Paulo Lins e a construção da identidade negra

A construção da identidade negra através da cultura africana, a origem do samba, o surgimento das escolas de samba e a umbanda são temas do novo livro de Paulo Lins, “Desde Que o Samba é Samba”, lançado quinze anos após “Cidade de Deus”, seu primeiro sucesso. “Porque quando o negro começou a votar, os políticos se viram obrigados a negociar os votos desta população negra através de seus líderes e os líderes da comunidade negra eram justamente as mães de santo e os sambistas”, comenta. O escritor fala também sobre o caso Amarildo, os rolezinhos e atuação da polícia militar nas favelas cariocas hoje e no período em que se passaram as histórias de Cidade Deus.

 O escritor Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, que deu origem ao filme homônimo, fala sobre o seu novo livro, “Desde Que o Samba é Samba”, em entrevista ao site Livre Opinião. Lançado 15 anos após a sua primeira obra, o romance relata a origem do samba, o surgimento das escolas de samba, a umbanda e a construção da identidade negra no Brasil através das culturas africanas. “É que na verdade o samba e a umbanda (…) foram as manifestações que dignificaram o negro no Brasil. Porque quando o negro começou a votar, os políticos se viram obrigados a negociar os votos desta população negra através de seus líderes e os líderes da comunidade negra eram justamente as mães de santo e os sambistas” explica o escritor ao ser questionado sobre o tema do seu livro.

Paulo Lins fala ainda sobre as diferenças e dificuldades na construção de Cidade de Deus e Desde Que o Samba é Samba, literatura e outros assuntos, entre eles, os novos trabalhos que vem desenvolvendo, a falta de visibilidade e oportunidade para os novos escritores, da circulação das notícias e informações em tempos de redes sociais e acesso à tecnologia, rolezinhos, Amarildo e a atuação da polícia dentro das favelas, comparando o momento atual com o período em que se passaram as histórias de Cidade de Deus: “A polícia agia de maneira muito pior. Já vi matarem crianças e nunca sair na imprensa. Agora isto sai mais, é mais exposto. É essa que é a questão, a divulgação, a repercussão, o debate. Tudo isso e mais as pessoas que estão, de certa maneira, politizadas, além de termos mais liberdade de imprensa. Mas, principalmente, mais meios para denunciar as barbáries da polícia”.

Por Livre Opinião

Paulo Lins: “O samba e a umbanda foram as manifestações que dignificaram o negro no Brasil”

O escritor Paulo Lins marcou a Literatura Contemporânea com o romance Cidade de Deus (1997). Na obra, Lins retratou a violência policial, a falta de auxílio das Políticas Públicas e a rotina das camadas sociais menos favorecidas do Rio de Janeiro entre as décadas de 1960-80. O célebre livro ganhou uma adaptação para os cinemas em 2002, com direção de Fernando Meirelles e codireção de Kátia Lund, a obra cinematográfica revolucionou o formato do cinema nacional.

Quinze anos depois, Paulo Lins lançou seu segundo romance em que relata a origem do samba, o surgimento das escolas de samba, a Umbanda, assim como a construção da identidade negra no país através das culturas africanas. Desde Que o Samba é Samba (2012), tem como ambiente o bairro do Estácio de Sá, local em que nasceu o samba. No enredo, nomes consagrados do gênero musical ganham vida reproduzindo suas composições clássicas. Com uma pesquisa apurada e a licença poética, Paulo Lins constrói uma análise sociológica e antropológica da formação da cultura brasileira do início do século passado.

Em entrevista para o Livre Opinião – Ideias em Debate, Paulo Lins comentou sobre o processo criativo de seus dois romances: “[Os dois] foram difíceis, cada um teve a sua dificuldade”. Ele explicou o início da elaboração dos livros: “Cidade de Deus partiu de uma base científica, de um trabalho que eu estava fazendo para a universidade, eu não pensava em fazer um romance que fosse atingir o nível que atingiu. Desde que o Samba é Samba eu quis resgatar a cultura do negro, do descendente de escravo, a genialidade de certos autores que inventaram a escola de samba e o carnaval”.

Lins também colocou sua posição em relação aos movimentos sociais, os “rolêzinhos” e a violência policial que tomaram a mídia nos últimos meses: “Isso sempre aconteceu, porém antes não havia tanta visibilidade. Agora quando acontece alguma coisa todo mundo vê, todo mundo fica sabendo, por conta da tecnologia”. Sobre os escritores da nova geração, Paulo Lins afirmou existir diversos nomes que estão contribuindo para a Literatura, porém a área necessita de maior visibilidade: “Hoje temos mais divulgação, temos mais condições de entrar no mercado, mas a poesia e os poetas estão aí lutando e sempre estiveram, seja na música, no teatro, o que muda é a visibilidade”. Confira a entrevista na íntegra.

