Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo

Eu fui a primeira pessoa que usou o divã da Doutora Koch. Mas não é pra contar isso pros outros, viu? Os médicos não vão gostar. Estou fazendo brincadeira agora. Acontece que fui mesmo… A Doutora chegou, todo mundo com receio, com medo… E a Doutora: “Estou organizando aqui, quero ver quem quer…”. “Eu quero!” Eu sempre brinco que estreei o divã no Brasil

Por Ana Paula Musatti Braga Do Revista Lacuna

Virgínia Bicudo, entrevista a Marcos Maio

Talvez não seja novidade para alguns que a primeira mulher que fez análise na América Latina tenha sido uma mulher negra. Que a primeira pessoa a escrever uma tese sobre relações raciais no Brasil tenha sido uma mulher negra. Que também a primeira psicanalista não médica no Brasil tenha sido uma mulher negra. E talvez já saibam que todas essas credenciais pertencem a uma mesma mulher: Virgínia Leone Bicudo. Para quem já sabe, que este artigo possa servir para lembrar — como forma de contribuir para uma narrativa que pretenda fazer frente à produção do esquecimento, à produção daquilo que fica como se não tivesse existido — e, quem sabe, trazer algo mais que uma versão heroica dessa personagem. Àqueles que não sabiam desse fato e o acham estarrecedor, comungamos do mesmo sentimento de estranhamento: como nunca soubemos disso? Como não nos falaram antes? Como, na origem da psicanálise, alguém tão atento ao preconceito de cor esteve tão atuante e presente e, ainda hoje, a psicanálise se faz tão daltônica em suas pesquisas?

Esse fato faz com que nos perguntemos como esse esquecimento ou essa invisibilização também nos concerne. Não porque sejamos todos invisibilizados, mas justo o contrário: a invisibilização de alguns se dá à custa da vizibilização de outros — então, estamos na cena de alguma forma. Sabemos que o apagamento de uma história não se dá ao acaso, obedece a uma gramática que não é individual, regida por saberes que remetem tanto ao saber inconsciente como a uma lógica de dominação e poder.

Por que a cor — elemento tão essencial na fala não só de Virgínia Bicudo, mas dos homens e mulheres negros e negras que nos alertam para o fato de se perceberem em uma sociedade racializada — aparece tão pouco na produção psicanalítica? Não vamos prometer nenhuma resposta; isso seria não só presunçoso demais, como tarefa que se faz pouco a pouco, pesquisando as Lacunas da história, com muitos parceiros, muitas pesquisas e que não se esgota jamais.

Virgínia Bicudo não se propôs a escrever sobre as contribuições da psicanálise a respeito da constituição subjetiva articulada à negritude e às relações raciais. Diferentemente de alguns poucos, mas valiosos pesquisadores, como Neusa Santos Souza, Isildinha Baptista Nogueira, Lélia Gonzalez[2], Maria Lúcia da Silva, José Thiago Reis Filho, que se dedicaram a pensar implicações da desigualdade racial no psiquismo — discorrendo sobre os desafios, adoecimentos e saídas singulares de vários pacientes negros.

Não, com Virgínia foi diferente. Mas por ter procurado tanto a sociologia como a psicanálise como formas de enfrentamento do sofrimento gerado pelas questões raciais, nos faz supor que teria realizado algum tipo de articulação entre as concepções freudianas e a negritude. Nos faz ansiar por poder apreender, ao menos nas entrelinhas da sua produção, uma psicanálise que inclua mais a questão da cor, ainda que ela não tenha se proposto a isso explicitamente. É com essa expectativa que percorreremos suas trilhas, procurando encontrar os traços de uma psicanálise marcada pela realidade social ou, como é o título de um dos seus artigos, pensar a “incidência da realidade social no trabalho analítico”[3].

