Passageiros e motoristas relatam casos de racismo em aplicativos de transporte

imagem: Freepik

Usuários negros dizem ter sido recusados por motoristas; empresas dizem combater discriminação

por Thaiza Pauluze no Folha de São Paulo

Na esteira da explosão do serviço de transporte por aplicativos no país, como Uber, 99 e Cabify, as denúncias de racismo envolvendo passageiros e motoristas se multiplicaram. As empresas se negam a divulgar o total de relatos recebidos, mas dizem ter ações para tentar combater a discriminação.

O ator baiano Heraldo de Deus, 32, foi vítima de racismo ao tentar pegar um carro via aplicativo em três cidades. Na capital baiana, ao acenar e ir em direção à porta do veículo, o motorista se assustou. “Ficou parado como se eu fosse assaltá-lo.” Só quando mostrou o celular e se disse cliente do app que a trava abriu.

No Rio, sair do centro da cidade à noite virou uma missão impossível para Heraldo quando estava acompanhado de um grupo de colegas atores. “Todos que chamávamos, chegavam perto, viam que eram homens negros e cancelavam.”

Na capital paulista, tentou pedir uma corrida para ele e uma amiga. Pouco depois de aceitar, o motorista cancelou. A mulher, de pele clara, solicitou novamente o mesmo trajeto, agora no celular dela: da rua Augusta (centro) para Jabaquara (zona sul). “Ele aceitou e veio buscar a gente. Era a mesma placa, mesmo carro.”

Depois dos seguidos cancelamentos, todos pela Uber, Heraldo resolveu trocar a sua foto no app. “Coloquei uma sorrindo, que eu estava mais simpático. Mesmo numa foto bonita, um negro sério é visto como mal encarado.” E só entende quem passa pela situação, ele diz. “Isso tira nossa dignidade. Negros não pagam mais ou menos, só que a qualidade do serviço é diferente.”

O racismo também atinge quem está à frente do volante. Motorista de aplicativo há um ano e três meses, o paulistano João Artur Carvalho da Luz, 37, já perdeu as contas de quantas pessoas deixaram de entrar no seu carro. “A gente sabe que é por causa da cor.”

João Artur Carvalho da Luz, 37, é motorista de aplicativo e diz que já sofreu racismo durante o trabalho - Jardiel Carvalho
João Artur Carvalho da Luz, 37, é motorista de aplicativo e diz que já sofreu racismo durante o trabalho – Jardiel Carvalho:Folhapress

O primeiro dos casos: foi atender um chamado numa faculdade na Lapa (zona oeste) e passou em frente à única menina com celular na mão. “Ela olhou pra minha cara e cancelou a corrida.” Numa situação semelhante, em Alphaville (bairro nobre de Santana de Parnaíba), resolveu perguntar “você é a fulana?” e recebeu um não como resposta. Rebateu: “mas é que chamou no app e só tem você aqui”. A mulher disse “não sou eu”, virou as costas e em seguida a corrida foi cancelada.

Outra até entrou no carro, em Higienópolis, na região central. Mas, desconfiada, arregalava o olho a cada movimento de João Artur. “Teve uma hora que fui pegar meu óculos de sol, ela se assustou, guardou na hora os papéis que estava mexendo e ficou me vigiando até o final.” O trajeto para chegar ao Ibirapuera durou longos 20 minutos.

Também não saiu ileso o ativista carioca Rene Silva, criador do jornal Voz das Comunidades. Em novembro do ano passado, ele estava saindo da gravação de um programa no Jabaquara (zona sul), com o também ativista Raull Santiago. Ao entrar na rua e chegar próximo aos dois, o motorista deu ré com o carro. Mandou uma mensagem: “destino, destino, para onde vocês estão indo?”, mas logo cancelou a corrida.

“Deve ter achado que eu ia para alguma periferia.” O destino dos dois era o Itaim Bibi, bairro nobre da zona oeste paulistana. Rene conseguiu gravar a recusa do motorista e enviou à Uber, mas “acabou não dando em nada, eles só disseram que iam desvincular ele do nosso roteiro”.

