Paulina Chiziane: “Não volto a escrever. Basta!”

É a escritora mais incisiva no universo literário moçambicano. Começou a publicar por volta de 1984 e, em 1990, lança seu primeiro livro: Balada de amor ao vento. A partir daí, nunca mais cedeu. Vieram mais e muitos livros que a levaram a conquistar o mundo, com muitos aborrecimentos pelo meio, pois a autora nunca se sentiu compreendida no seu país. Também, por isso, Chiziane resolveu abandonar a escrita porque está cansada das lutas travadas ao longo dos 26 anos de carreira. Nesta entrevista, além da escritora se despedir dos seus leitores, estabelece uma leitura sobre os textos que caracterizam a sociedade moçambicana, tocando na religião, na identidade e na liberdade.

Por José Maria Remédios Do O País

É uma escritora que tem defendido o equilíbrio cultural. A literatura para si é um meio para projectar um novo mundo?

A literatura foi sempre assim. Quem escreve um livro, quer, de certo modo, exteriorizar o mundo que vê, o mundo que sonha, tentando trazer um ponto de equilíbrio para o meio que nos rodeia. Para mim a literatura continua sendo um meio onde negociamos a nossa dignidade.

A sua escrita apresenta um conflito entre os que detém o poder e os submissos, quase sempre envolvendo casais. Há aqui o interesse da autora vincar a crença de que é impossível uma relação fértil entre a base e o cume da pirâmide social se as pessoas não despirem a capa do poder?

Tenho viajado por determinadas realidades e, de vez em quando, vejo aquilo que me espanta e que me faz pensar que existe uma maneira de estar além daquela que a maior parte das pessoas conhece. Nesse processo, há casos que encontro conflitos e ao descrever a oposição entre as partes faço ver a quem lê que há uma necessidade de uma sociedade mais equilibrada. Mas nem sempre escrevo com objectivos. Às vezes escrevo apenas porque me apetece, sempre no papel, com a caneta na mão. O computador não me faz tão bem.

Quase sempre, o escritor é uma entidade revolucionária. Pode ser por isso que, em parte, as convulsões sociais contribuem e muito para que um autor resolva escrever um determinado livro?

Esta pergunta tem várias respostas. E posso dizer que existe vários tipos de escritores, como os que escrevem os sonhos cor-de-rosa para ser aplaudidos pela sociedade. É uma escolha individual. Mas também existem escritores que lidam com assuntos que interessam as pessoas. Isto é que faz a diferença entre os autores, daí que nem todos conseguem ser revolucionários. Entre os escritores também há de tudo.

A paulina não escreve para ganhar aplausos como acontece com os escritores cor-de-rosa?

A minha história é outra, é de muita luta. É uma história com guerras permanentes, desde o início da minha carreira. Quando escrevi Balada de amor ao vento, surgiram vozes a dizer que não deveria escrever sobre mitos. Publiquei O 7º juramento, o fogo foi maior. Já me chamaram romancista, disse que não era; chamaram-me feminista, disse que não; chamaram-me espiritista, disse que não; chamaram-me curandeirista, disse que não; quer dizer, cada vez que faço um trabalho, há sempre uma reacção. Qualquer dia gostaria de publicar O diário de um assassino, só espero que me chamem assassina. Resumindo, a nossa sociedade não sabe lidar com quem escreve de uma forma diferente. Infelizmente, nos países recém-independentes, a literatura não é um espaço de liberdade. No meu caso, por exemplo, tinha que escrever de acordo com as mil autoridades que o país tem. É a igreja, a política ou as pessoas, tenho de as escrever bonitas porquê? Quero a liberdade de poder mostrar a sociedade o lado positivo e negativo das coisas e não escrevo para agradar a ninguém.

E não acha que tudo por que passa vale a pena?

Vale a pena, mas estou cansada. O meu país nunca quis-me reconhecer. Talvez esteja a ser ingrata com algumas pessoas. Existe um grupo que se julga dona do conhecimento e quer colocar a sua autoridade sobre a minha liberdade. Mas também existe o leitor comum, que não tem nada a ver com essa autoridade e que acolhe com carinho o trabalho que faço. Contudo, o meu reconhecimento vem de fora.