A cor aparece declaradamente no seu início profissional e também no fim de sua vida, ao fazer uma retrospectiva; mas a pergunta é: esteve também explicitada e enxergada quando Virgínia Bicudo participou ativamente da instauração da psicanálise no Brasil, especificamente em São Paulo? Sua percepção e seu sofrimento relativos ao preconceito e à discriminação em relação a ela e a sua família desde criança a teriam levado a esse caminho profissional, tornando-se ela mesma pesquisadora e, de certa forma, fazendo parte da pesquisa sobre relações raciais. A sua história pessoal e profissional se mistura com a temática que aborda desde o início de sua produção teórica a tal ponto que nos faz lembrar o quadro de Escher em que o observador de uma gravura numa galeria está, ele mesmo, dentro da cena da gravura que observa[4]. 

Eu fui criada fechada em casa, quando saí foi para ir à escola e foi quando, pela primeira vez, na escola, a criançada começou: negrinha, negrinha. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então eu levei um susto. (Entrevista de Virgínia a Anna Verônica Mautner e Luiz Meyer, outubro de 1983)[5]

Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história. (Virgínia Bicudo, entrevista a Anna Verônica Mautner, 1998)[6].

Naquela época afirmar que havia racismo no Brasil já consistia numa novidade, éramos um país que se acreditava um paraíso racial e a questão da discriminação era atribuída exclusivamente à classe social. Acompanhar o trajeto profissional de Virgínia Bicudo é partir da constatação da existência desse preconceito de cor, como ela nomeava. Este não teria sido somente vivido por ela na sua infância, mas comprovado através de toda uma produção e pesquisa que incluiu formulações extremamente inovadoras, como sua tese de dissertação de mestrado e parte de um relatório fundamental sobre o tema, conhecido como Projeto Unesco-Anhembi.

Na introdução da sua tese de dissertação[7], a primeira produção acadêmica brasileira sobre relações raciais no Brasil, ela menciona, ainda que de forma bastante discreta, como esse tema lhe concerne. Ao falar da importância da interação entre entrevistador e entrevistado, nos diz:

[…] quanto ao primeiro, procuramos estar conscientes dos motivos pessoais que nos conduziram à pesquisa, bem como conhecer nossas atitudes sobre o problema em estudo para o desenvolvimento do autocontrole e autocrítica e, assim, evitar interferir na entrevista e na interpretação do material colhido com possível projeção de condições pessoais.[8]

Ter falado da sua condição como pesquisadora negra naquela época foi extremamente corajoso. Até a primeira metade do século XX a produção acadêmica das Ciências Sociais era proveniente praticamente de homens brancos, alguns negros e pobres, porém homens; algumas mulheres, somente brancas. A junção entre essas categorias de classe, gênero e cor na produção acadêmica brasileira das Ciências Sociais até então era uma absoluta exceção[9].

Assim, Virgínia teria encontrado possibilidade de dizer algo sobre a questão racial dialogando e fazendo contrapontos à produção das ciências sociais da época. Mas e a psicanálise, o que poderia ter a dizer sobre o tema?

Se observarmos a placa do portal da Biblioteca Virgínia Leone Bicudo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, considerando que até a primeira metade da década de 1970 não existiam instituições e cursos de psicanálise fora dos marcos da Sociedade na nossa cidade[10], isso nos faz construir uma primeira hipótese. Se tal placa retrata o que os psicanalistas de lá acreditavam ser uma homenagem para Virgínia e a maneira pela qual queriam lembrá-la, o fato de que se veja ali uma psicanalista sem nenhuma cor, uma senhora cujos traços de sua ascendência africana estão praticamente apagados, não deixa de ser significativo[11]. Curiosamente tal homenagem se faz a uma analista que diz o quanto sua procura pela psicanálise se fez justamente por ter sentido na pele os efeitos da sua cor. O que nos traz a pergunta: enquanto esteve na SBPSP, como a teriam enxergado e o que não teriam conseguido admitir?

