Paralimpíadas: atletas explicam por que ‘superação’ não resume suas histórias

Jogos de Tóquio levantam polêmica sobre capacitismo, termo conhecido como discriminatório em relação às pessoas com deficiência. 'É preciso focar no atleta', diz profissional.

FONTEPor Carolina Cruz, do G1
Ariosvaldo Fernandes, mais conhecido como Parré, representa o Brasil nos Jogos Paralímpicos de Tóquio (Foto: Instagram/Reprodução)

“Hoje sou reconhecido por ser um velocista, por me destacar no esporte, e não por ser uma pessoa com deficiência”. A frase é de Ariosvaldo Fernandes, de 44 anos, o Parré, que compete no atletismo durante os Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020.

Assim como Parré, vários atletas – e pessoas com deficiência que atuam em outras áreas – têm buscado explicar que preferem ser destacadas por suas conquistas, e não pelas limitações. O capacitismo (saiba mais abaixo), termo que não existe no dicionário, mas que é usado entre pessoas com deficiência e especialistas para se referir à discriminação e ao preconceito, está presente no debate sobre os jogos deste ano.

Para Guilherme Costa, de 29 anos, medalhista paralímpico no tênis de mesa em 2016, e morador do Distrito Federal, não se trata apenas de histórias de superação.

“Temos coisas mais importantes. É preciso focar no atleta”, diz o tenista.

Guilherme Costa, morador do DF, levou medalha nos Jogos Pan-Americanos de 2019 (Foto: Alê Cabral)

‘Olhar de pena’

Luiza Habib, de 24 anos, trabalha com a produção de conteúdos com o objetivo de “normalizar a deficiência”. Estudante de farmácia na Universidade de Brasília (UnB), ela tem deficiência motora e compartilha o cotidiano nas redes sociais.

Para Luiza, “a história de cada um vai muito além do que as pessoas conseguem enxergar”.

“Entendo que as pessoas vão olhar diferente, porque são curiosas, mas, muitas vezes, é um olhar de pena, que só a gente consegue entender.”

Luiza é estudante e usa as redes sociais para falar sobre deficiência (Foto: Arquivo pessoal)

Enquanto acompanha os jogos paralímpicos, Luiza conta que percebeu comentários inconvenientes.

“Estou atenta ao que as pessoas falam, como ‘ele ganhou mesmo sem os dois braços’, ou ‘coitado’, ou ‘exemplo de superação’, quando, na verdade, a pessoa treinou e se preparou bastante para aquilo e é capaz também”, diz a estudante.

Diálogo e informação

O tenista Guilherme Costa nasceu em Manaus (AM), mas mora em Brasília e atua profissionalmente desde 2013. O atleta não está competindo em Tóquio, mas acompanha os jogos na torcida. Para ele, o diálogo é a melhor forma de combater a discriminação.

“Eu sempre tento conversar quando é algo que me incomoda. Mas não importa o que a gente faça, a gente carrega essa imagem muito forte de estar em uma cadeira de rodas, ou não ter um membro do corpo”, diz o tenista.

O atleta percebe na inclusão o caminho para reduzir a discriminação e até mesmo a “pena” que as pessoas, muitas vezes, sentem em relação a quem tem algum tipo de deficiência. “Conheço pessoas que só começaram a notar onde tem rampa, por exemplo, depois de ter contato comigo. Quanto mais pessoas envolvidas, melhor”.

O medalhista destaca que a paralimpíada é uma oportunidade de aproximação. “O Brasil tem o atleta paralímpico com mais pódio do mundo, que é Daniel Dias. Temos também modalidades que só existem nos jogos paralímpicos, como a bocha”, aponta.

“Os brasileiros precisam abraçar o esporte paralímpico e ver que têm muito mais o que notar”, diz Guilherme.

Assim como o tenista Guilherme Costa, a estudante Luiza Habib também vê políticas inclusivas como solução. Ela critica a fala do ministro da Educação, Milton Ribeiro, de que há crianças com “um grau de deficiência que é impossível a convivência”.

“Muito [do preconceito] é por conta desse tipo de visão. Na minha sala de aula, na escola, tinha alunos com síndrome de Down, por isso, eu cresci acostumada com isso”, diz a universitária.

“Se você está em um lugar que não tem pessoas com deficiência, não é porque nós não existimos, é porque aquele lugar não é adaptado, não é convidativo. Mas nós somos muitos”, diz Luiza Habib.

Capacitismo

O nadador brasileiro Wendell Belarmino conquistou a medalha de ouro nos 50m livre da classe S1 nos Jogos Paralímpicos de Tóquio (Foto: Marko Djurica/Reuters)

Cerca de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo — 15% da população global — têm algum tipo de deficiência documentada. No Censo 2010 do IBGE, quase um quarto da população declarou ter algum grau de dificuldade em, pelo menos, uma das habilidades investigadas (enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus) ou possuir deficiência mental/intelectual.

Apesar desses números, quem estuda o assunto, ou tem alguma deficiência, diz que esse grupo sofre discriminação em quase todos os níveis da sociedade. Esse fenômeno, conhecido como “capacitismo” — discriminação com base na deficiência — pode assumir várias formas.

O capacitismo pessoal pode ser um xingamento ou ato de violência contra uma pessoa com deficiência. Já o capacitismo sistêmico se refere à desigualdade que as pessoas com deficiência vivenciam como resultado de leis e políticas.

Mas o capacitismo também pode ser indireto e até mesmo não intencional, na forma como usamos algumas expressões. Jamie Hale, CEO da Pathfinders Neuromuscular Alliance, instituição do Reino Unido voltada e dirigida por pessoas com doenças neuromusculares, diz que o potencial de dano existe mesmo se as palavras não forem usadas contra uma pessoa com deficiência especificamente.

“Muitas vezes não é uma tentativa consciente de prejudicar as pessoas com deficiência, mas ajuda a construir uma visão de mundo na qual ser uma pessoa com deficiência é negativo”, diz Hale.

“Descrever alguém como ‘aleijado’, ‘incapacitado’ é dizer que ele está ‘limitado’ [ou] talvez ‘aprisionado'”, afirma o CEO.

Brasil, potência paralímpica

Evelyn Oliveira e Petrúcio Ferreira carregam a bandeira do Brasil na abertura das Paralimpíadas (Foto: Buda Mendes/Getty Images)

O movimento paralímpico começou a ganhar força nos anos 1950. A primeira edição das Paralimpíadas foi em 1960.

O Brasil estreou em 1972 e, nos anos 1980, já tinha algum destaque nas medalhas. Nas últimas três edições dos Jogos Paralímpicos, o país ficou entre os dez primeiros colocados do quadro de medalhas, e essa posição deve ser mantida em Tóquio.

Segundo pesquisadores, isso acontece porque a falta de apoio às pessoas com deficiência faz com que muitos brasileiros acabem encontrando no esporte a única saída.

A Lei Piva, que rege o esporte olímpico do Brasil, também é a principal fonte de renda do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). A lei prevê que que 2,7% do total bruto de arrecadação das Loterias Caixa, descontadas as premiações, sejam destinados ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e ao Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), nas proporções de 62,96% e 37,04%, respectivamente.

Segundo dados da Loteria Caixa, em 2020 a arrecadação bruta com apostas chegou a R$ 17,1 bilhões. Cerca de R$ 460 milhões foram para os comitês olímpico e paralímpico do país.

Empresas privadas também apoiam e patrocinam o CPB. Conforme atletas e dirigentes, esses são recursos fundamentais para a manutenção do alto rendimento do esporte paralímpico brasileiro.

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