Está a querer dizer a crítica moçambicana não a compreende?

A raça e o sexo determina o estatuto de quem faz o que quer que seja. Sou mulher e sou preta, então, tudo que faço tem que ter erros. Se não tiver, arranjam. E eu, teimosa que sou, digo-lhes que a minha escrita não tem erro nenhum. E a minha opção vingou porque consegui trazer uma reflexão sobre determinados aspectos culturais que antes nunca tinham sido tocados. Os meus temas exigem coragem, trabalho e pesquisa, sem que ninguém me suporte financeiramente.

Agrada-lhe a ideia de a sua escrita contribui para denunciar as mazelas de moçambique independente através das metáforas nela instaurada?

O meu objectivo maior não é apontar as mazelas. Não gosto de política, raras vezes faço pronunciamentos políticos, mas, o acto de escrever é também um acto político. A partir do momento em que descrevemos determinada realidade, pode ser que quem governe também acorde. É mais ou menos nesses termos que faço meu trabalho. Por exemplo, o meu recente livro, “Ngoma Yethu”, incomoda a todo o mundo, mas não digo nada de especial naquela obra. Quer dizer, digo. Muitas vezes nós falamos de religião, mas não sabemos o que é. De um modo geral, a religião é o culto de preservação da vida humana, enquanto dualidade indivisível. Então, quando falamos de religião, referimo-nos a dois aspectos: corpo e alma. Mas o que visualizamos no nosso país? Um tipo a abrir uma igreja numa garagem, a recolher o dízimo e a ir-se embora, deixando as pessoas mais pobres do que são. Essa é uma das chamadas de atenção que faço através da literatura.

É da opinião que as religiões ou igrejas, se quisermos, colonizam as pessoas?

Não digo sim nem não. Mas contra factos não há argumentos. A evasão colonial foi feita com uma espada e com a bíblia. Ontem foi assim, por que é que hoje seria diferente? Jesus Cristo diz: conheça a tua verdade e a verdade te libertará. Mas as religiões, sobretudo as que aparecem nos últimos tempos, dizem: ignoraram a tua verdade e siga-me, que te vou dar a chave do paraíso. Logo à partida existe uma contradição entre o que Cristo diz e aqueles que se dizem cristãos.

Porquê investir em personagens problemáticas, quase sempre em situação de desvantagem em relação aos factos?

A escrita é este lugar da negociação da identidade. Penso que é preciso dar voz às personagens enfraquecidas para que o leitor desperte para à realidade da sua existência e reflicta sobre a sua condição.

Busca o passado para reconfigurar os fragmentos quebrados, por exemplo, com o colonialismo e com algumas decisões radicais que Moçambique viveu nos primeiros anos da independência?

Este é um outro nível de conversa. Sou o que sou porque nasci de quem me trouxe ao mundo. Para ser o amanhã, tenho de saber de onde é que venho. Então, quando falo do passado, na verdade, é o futuro que me interessa, porque quero uma sociedade que tenha orgulho de si mesma, a partir de si mesma. Se fosse branca ou homem, diriam que Paulina é grande antropóloga. Pessoas que fazem o que faço ganham honoris causa no mundo.

Há “racismo” nas letras?

Não vou falar da palavra “racismo”. Apenas interessa-me fazer um convite para a descolonização do próprio preto, para ver se acordam um pouco.

Depois de Noémia de Souza, é a escritora mais afamada da literatura moçambicana. Isso dá-lhe gozo?

Não sei o que sinto. O que sei é que o meu trabalho significa uma contribuição para a construção de uma identidade porque é preciso descolonizar a mente do moçambicano. Parece que estamos a voltar a ficar presos. Há paradigmas que não têm nada a ver com a nossa cultura. Temos direito de ter diversidade.

A guerra não escapa do seu horizonte como escritora. Ventos do apocalipse e Andorinhas são exemplos disso. Escreveu para imortalizar a barbárie ou, quem sabem, para se livrar dos seus efeitos?

