Pela 1ª vez, cidade dos EUA pagará reparação pela escravidão; e no Brasil?

FONTEECOA, por Beatriz Mazzei
Placa do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) em frente a casa de Evanston, primeira cidade dos EUA a pagar reparação histórica em dinheiro a negros pela escravidão e políticas de segregação (Imagem: Getty Images)

A cidade de Evanston, ao norte de Chicago, no estado de Illinois, se tornou a primeira dos Estados Unidos a pagar restituições em dinheiro a pessoas negras como reparação histórica pela escravidão, políticas de segregação e consequências do racismo ao longo dos anos.

Aprovado na semana passada, o programa vai distribuir US$ 25 mil (equivalente a R$ 138 mil) para famílias negras. “Reparação é a resposta legal mais apropriada para as práticas históricas que levaram às condições contemporâneas da população negra “, disse à NBC News Robin Rue Simmons, vereadora que propôs a medida.

Para financiá-lo, a cidade usará doações comunitárias e a 3% da receita do imposto da maconha recreativa, que é legalizada em Illinois. Com o valor, a cidade adotou um fundo de reparação e promete distribuir US$ 10 milhões por 10 anos. O dinheiro será destinado para custear reparos domésticos ou hipotecas.

O acesso à quantia será exclusivo para negros que viveram ou descendam de moradores de Evanston entre 1919 e 1969. O período foi escolhido por ter sido marcado por decretos governamentais e práticas discriminatórias em múltiplas esferas. Além das leis Jim Crow, que institucionalizavam a segregação racial em espaços públicos nos EUA entre 1876 e 1965, a legislação de zoneamento da cidade seguia motivações raciais. Corretores de imóveis, por exemplo, ofereciam a afroamericanos apenas imóveis em regiões apartadas do restante da cidade. Atualmente, 16% dos 75 mil habitantes de Evanston são negros.

“Estamos felizes em ver, pela primeira vez no país, um benefício direito aos danos que vivemos no passado. As ações locais podem impulsionar iniciativas no governo federal”, conta Kamm Howard, copresidente O programa foi reconhecido pela Coalização Nacional de Reparação Afro Americana, ao portal CBS News.

A vida imita a arte

O caso de Evanston é exemplo de como a vida às vezes imita a arte. Vencedora de 11 prêmios no Emmy Awards, a série Watchmen, da HBO, tem como pano de fundo o massacre ocorrido em 1921 na cidade de Tulsa, no Estado de Oklahoma, Estados Unidos, um dos mais violentos da história.

Em maio daquele ano, uma multidão de pessoas brancas invadiram, saquearam e incendiaram casas e comércios de famílias negras no distrito de Greenwood. A comunidade, apelidada de “Wall Street Negra”, era uma das mais prósperas da época devido à descoberta de poços de petróleo que enriqueceram seus moradores. Cerca de 300 pessoas morreram e 10 mil ficaram desabrigadas.

Além de tratar da atrocidade, a série discute as tensões sociais causadas pela política de reparação, já que residentes negros recebiam uma pensão fixa. Na vida real, o pagamento em Evanston será único, o que levanta questionamentos sobre sua efetividade a longo prazo.

Consultados por Ecoa, especialistas dizem que uma ação desse tipo no Brasil encontraria dificuldades para ser implementada e não resolveria o problema estrutural. Desse ponto de vista, dizem, ações afirmativas, como as cotas raciais, são mais efetivas.

Para Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), a reparação financeira traz problemas. “Ela pressupõe que um valor pago pode reparar o problema, quando, na verdade, a discriminação continua operando cotidianamente.”

Um grupo civil chamado Evanston Rejeita Reparações Racistas também repudia a restituição histórica pela via financeira. “A atual proposta de reparação da cidade de Evanston não preza pela equidade racial e por um processo anticapitalista. Como resultado, instituições historicamente racistas como bancos e corporações vão se beneficiar do propósito. A reparação não deveria ser monetizada”, escreveu o grupo. “Pedimos por uma mudança no nome da proposta atual. Ela não deve ser chamada de reparação.”

Cenário internacional: escravidão como crime de Estado

O embate sobre reparação histórica e quais os mecanismos de viabilizá-la não é exclusiva dos EUA. De acordo com Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra, há uma determinação internacional para reparar os efeitos da escravidão, já reconhecida como crime histórico de Estado.