Segundo Tânia Almeida: “Seu processo de branqueamento foi notório. Seus traços afrodescendentes foram minimizados desde as mudanças sócio-econômicas do pai, passando pela sua instrução e ocupação, até sua aparência”[12]. No entanto, pensar o seu processo de branqueamento não pode ser visto como algo seu no sentido individual. Não concebemos o sujeito como indivíduo: não o consideramos nem indiviso, total, nem fora do laço com o outro, apartado. Com isso o seu processo de branqueamento durante o seu tempo de aproximação da psicanálise não poderia ser visto também como algo isolado. O estabelecimento da psicanálise em São Paulo está de tal modo intrincado com a presença de Virgínia que não é possível falar de um sem o outro e esse percurso inicial consegue ser inovador, trazendo a presença de mulheres e psicanalistas não médicos nessa prática. Mas como pensar que uma instituição que se cria com a participação de psicanalistas leigos que trabalhavam com os estudantes das escolas públicas de São Paulo, fora do setting analítico tradicional, e que traz dentro do seu quadro, entre os membros mais importantes, uma mulher negra, prefere deixar essa questão da negritude como algo que, quando muito, estaria reservado ao passado dela?

Com isso, optamos por dividir o percurso profissional de Virgínia Bicudo não como Socióloga e depois como Psicanalista, mas sim como Socióloga-Psicanalista até o Congresso de Saúde Mental de 1954 (quando sofre um processo de acusação sobre sua prática) e o período posterior a esse fato. Nossa hipótese é a de que esse episódio, em que o processo de difamação da sua prática atinge o ápice, acaba tendo como “resposta”, por parte dela, um recrudescimento das intervenções e da teoria, com uma modificação importante do seu campo de atuação. O que se via da psicanálise de Virgínia fora do setting analítico até sua ida para a Inglaterra vai perdendo a dimensão e a importância que tinha, cedendo espaço e vez para suas atividades na SBPSP — em que promovia formação teórica, análises didáticas e supervisões. Lembrando que, na década de 1970, a SBPSP se transformara em uma instituição autoritária e bastante hierarquizada, perdendo o frescor que o processo inicial de institucionalização da psicanálise em São Paulo poderia ter significado.

Anos iniciais, entre a Sociologia e a Psicanálise 

O pai de Virgínia, Teófilo Bicudo, era negro, havia nascido de “ventre livre”. Sendo afilhado do importante fazendeiro de café em Campinas, Coronel Bento Bicudo, recebeu sua ajuda para a formação escolar em São Paulo e para a sua admissão na companhia de Correios e Telégrafos, da qual se tornou um alto funcionário[13]. A avó paterna de Virgínia, Virgínia Júlio, nasceu escrava e foi posteriormente alforriada; enquanto que a mãe de Virgínia, Joana Leone, era branca e vinha de uma família pobre de imigrantes italianos: os Leone. “Virgínia, Leone e Bicudo eram três nomes que circulavam pelo mesmo espaço social, o da fazenda, exercendo papéis distintos (o escravo, o imigrante, o dono das terras)”[14].

Olha, a ideia de meu pai era que as pessoas valem pelo estudo, pelo preparo que têm estudando, isso era meu pai. Então, meu pai pôs todos na escola (Entrevista de Virgínia a Marcos Maio, 1995)[15]

Em 1930 Virgínia terminou o secundário na Escola Normal Caetano de Campos e em 1932 entrou no Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo[16]. Esse curso tinha a intenção de promover ações profiláticas relativas à saúde pública e políticas sanitárias, preparando as professoras para intervir junto aos pais e alunos da escola primária para transmitir as regras e os princípios do que se considerava uma educação saudável.