Vim mostrar que há muitas maneiras de contar a história. Nas “Andorinhas”, ah, eu adoro o meu Gordo Imperador, personagem de “Quem manda aqui?”. Foi meu pai quem me contou aquela história, o que mostra que o povo tem sua maneira de escrever a sua história. Em fim, todos os meus livros têm um pouco de mim e de nós porque Moçambique ainda não está escrito.

Em 2012 disse que não queria ser mais do que era. Quem é Paulina Chiziane?

Não sei quem sou e nem para onde vou.

Para si a nação moçambicana é um sonho que ainda está para ser criado. Porquê pensa assim?

A destruição da nossa identidade dura há seculos. Não é porque conseguimos uma independenciazinha que vamos pensar que o país existe. Não. Esta nação é um processo, uma construção permanente. Como povo não nos conhecemos, não nos estudamos e não escrevemos o país. E para muitos, tudo parou. Temos de trabalhar, todos, para a consolidação da nossa independência.

Se a nação moçambicana é um sonho ainda a ser criado, o que dizer da literatura, parte desse sonho?

A literatura ainda está para vir, e nós, escritores de hoje, somos uma pedra nesse percurso. E não há razão para dizer que a minha pedra é melhor ou a maior. Como sou optimista, tenho dito que o meu país será realizado amanhã. Hoje, estou a contribuir para a concretização dessa realização.

Há um ano lançou a iniciativa África, Liberta-te, uma espécie de surge et ambula, de Rui de Noronha, no sentido prático. Aonde quer chegar?

Só quero caminhar, porque sei que não irei chegar lá. Este meu grito é para dizer aos meninos que não fiquem a beber cerveja por pensar que já somos independentes. O processo da independência vai levar muitos anos.

Com os últimos três livros, Na mão de Deus, Por quem vibram os tambores do além e Ngoma yethu, abre uma nova página na sua vida literária, que a distancia da Paulina de O 7º Juramento ou Balada de amor ao vento. Não acha que nestes três livros efectua uma mudança demasiado radical?

O que é radicalismo?

Essas transformações, digamos.

As transformações são sempre violentas, meu filho. Não existe transformações tranquilas. Nesses livros só escrevi aquilo que as pessoas costumam fazer. Tal radicalismo pode residir na coragem que tive de denunciar. Mas digo, as histórias que conheço de religiosos e curandeiros, se tivesse que escrever esse livro o mundo iria ruir. Aqueles indivíduos bonitos, no altar, quando a missa é no Domingo, Sexta-feira vão fazer fumaça no curandeiro. Então, porquê esta relação de amor e ódio? Quer dizer, detestamos o curandeiro de dia, mas amamos-lhe à noite. Enfim, estou aqui, cansada de escrever. Foram muitas lutas ao longo dos 26 anos de carreira literária. É normal que alguém se canse de uma certa profissão e mude. Não gostaria de voltar a escrever, não. Posso publicar eventualmente qualquer coisa, mas escrita como carreira basta. Chegou a minha hora de sentar.

Não estará a trair os seus leitores?

Não. Não tenho nenhum contrato… escrevo porque quero e porque posso. Há um momento que é preciso dizer chega. Então, estou a tentar fazer este exercício de retirada, deixar o espaço para os outros.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Costumo dizer que o melhor livro do Homem é o próprio Homem; o melhor livro do mundo é o próprio mundo; e o melhor de sabedoria é a própria sabedoria. Com isso quero dizer que é preciso abrir a visão para lermos o maior livro da natureza: a vida.

Perfil

Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze (Gaza), a 4 de Junho de 1955. Começa a carreira literária publicando contos na imprensa nacional e, em 1990, torna-se uma referência incontornável ao lançar Balada de amor ao vento. Também é autora de Ventos do Apocalipse; O Sétimo Juramento;Niketche; As Andorinhas; O Alegre Canto da Perdiz; Na mão de Deus; Por Quem Vibram os Tambores do Além? e Ngoma Yethu. Venceu Prémio José Craveirinha e foi condecorada pelo governo português com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. E, ano passado, a contadora de estórias foi homenageada pelo grupo SOICO, pelos 25 anos de carreira e 60 anos de vida. Além de estudada por autores moçambicanos e brasileiros, sobretudo, a escrita de Paulina Chiziane continua a ser adaptada para bailados e peças teatrais.

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