Livre Opinião: Como foi a pesquisa e o processo criativo em seus dois romances? Cidade de Deus e Desde que o Samba é Samba? A distinção está apenas no contexto histórico? Em Cidade de Deus você vivenciou aquele período e aquele contexto, ao contrário de Desde que o Samba é Samba. Qual foi o mais difícil de retratar no enredo da obra?

Paulo Lins: O mais difícil foi Cidade de Deus porque, na verdade, realizei uma pesquisa de dez anos através de um trabalho social e antropológico que estava abrigado na Unicamp e a coordenadora foi a Alba Zaluar. Foi mais difícil porque as pessoas estavam vivas, tratava-se de uma história real e eu vivi aquela história toda. Pode até parecer que é fácil, mas é mais difícil porque haviam várias versões das histórias, às vezes as pessoas protagonistas ou seus irmãos, primos ou pessoas que estavam envolvidas, davam versões diferentes do mesmo caso e isso complicou muito o trabalho. Eu tive que ficar com a história que mais se adaptava ao romance e a que eu mais gostava, aquela que poderia se tornar ficção.  Agora, o Desde que o Samba é Samba já estava todo documentado, digo, eram documentos, eram coisas que eu pesquisei no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, em várias teses de doutorado e dissertações de mestrados, trabalhos já prontos e eu só os adaptei para o romance. Mas foram difíceis, cada um teve a sua dificuldade.

Mas e na questão da mudança do enredo? Porque Desde que o Samba é Samba é, por assim dizer, um pouco mais ficcional, pois as personagens foram criadas por você, mas, em Cidade de Deus você vivenciou aquilo e, apesar de também ser ficção, seu trabalho foi realizado através da recolha de depoimentos e também pelo seu próprio olhar crítico de quem vivenciou aquela realidade. Isso diferenciou um pouco?

Diferenciou justamente por isso. Porque o Cidade de Deus partiu de uma base científica, de um trabalho que eu estava fazendo para a universidade, eu não pensava em fazer um romance que fosse atingir o nível que atingiu. Eu pensei em fazer um trabalho para ajudar a acabar com a violência policial, mas também um trabalho que fosse contribuir para a universidade, para os policiais, para o pessoal da segurança pública e para os antropólogos e sociólogos. Foi nisso que pensei. E em Desde que o Samba é Samba eu quis resgatar a cultura do negro, do descendente de escravo, a genialidade de certos autores que inventaram a escola de samba e o carnaval e que, na verdade, fizeram prosperar e dar continuidade a uma cultura vinda da África.

Mesmo com o sucesso de Cidade de Deus, você só foi lançar seu segundo romance quinze anos depois. Havia pressão da editora, dos leitores fiéis do seu trabalho e do próprio Paulo Lins para este segundo romance?

Muito pelo contrário, a pressão foi mais minha do que da editora. Eu é que me policiei, que fiquei procurando fazer algo que tivesse o mesmo alcance que o Cidade de Deus, mas depois eu desencanei disso e resolvi fazer outro livro, alguma coisa que me desse mais mobilidade e mais atenção, tranquilidade para se escrever e foi exatamente o que fiz. Eu fiquei com muito medo de não repetir o sucesso, mas isso é normal na arte, o segundo livro para todo mundo é difícil e comigo não foi diferente.

O que fez você chegar ao Desde que o Samba é Samba? O que te fez querer escrever sobre esta temática?

É que na verdade o samba e a umbanda – porque o livro também trata da umbanda – foram as manifestações que dignificaram o negro no Brasil. Porque quando o negro começou a votar, os políticos se viram obrigados a negociar os votos desta população negra através de seus líderes e os líderes da comunidade negra eram justamente as mães de santo e os sambistas. Então o samba e a cultura, vamos dizer assim, de origem africana, foi o que determinou, de certa maneira, a inserção do negro na sociedade brasileira.

Em Desde que o Samba é Samba você conta o início da construção de uma identidade negra nacional através do samba e da umbanda. A seu ver, qual é a cara dessa identidade negra atualmente no país?

A sociedade negra já está constituída, mas ela vem num processo de inserção social desde os primórdios da história do Brasil. E essa luta continua. Não se pode comparar a vida do negro brasileiro hoje com de cem anos atrás, estamos muito mais inseridos dentro da sociedade, ainda que falte muito mais. Mas o movimento negro continua lutando a cada dia e isso está nos livros, na internet, nas universidades, nos jornais e nos meios de comunicação. É uma coisa que não pode parar, a gente está lutando a todo o momento, mas falta
muito ainda para o negro ficar em igualdade de condições em relação aos descendentes europeus… Mas a luta continua.