Na sequência, ingressou na Escola Livre de Sociologia e Política, uma vez que considerava o curso da USP demasiado elitista:

Lá [USP] eram os grã-finos e eu não era grã-fina. Pensa que eu era boba? [risos] Eu sabia escolher. Eu vi lá, tudo era filho de papai, Almeida Prado e eu não. A Escola de Sociologia é gente operária, é lá que eu vou. É isso. Sabe, a gente tinha esse feeling. […] Eu disse: “Lá não era o meu lugar” (Virgínia, depoimento a Marcos Maio, realizada em 1995)[17]

Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu sofrimento fosse problemas sociais, culturais. Então me matriculei na Escola de Sociologia e Política. Isso foi em 1935. Eu tinha conflitos muito grandes comigo mesma, mas achava que a causa era social. Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque se o problema era esse preconceito eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado no nível sociocultural. No segundo ano do curso, com a professora Noemy Silveira, tive contato com a psicologia social. Comecei a ler e ali encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: ‘É isso que estou procurando’ [18]

A busca por uma formação em psicanálise ocorreu em seguida,

Então, eu saí por São Paulo procurando onde se estudava psicanálise. E foi assim que comecei. Disseram-me que havia uma pessoa que estudava psicanálise, que era o Durval Marcondes. Procurei conversar com ele […]

Ele disse-me: “Você quer estudar psicanálise? Formação em psicanálise?”

Eu disse. “Quero”.

“A senhora sabe o que é isso?”

“Bem, eu li alguma coisa sobre inconsciente, sobre sublimação…”

A senhora não sabe onde vai entrar! Sabe que vai ter toda a sociedade contra a senhora? Sabe que há um preconceito contra a sexualidade e a senhora vai estudar isso?”[19]

É então que Durval Marcondes lhe indica Dra. Koch, que havia chegado ao Brasil em 1936, após várias tratativas anteriores para vinda de um analista ditada para formação de analistas no Brasil. Em 1927, Durval Marcondes havia fundado a Sociedade Brasileira de Psicanálise, para divulgação e estudo do pensamento freudiano, mas até então não era uma Sociedade filiada à IPA. No Congresso Psicanalítico Internacional de Marienbad, em 1936 — conhecido dos lacanianos por ter sido o Congresso em que Lacan apresentou seu famoso texto sobre o Estágio do espelho, ainda que não tenha podido concluir a sua leitura —, Ernest Jones, que era presidente da Associação Psicanalítica Internacional, toma ciência da intenção de Adelheid Koch, judia alemã, de emigrar para escapar do nazismo e acerta-se a sua vinda para cá.

Virgínia Bicudo começa sua análise com a Dra. Koch em novembro de 1937, assim como Durval Marcondes, Flávio Dias e Darcy Mendonça Uchoa[20]. Virgínia tinha várias diferenças em relação a eles: além de ter uma condição social muito menos confortável (tanto que o pagamento de suas sessões consumia todo o seu salário no primeiro ano), era mulher, negra e não médica. Difícil avaliar quais dessas características produziriam mais dificuldades, talvez fosse a reunião de todas elas.

A sua atuação e formação, tanto na psicanálise como na sociologia, compreende um período de convivência dessas duas formações. Há uma conversa de uma e outra área, entendendo ambas como fundamentais. Concluiu o Bacharelado em Ciências Políticas e Sociais, em 1938, sendo a única mulher de uma turma composta por oito alunos. Nesse mesmo ano, passou a integrar a equipe da Seção de Higiene Mental Escolar coordenada por Durval Marcondes. Esse serviço, segundo seu coordenador, atuava em duas frentes principais: diretamente, com as crianças (através de atendimento médico e psicoterápico); e indiretamente, modificando o ambiente da criança (a escola ou sua casa). Os princípios desse serviço se baseavam numa filosofia higienista, no movimento da “Escola Nova” e no surgimento da psicanálise[21]. Com isso, as crianças até então caracterizadas como anormais[22] passam a ser distinguidas entre as que teriam problemas emocionais e as que seriam portadoras de deficiência mental, numa visão bastante inovadora para a época. O Serviço deveria ser composto por um médico psiquiatra (para avaliação do estado mental), um médico internista (para exame físico), psicologista (para avaliar a condição intelectual e estrutura de personalidade através de testes) e a visitadora psiquiátrica[23]. A visitadora psiquiátrica, função que Virgínia Bicudo exercia, deveria colher a história de vida das crianças através de entrevistas com os pais e professores e de observações diretas na escola e na família e realizar orientações aos pais e professores. Alguns anos mais tarde também deveria ser responsável pela psicoterapia com as crianças com problemas emocionais. Vale apontar que a noção de profilaxia, nesse serviço, transforma o sentido e a conotação eugênica de práticas anteriores, passando a entender as manifestações das crianças como sintomáticas e justificando assim as orientações e intervenções psicoterápicas[24]. Inscrito dentro de uma visão de saúde pública implantada pelo Sanitarista Geraldo Horácio de Paula Souza, o curso de educação sanitária concebia o problema de saúde como falta de educação e encontrava na função da educação sanitária a possibilidade de superar diversos problemas gerados pelo crescimento urbano, através da transmissão de regras e princípios do que seria uma educação saudável, atuando junto aos pais e professores da escola primária[25][26]. É importante lembrar que o trabalho como educadora sanitária e visitadora psiquiátrica exigia e propiciava uma circulação pela cidade bastante nova para as mulheres da época, uma vez que a rua era, até a década de 1920, um ambiente marcadamente masculino[27].

