esse ideário no Brasil não se dá por acaso, mas sim enquanto consequência dos processos de articulação política desenvolvido por grupos políticos e movimentos sociais de extrema direita, em nome da preservação daquilo que eles defendem como valores/símbolos de “cristandade/civilização branca”.
Toda vez que se faz propalar esse ideário ahistórico, de revisionismo chulo, e mal intencionado. Na verdade está se dando divulgação a um ideário de cunho fascista, portanto alienante, que visa distorcer os fatos históricos afim de culpabilizar os historicamente discriminados e marginalizados enquanto os verdadeiros construtores e reprodutores do racismo.
É um jogo de disputa narrativa e de poder, baseado em duas frentes:
-) Defesa sistemática da não existência ou ocorrência de racismo no Brasil, culpabilizando aqueles que defendem o contrário pelas próprias mazelas sociais, de serem “vitimistas”, de realizarem sistemática autodiscriminação e constituintes de um processo de destruição de nosso harmonioso (social) e democrático (racial) modelo de sociedade;
-) Utilizar a existência do racismo – que dizem não existir – quando lhes convém, para lhes caracterizar enquanto vítimas de um modelo reverso de racismo (geralmente usando personalidades negras simpatizantes ao seu ideário, como forma de legitimar a correção e precisão dessa sua narrativa histórica-política), quando são apontadas as contradições de seus discursos, imbuídos pela defesa de seus privilégios estruturais em uma sociedade estruturalmente racista e elitista.
São táticas de disputas ideológicas, que visam a manutenção do status quo vigente, que não admite a problematização e questionamento ao nosso modelo civilizatório de branquitude. Um discurso ideológico que – como em todo sistema de exploração – também se reproduz e se fortalece com as divisões internas aos grupos socialmente minorizados, que por vezes acabam reproduzindo os valores e ideários dos grupos dominantes, ou agindo politicamente – por vezes de maneira inconsciente – de acordo com os interesses destes.
Falar acerca e problematizar o racismo no Brasil, assim como este se faz presente enquanto elemento estruturante de nossa sociedade não é “lacração”, “politicamente correto” ou “importação de ideologias estranhas a nossa estrutura social e histórica”, mas sim um ato legítimo e explícito em se disputar politicamente a construção de uma sociedade contemporânea que reconheça as mazelas de sua herança escravocrata – que não foi benéfica e nem idílica, como promulgam várias das vertentes que condenam a lutas antirracistas – e a dívida histórica com as populações indígenas e afrodescendentes até os dias de hoje, que afetam diretamente os destinos de grande parte de seus sujeitos sociais, para que assim possamos efetivamente construirmos uma nação de fato, plenamente cidadã em direitos e oportunidades a todos os seus habitantes, independente de suas origens sociais e raciais – assim como de religiosa ou de gênero – ou privilégios que possam advir pelas mesmas.
Uma noção sempre presente de superação de nossas inequidades sociais, de nossas mazelas sociais, que desde sempre fizeram e fazem parte das lutas afro-brasileiras por justiça, democracia e igualdade, desde os processos de rebeliões e insurreições escravas, e das constituições de quilombos constituídas desde os tempos do Brasil colônia, passando pela constituição das imprensas negras no tempo do império, até os movimentos sociais e políticos urbanos desenvolvidos já no regime republicano, da Frente Negra Brasileira (FNB) nas décadas de 1930/1940, ao Movimento Negro Unificado (MNU) constituído em final dos anos 1970, aos movimentos contemporâneos de negritudes e antirracismo como o hip-hop, o feminismo negro e os LGBTQ+. Representações políticas e diversas, plurais e por vezes conflitantes, quando não contraditórias, em suas práxis, mas sempre em busca de um não aceitar aos processos de alienação, de desumanização e apagamento das existências afro-brasileiras e de sermos quem somos, sem sermos medidos por isso por padrões sociais e culturais que não nos representam e não podem, portanto, nos balizar e definir enquanto socialmente inferiores.
Nesse sentido, que não se culpe o discriminado pela discriminação, não se culpe as vítimas por suas mazelas e sofrimentos, não se culpe os injustiçados pela injustiça, não se culpem os revoltados pela revolta. Mas que se culpem os defensores dessa ordem vigente, assim como os “indiferentes”, os falsamente alienados que se beneficiam sem pudores de nosso arcaísmo social e racista. Que eles negam existir, mas que defendem com “unhas e dentes”, contra tudo e conta todos, não importando as consequências que tal ato possa acarretar.