“Cada vez mais se discute o enriquecimento de nações a partir do crime do tráfico humano negreiro. Apesar de terem construído a economia dos países como escravizadas, essas pessoas não tiveram acesso às benesses.”

Empossada em 2015, a comissão surgiu para levantar informações sobre a escravidão no país e discutir formas de indenização aos descendentes de pessoas escravizadas. No Brasil, outras organizações atuam de forma semelhante para reparar erros do passado, como a Comissão da Verdade, que investiga os crimes cometidos durante a ditadura militar ocorrida entre 1964 e 1985 no Brasil.

De acordo com Adami, as iniciativas de reparação histórica vêm ganhando espaço em países como Brasil, Jamaica, Portugal, França, Inglaterra, e recentemente, a Suíça.

Para ele, a medida em Illinois é insuficiente, mas traz uma discussão válida. “Os segmentos privilegiados da população precisam entender que eles não podem deter os frutos do tráfico negreiro e deixar os descentes desses povos à margem”, afirma.

Desafios e possibilidades no Brasil

A reparação em dinheiro poderia ser uma opção no Brasil, diz Adami, mas enfrentaria resistência de órgãos em relação aos critérios de escolha dos beneficiados dentro da complexidade racial brasileira.

Robin Rue Simmons, vereadora de Evanston, é a responsável pela proposta de reparação histórica em dinheiro a negros pela escravidão e políticas de segregação
(Imagem: TNS via Getty Images)

“É difícil pensar em reparações desse tipo para o Brasil porque os efeitos da escravidão se mesclaram com a apologia da mestiçagem e o racismo estrutural”, pondera Luiz Augusto. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% da população brasileira é negra, composta por pretos e pardos.

Outro fator a emperrar a discussão de uma reparação é a negação do racismo no Brasil. “Há segmentos da sociedade que não conseguem enxergar o quão segregacionista é o estado brasileiro e que ficaram seduzidos pelo discurso da cordialidade e democracia racial”, explica.

A ausência de uma política de segregação explícita e institucional, como houve nos EUA até os anos 60, torna a indenização ainda mais complexa, diz Adami. Isso não quer dizer, completa, que o racismo brasileiro é mais brando. “O racismo é estruturante da sociedade brasileira. Aqui ele é mais eficiente e permanente do que o regime Jim Crow nos Estados Unidos ou a segregação do apartheid na África do Sul”, pontua.

Ações afirmativas e preservação da cultura

Uma das ferramentas para atenuar as disparidades raciais no acesso a oportunidades são ações afirmativas, como cotas raciais. Segundo o IBGE, entre 2010 e 2019, o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%. Com isso, chegaram a 38,15% do total de matriculados, índice expressivo, mas abaixo da fatia correspondente à da população negra no total de brasileiros.

“As cotas são uma política de compensação dos efeitos do racismo no presente. As ações afirmativas servem para mitigar as consequências da discriminação”, explica Luiz Augusto.

Outra esfera a ser reparada é a da cultura e memória, lembram os especialistas. Para mudar essa realidade, a Lei 10.639, chamada de legislação afirmativa, cria a obrigatoriedade do ensino de cultura e história afro-brasileira em toda a extensão curricular da educação básica à superior.

“A naturalização do racismo também está na história da África e cultura afrobrasileira nos currículos das escolas, que resumem a população negra do período colonial como escravos. Eles são retratados apenas como uma força de mão de obra na cultura canavieira”, afirma Adami.

Ativa desde 2003, a lei, porém, não possui ampla adesão. “Nesse país, as leis voltadas para os negros acabam sendo para inglês ver. Foi assim desde a suposta abolição. Estamos lutando para que a nossa existência física seja respeitada, quem dirá a nível intelectual”, pondera Bárbara Carine uma das autoras do livro “Descolonizando a Lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências” e docente da Universidade Federal da Bahia.

Apesar da dificuldade, Adami afirma que a discussão de reparação é urgente. “Algumas pessoas dizem que não é o momento para falar disso, que existem outras questões mais importantes. Então quando seria o momento? Não precisamos de um acontecimento específico para agir, já temos anos das consequências do racismo assolando a população preta e parda do país”, ressalta.

 

-+=
Sair da versão mobile