Aproveitando o gancho com os dias atuais, em relação ao tratamento e à repercussão sobre os “rolezinhos” e a questão da violência contra as camadas sociais menos favorecidas da sociedade superexpostas nas mídias, qual é seu ponto de vista, pensando em sua atuação e experiência num trabalho contra a violência a essa camada social, o que você acha sobre estas questões cada vez mais presentes em nosso dia a dia?

Bom, isso sempre aconteceu, porém antes não havia tanta visibilidade. Agora quando acontece alguma coisa todo mundo vê, todo mundo fica sabendo, por conta da tecnologia. É foto, é vídeo e assim tudo está sendo mais discutido. Por exemplo, o que aconteceu com o Amarildo acontece sempre: sempre aconteceu na favela, mas agora com mais visibilidade. Acontecimentos como estes são sempre postos em discussão e não mais escondidas como eram antes. Então isso também é um avanço, porque, apesar de estar acontecendo menos, ainda continua a ocorrer, mas agora nada fica por debaixo dos panos por muito tempo, ao contrário de antes, que nada caia na mídia ou na internet… Não havia internet, Facebook, Instagram, nada disso. Hoje temos mais condições de lutar e de mostrar estas barbaridades que a sociedade e a polícia protagonizam e que não vinham à tona.

Ainda nesta questão, uma maior repercussão gera sim debates, mas são debates que podem levar a alguma solução?

Lógico! Qualquer debate leva a uma solução. As coisas estão sendo mais investigadas, estão sendo mais debatidas, tudo que vem à tona leva ao debate, tudo que vem à tona pode levar a uma solução.

E isso é interessante porque em Cidade de Deus, em 1997, você expôs a violência policial nas comunidades periféricas e isso ainda é uma prática comum nesse meio. O que você acha que pode ser feito em relação à segurança pública e em relação às corporações que atuam nestas comunidades para mudar este quadro?

Bom, antes era muito pior. A polícia agia de maneira muito pior. Já vi matarem crianças e nunca sair na imprensa. Agora isto sai mais, é mais exposto. É essa que é a questão, a divulgação, a repercussão, o debate. Tudo isso e mais as pessoas que estão, de certa maneira, politizadas, além de termos mais liberdade de imprensa. Mas, principalmente, mais meios para denunciar as barbáries da polícia.

Por você ter formação em Letras, o desafio de escrever sempre te deixou inseguro devido ao ambiente acadêmico, por conta de questões como a valorização do cânone literário e rejeição da novidade? Cidade de Deus foi uma novidade, uma obra inovadora na época, mas ainda assim acabou se tornando objeto de muitas pesquisas acadêmicas. Você considera isso uma vitória do seu texto?

Não. Bom, eu queria fazer uma coisa nova, porque a gente sempre pensa em fazer uma coisa nova – e isso todos os escritores –, sempre pensamos em inovar. Eu tentei inovar com o tema, com a escrita, a maneira de escrever, apostando na coloquialidade e também partindo de uma pesquisa antropológica, mas que ainda assim se inserisse de alguma maneira numa tradição literária. Para mim a novidade foi essa, a inovação do tema, a linguagem da favela, a visão interna, tudo isso foi novo na época não só para o leitor, mas também para mim.

E você está vendo muitos escritores com trajetórias semelhantes à sua?

Sim. Em São Paulo, por exemplo, sempre houve muitos e continuam aparecendo muitos. Mas nunca tiveram divulgação. Hoje temos mais divulgação, temos mais condições de entrar no mercado, mas a poesia e os poetas estão aí lutando e sempre estiveram, seja na música, no teatro, o que muda é a visibilidade.

Você pode citar alguns?

Sérgio Vaz, Ferréz, Alessandro Buzo, Marcelino Freire… Tanta gente!

E o que temos de novidades do Paulo Lins?

Bom, eu lancei um livro de poesias agora, chamado Era uma vez… Eu!, que é um livro sobre o lixo. Mas eu sempre fiz poesia e pretendo mesmo é continuar. Também estou na Rede Globo, colaborando para uma novela das sete, com o Alcides Nogueira e o Mário Teixeira. Ano passado já havia feito a série Suburbia e agora continuo na emissora, com este novo projeto. A novela se chama Lady Marizete e vai estrear em 2015. Estamos aí.

Fonte: 247

-+=
Sair da versão mobile