No seu artigo de 1941 sobre a função da visitadora social psiquiátrica, Virgínia Bicudo afirma: “Com melhor ajustamento do meio e consequentemente melhor compreensão da criança, bem como com os derivativos que lhe são dados, a criança automaticamente abandona os mecanismos de ajustamento antissociais, que não tem mais razão de ser”[28]. Esse trecho nos parece extremamente lúcido, uma vez que a marca dos “derivativos” aparece como parte importante dos comportamentos da criança e o meio aparece como a causa de reações tidas como antissociais. Este, juntamente com outros dois artigos sobre o tema de 1946, apontam “o desenvolvimento de propostas de atuação nas quais a psicanálise é empregada fora de um contexto clínico stricto sensu, assumindo forte abrangência social”[29].

No início da década de 1940, Virgínia Bicudo começa a lecionar Higiene Mental e Psicanálise na Escola Livre de Sociologia e Política junto com Durval Marcondes, transformando essa instituição num espaço importante de difusão de “saberes psi” em São Paulo[30]. Curiosamente, no seu documento de trabalho ela foi identificada como “branca”, o que segundo Marcos Chor revelaria “uma das faces da ideologia do branqueamento no Brasil, em que a aparência de um indivíduo com marcas de origem africana poderia ser atenuada em função do grau de instrução, ocupação, aparência”[31]: 

Como eu achava que era muito importante Higiene Mental e Durval Marcondes dava Higiene Mental, aí eu começava assim: ‘Põe Higiene Mental’ aqui, ‘Põe Sociologia’ lá. Então eu levei Higiene Mental para a Escola de Sociologia. (Virgínia Bicudo, depoimento a Marcos Maio, 1995)[32]

Em 1942, entra na recém-criada pós-graduação dessa instituição coordenada por Donald Pierson, o qual orienta sua dissertação,“Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”, apresentada em 1945, e que será a primeira tese produzida no Brasil sobre relações raciais. Utiliza entrevistas e apresenta depoimentos de 31 pessoas — distribuídas entre as de classe “inferior” e “média” (segundo condição econômica, profissão e nível de instrução), divididas entre “pretos” e “mulatos” — e pesquisa da documentação da Frente Negra Brasileira e do jornal Voz da Raça, entre 1941 e 1944, produzindo um trabalho que articula a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia Social. O que ela nos mostra — contrariamente às posições do seu próprio orientador — é que, mesmo quando diminuem as diferenças sociais, permanece o preconceito de cor. Tal apontamento é fundamental para se contrapor às concepções de harmonia racial na sociedade brasileira, em que se acreditava que o preconceito de cor estava subsumido ao de classe[33]. Se os pretos de classe inferior sentiriam mágoa frente à rejeição dos brancos de forma inconsciente, os pretos de classes intermediárias sentiriam ódio, mágoa e ressentimento pela rejeição do branco, conscientemente reprimidos por medo de uma rejeição ainda mais acentuada.