Desafi(n)ar o coro dos contentes é preciso, e não serão os “deitados em berço esplêndido” que farão isso. As resistências negras no Brasil constituíram ao longo dos séculos todo um arcabouço referencial que tão bem nos informa e conscientiza sobre essas lutas por, literalmente um novo mundo. São inúmeros, incontáveis, cantos, lamentos, religiosidades, batuques, capoeiras, sambas, poesias, pinturas, danças, literaturas, revoltas, saberes e potências transformadoras de nossa realidade-mundo devem cada vez mais serem divulgadas, circuladas e assim utilizadas para geração de novas formas de resistências afrodescendentes, sempre contextualizadas aos tempos contemporâneos ao mesmo tempo em que louva e perpetua as ancestralidades que lhe deram origem. Que tais historicidades não sejam esquecidas ou renegadas, ainda mais em tempos que parcela da militância negra parece se deixar balizar ou encantar pelos interesses corporativos – portanto institucionais e sistêmicos – das grandes mídias, através de reality shows em que todos os padrões negativos de sociabilidades associadas as populações negras, mas que são inerentes a qualquer grupo humano, são potencializados e sofrem edições, são ordenados para constituição de uma narrativa aparentemente neutra e não intencional, e assim negativando a todo um grupo étnico-racial e suas reivindicações políticas e práticas contestatórias, ao mesmo tempo em que mantem-se intacto e não questionado a perpetuação de nosso modelo de sociedade racial e socialmente excludente. Uma realidade que parece dar frutos, quando analisamos as repercussões que tais programas geram e principalmente aos comentários – vários de cunho explicitamente racistas – que surgem e são reproduzidos sem pudores através das mídias sociais.
Uma ação que não consideramos ocorrer por acaso, já que as mídias corporativas são constituintes dos poderes hegemônicos, fazem parte dos grupos políticos e econômicos que representam, defendem e perpetuam os interesses das nossas elites. Que teve como uma de suas principais consequências a divulgação cada vez maior do ideário de “racismo reverso”. Por coincidência, sem a devida divulgação e contextualização histórica e política que tal ideário se faz constituir enquanto uma resposta extremista, ultraconservadora de grupos direitistas, de supremacistas brancos e neonazistas, como se fosse “apenas” uma resposta espontânea e natural dos “cidadãos de bem”, indignados e cansados dos radicalismos do movimento negro no Brasil, e não um exemplo dessa forma de ação política articulada da extrema direita internacional, que têm em nossas terras um de seus terrenos de atuação mais férteis e significativos, ainda mais após os resultados da última eleição norte-americana em 2021.
São tempos difíceis, confusos, por vezes até desesperançosos. Vivemos em época sombria, de prevalência de discursos obscurantistas e obtusos, em que ódios e preconceitos são promulgados e glorificados enquanto exemplos de superioridade moral e das melhores virtudes humanas. Tempos em que mentiras são aceitas e reproduzidas enquanto verdades absolutas e incontestes, em que a ignorância é rainha suprema!
Mas não nos esqueçamos – como tão bem ensinam as ancestralidades negras e suas resistências decorrentes – que toda luz advém da escuridão, de que não há mal que dure para sempre e que não há mentira que seja eterna! E que até por isso, devemos dizer o óbvio em alto e bom som, para que não haja dúvidas (e que o absurdo não se torne razão): RACISMO REVERSO NÃO EXISTE!
NOTA DE RODAPÉ: E essa é uma falha interpretativa de realidade histórica e social, pois quando se faz uma denúncia contra o racismo estrutural no Brasil, e ao Sistema de exclusão e discriminação que ele sustenta e acaba por reproduzir, é comum se ouvir “mas nem todos os brancos são racistas”, sendo que o movimento negro nunca promulgou que “todos os negros são racistas”. Essa tentativa de querer diluir as importâncias e significados das lutas e reivindicações antirracistas e pró negritudes, como se fossem ataques direcionados individualmente a cada pessoa branca é extremamente equivocada, quando não de má fé, ao querer demonstrar que ao final “todas as dores são iguais”. O que resulta em concepções equivocadas – os famosos “eu acho”, os tão presentes “na minha opinião” – que abrem espaços para a perigosa prevalência do senso comum, do tipo “eu também conheço negro(a)s racistas” ou “eu já fui vítima de racismo por ser branco(a)”. Assim confundindo e promulgando ações individuais de preconceito como se fossem racismo, sem levar em conta que são construções históricas e políticas diferentes. No Brasil é a população negra que ocupa os estratos economicamente mais baixos da sociedade brasileira, além de ser a vítima sistêmica de violência estatal – via forças de segurança públicas – e não estatal – através de grupos neonazistas, de supremacistas brancos ou de perseguição aos cultos e adeptos de religiosidades afro-brasileiras -, além da exploração e erotização simbólica e cultural dos corpos negros, que resultam na completa desumanização destas pessoas no imaginário social e cultural brasileiro. O contrário, ocorre de forma histórica e sistêmica? De maneira conjuntural e coletiva, estes exemplos se aplicam a realidade da população branca brasileira? Não, não ocorre, e é por isso que não existe racismo reverso.