Aconteceu de novo, no dia 8 de janeiro, desta vez no Rio. Saindo de um bar na Tijuca (zona norte) com os amigos, todos conseguiram o carro. “Na minha vez, o motorista parou longe. Já tinha visto a placa e fui até lá. Bati no vidro e mostrei o celular. Ele olhou para mim, abaixou a cara e foi embora”, conta Rene.
Quando abriu o aplicativo viu que o motorista havia perguntado qual era o seu destino.

Rene compartilhou o caso nas redes sociais e a Uber diz ter banido o motorista da plataforma. “Depois de falar do meu caso, apareceram muitos outros relatos semelhantes.”

Um deles foi o do personal trainer Davi Souza de Freitas, 37, que chegou até abrir a porta do carro, mas viu o motorista acelerar. Ele estava na Vila Formosa (zona leste), em frente à academia.

“Até perguntei o nome dele, mas na hora que eu ia entrar, ele manobrou na contramão e foi embora. Foi a primeira e última vez que eu usei Uber”, conta. Davi fez a denúncia no aplicativo e diz ter recebido uma resposta automática de que a empresa iria averiguar o caso.

Davi Souza de Freitas, 37, que já sofreu racismo como passageiro em transporte por aplicativo – Jardiel Carvalho:Folhapress

A vendedora Luana Gonçalves, 22, passou por situação parecida em dezembro. Parada na frente de um shopping em Curitiba, viu o carro do aplicativo passar um pouco do endereço. Correram ela, o namorado e uma amiga. Luana chegou a perguntar: “Por que você não quer pegar a gente?”, mas o motorista fechou o vidro e foi embora, furando o sinal vermelho.

“Estava num dia maravilhoso, mas quando vi o cara fugindo, me senti horrível. Acabou o rolê, estragou nosso final de semana”, diz.

Para Marlon Luz, 38, dono do canal no YouTube Uber do Marlon, é mais provável que o motorista tenha deixado de pegar o passageiro por não se sentir seguro. “Aí não é por causa da cor, é pelo medo de ser assaltado.”

“Só no estado de São Paulo há, em média, um assalto a cada duas horas contra motoristas de aplicativos”, exemplifica Marlon, que tem quase 500 mil inscritos no canal. “O motorista às vezes usa o número limitado de cancelamentos que pode fazer para se proteger de certas situações.”

As plataformas dizem em nota ter tolerância zero com discriminação em suas viagens, seja de passageiros, seja de motoristas. Para quem descumpre as regras, em geral, a punição vai da suspensão ao banimento, dizem as três empresas, que afirmam fazer apuração interna dos casos relatados, ouvindo os dois lados. Não divulgam, no entanto, quantos motoristas ou passageiros já foram excluídos após denúncias de racismo.

Nos termos de uso da Cabify não aparecem as palavras racismo, discriminação ou preconceito. Na 99, é um tópico: “não discriminar ou selecionar, por nenhum motivo, passageiro”.

Pelo código de conduta dos motoristas da Uber, “não é aceitável recusar a prestação de serviços com base em características dos usuários, como raça, religião, nacionalidade, necessidade especial, orientação sexual, identidade de gênero ou outra característica individual”.

Aos usuários é solicitado que tratem os motoristas “como você gostaria de ser tratado: com respeito”. “Você encontrará pessoas que poderão parecer diferentes e pensar diferente de você. Por favor, respeite essas diferenças.”

Quanto ao endereço de destino, a orientação é de que o motorista deve levar o passageiro inclusive a áreas que podem ser consideradas de risco, mas que sejam cobertas pela atuação da plataforma.

A Uber também diz fornecer materiais informativos e realizar campanhas em favor da diversidade e do respeito. A 99 afirma fazer rodadas de treinamento com os motoristas e promove curso que orienta sobre o combate ao assédio, desrespeito e discriminação. Já a Cabify afirma promover sessões para os condutores com dicas de atendimento, qualidade, segurança e questões técnicas e tecnológicas.

Um motorista de Uber, disse para ela clarear sua pele e recebeu a melhor resposta possível

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