Além de falar da importância da transferência ou do rapport na relação entre entrevistador e entrevistado, ela nos diz da necessidade de abordar processos sociais e psicológicos para poder depreender o significado das atitudes que manifestavam seus entrevistados. “Se conseguíamos definir os mecanismos psicológicos pelos quais os indivíduos se ajustavam, éramos forçados a depreender em função de que condições exteriores se estabeleciam”[34]. Virgínia também aponta o quanto seria legítimo formular hipóteses sobre as imposições sociais que seriam decorrentes da estrutura social, ou seja, acreditava ser possível conceber atitudes de “pretos” e “mulatos” como reflexo da atitude dos brancos, e assim buscar algo da atitude desse grupo étnico também.

Ao falar da integração do mulato das classes intermediárias, categoria na qual se encaixaria se fosse uma das entrevistadas, Virgínia propõe a hipótese de que a discriminação seria baseada em cor, não em raça ou etnia, “visto perder significação desde que o indivíduo apresente características do grupo dominante e na medida em que sua pele vai ‘branqueando’, não sendo, portanto, levada em conta sua origem”[35]. Ou seja, mesmo diante do esforço de elevar seu status educacional e profissional, “pretos” e “mulatos” encontrariam restrições no meio dos brancos, a menos que branqueassem na cor e na personalidade — obtendo, então, maior aceitação social. Trata-se de um trabalho pioneiro que antecipa formulações de uma série de trabalhos posteriores sobre o tema.

Ainda que começassem a ser publicados trabalhos que desmontavam a tese do Brasil como paraíso racial, a Unesco financiou o maior projeto de pesquisa sobre relações raciais no país, com a intenção de compreender como era possível essa convivência supostamente tão harmoniosa. O final da segunda guerra trazia a urgência de buscar promover uma convivência pacífica entre povos e etnias e o Brasil surgia como suposto exemplo de sucesso a ser estudado. Esse projeto, conhecido como Unesco-Anhembi, transformou-se num divisor de águas na temática, provocando o declínio do mito da democracia racial. A pesquisa de Virgínia (como a de Oracy Nogueira e Aniela Ginsberg), apesar de fundamental e independente, foi publicada em 1955 como se fosse um “apêndice” do estudo e a apresentação do livro acabou por colocar Roger Bastide e Florestan Fernandes como organizadores. Ainda pior foi o que se passou com a segunda edição, de 1959, em que as pesquisas de Bicudo, Nogueira e Ginsberg foram retiradas completamente da publicação[36]. Florestan Fernandes, trinta anos depois, explica o que ocorreu como um “lapso editorial”, mas o efeito para a história dessa publicação é que esse importante estudo será lembrado como obra exclusiva da “escola paulista” da Universidade de São Paulo, em detrimento da produção dos autores da Escola Livre de Sociologia e Política.

A falta de reconhecimento de seu protagonismo deve ter tido efeitos importantes para Virgínia Bicudo. Ter sido colocada de maneira secundária justamente numa área em que foi pioneira não deve ser entendido como um assunto de menor importância. No entanto, pelo que nos parece, não será esse o golpe mais forte de falta de reconhecimento que recairá sobre ela, como veremos.

A implantação da instituição da psicanálise em São Paulo se fez acompanhada da sua divulgação nos grandes veículos de comunicação, ocupando neles um lugar privilegiado[37]. Essa divulgação não só tornava a psicanálise acessível aos leigos como buscava conquistar e manter credibilidade em contraposição à fervorosa campanha dos meios médicos, a qual buscava desacreditá-la e desqualificá-la. Virgínia Bicudo teve papel primordial nos meios de comunicação de massa entre 1945 e 1955, além de Durval Marcondes, que não deixou de marcar presença nesses veículos.

Em 1954, desenvolvi um programa de divulgação de princípios de higiene mental segundo a Psicanálise, através da dramatização de textos que eu compunha, e eram levados ao ar semanalmente. Esses textos foram publicados no livro Nosso Mundo Mental em 1955. (Virgínia Bicudo)[38]

Os artistas representavam falando e eu interpretava. Foi um grande sucesso em São Paulo. Todo mundo ouvia. (Virgínia, 1982, entrevista a Sagawa)[39]

Além do seu programa na rádio Excélsior, o Nosso Mundo Mental, Virgínia publicou uma coluna no Jornal da Manhã com o mesmo nome: ocupava uma página inteira e circulava aos domingos. Posteriormente, a partir de julho de 1954 publicou por mais seis meses no mesmo espaço do jornal textos produzidos com base na transcrição dos programas de rádio que já haviam sido apresentados anos antes[40].

O livro Nosso Mundo Mental de Virgínia Bicudo foi editado em 1956, partindo da concepção de que “uma criança-problema reflete sempre a situação total, isto é, criança-ambiente, não se podendo pois tratá-la isoladamente como forma de expressão do problema, mas tendo-se de lidar com ela como um todo em determinado ambiente”[41].

Logo na apresentação do livro a autora fala de sua formação, apontando os estudos sobre a personalidade realizados em diferentes instituições:

Na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tivemos a oportunidade de conhecer as forças culturais, sociais e econômicas que atuam sobre o indivíduo, tornando-o uma pessoa. Nos cursos de formação de psicanalista da Associação Brasileira de Psicanálise travamos conhecimento com a natureza das forças e dos mecanismos psíquicos que agem na interação entre indivíduo e o ambiente. Foi, porém, principalmente na Seção de Higiene Mental da Diretoria do Serviço de Saúde Escolar de São Paulo que pudemos sentir e viver os problemas da personalidade e da conduta de crianças e adultos em seu conjunto[42].

As intervenções de Virgínia Bicudo nesse momento incluem sua ampla formação e ocorrem de diversas formas. Ela relata, por exemplo, aulas sobre educação sexual a adolescentes e adultos, ao avaliar que não estariam sendo transmitidos a eles os conhecimentos fundamentais: “No tocante aos problemas sexuais, os adolescentes têm de orientar-se por si, porque os pais não têm ‘coragem’ para ventilar o assunto com os filhos e nem a escola está preparada para incluir a educação sexual em seu currículo. Quando muito a escola secundária inclui a anatomia e a fisiologia dos órgãos da reprodução, porém os aspectos emocionais que entram nos conflitos do adolescentes são banidos de qualquer curso”[43].

Não há dúvida de que Virgínia coloca grande ênfase no papel dos pais, mas parece não descartar a importância de fatores econômicos: “A pobreza e a ignorância condicionam situações desfavoráveis ao desenvolvimento sadio da personalidade, porém são as atitudes e os afetos dos adultos que mais diretamente atingem a criança”[44]. Ainda que seja necessário questionar o quanto essas noções do que seria saudável e desejável no ambiente familiar produzem de normatização, é preciso reconhecer que Virgínia abre questões fundamentais para um público bastante diversificado. Apresenta o desenvolvimento psíquico da criança desde o nascimento, passando por diversas fases até a vida adulta, abordando as noções de desejos inconsciente e conflito mental; as formas de expressão da agressividade, amor, medo; os sentimentos que acompanham a situação edípica (inveja, ciúmes, rivalidade, culpa e angústia de castração); a importância da fantasia; as atitudes contraindicadas na educação (rejeição e favoritismo, superproteção); a adolescência; a psicoterapia; reeducação e princípios da higiene mental aplicados à educação.

A presença de Virgínia Bicudo foi essencial para que a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, reconhecida pela IPA em 1951, aceitasse como membros analistas leigos, ou seja, não médicos. Essa foi uma marca de distinção da Sociedade daqui em relação às duas Sociedades do Rio de Janeiro e a de Porto Alegre, em que a formação médica era uma exigência. No entanto, não se pode dizer que isso tenha se dado sem tensão.

O concurso para ocupar a cátedra de psiquiatria, em 1936, acaba por colocar um embate entre a psiquiatria e a psicanálise, através da disputa entre os dois candidatos, Antônio Carlos Pacheco e Silva e Durval Marcondes. A derrota de Durval faz com que a psicanálise seja levada ao campo acadêmico das Ciências Humanas; mas, ao mesmo tempo, faz com que enfrente uma forte oposição na psiquiatria de São Paulo[45].

O I Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, em 1954, contou com ambos professores na sua organização e o desempenho e destaque da psicanálise apontou a influência e a inserção dessa teoria no meio social e científico. Com isso, multiplicaram-se expressões de hostilidade, com críticas severas àqueles que exerciam a profissão sem a formação médica. Uma das mesas-redondas do Congresso era destinada à apresentação dos trabalhos realizados pela Seção de Higiene Mental Escolar, com a presença de Virgínia Bicudo, além de Lygia Amaral e Judith Andreucci, sendo que nenhuma das três era médica[46].

[…] era a hora da Higiene Mental apresentar. Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: “Absurdo! Psicanalistas não médicos!” Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: você é charlatã! Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer (Virgínia Bicudo, entrevista ao Projeto Memória da SBPSP)

O primeiro diretor do Conselho de Medicina de São Paulo, Flamínio Fávero, foi um dos responsáveis por uma ofensiva feroz de desmoralização contra Virgínia Bicudo. Nessa época eles chegaram a distribuir panfletos em que se lia: “Se eres neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se trate com a doutora Virgínia Bicudo”[47].

Não é possível saber ao certo em relação a quais características de Virgínia essa reação violenta e truculenta se dirigiu primordialmente. Oficialmente a questão era a de que não era médica, mas o fato de ela ser também uma mulher e o fato de ser negra podem ter sido elementos que entraram em jogo, colocando-a como alvo de uma atitude extremamente violenta, racista e machista.

É assim que marcamos o fim de um primeiro período da formação de Virgínia Bicudo, pois como ela mesma diz, não é possível ficar de pé, dá vontade de morrer. Além do mais, esse momento na vida de Virgínia reúne um duplo processo de deslegitimização, tanto da sua carreira como Socióloga (ao ter seu trabalho relegado a uma posição de menor valor em relação aos escritos de Roger Bastide e Florestan Fernandes) como da sua carreira como psicanalista (ao ter sido acusada de charlatanismo por não ter seguido uma carreira na medicina). Uma dupla exclusão de dois campos aos quais havia se dedicado arduamente até então.

Os efeitos dessa violência não são mensuráveis, mas há alguns pesquisadores que supõem que sua ida a Londres, em 1955, para realizar uma especialização em atendimentos de crianças, teria sido uma resposta a essa situação, buscando a valorização do seu potencial intelectual como tentativa de alcançar respeitabilidade[48].

O “exílio” na Inglaterra e o retorno

O período em que Virgínia ficou em Londres compreendeu cerca de cinco anos, e ao voltar foi muito requisitada para falar e transmitir a experiência que havia tido ao lado de importantes nomes da escola inglesa. A década de 1960 é marcada pela escrita de muitos artigos e suas atividades se concentram entre o “ensino da teoria e da técnica kleiniana e a supervisão dos estágios na Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Mental Escolar”[49]. Em 1961, foi sugerido que assumisse a direção do Instituto de Psicanálise, órgão responsável pela formação na Sociedade. Virgínia não só aceitou como se manteve no cargo por quatorze anos. A estrutura que propôs para a formação dos analistas (que se mantém ainda hoje) era aquela seguida pela IPA: análise didática por um período entre quatro e cinco anos, com frequência mínima de quatro vezes por semana, supervisão de dois pacientes com analistas didatas diferentes, cursos e relatório clínico final.

Sobre essa fase profissional e pessoal de Virgínia o que nos parece mais interessante é o contraste da leitura e do olhar de cada pesquisador a respeito do que teria significado, para ela, essa etapa de sua vida.

As descrições sobre esse período por parte de Abraão, pesquisador que escreveu um trabalho bastante completo sobre a vida de Virgínia, são de que teria desfrutado de “grande prestígio e reconhecimento público”, tendo se tornado uma profissional bastante requisitada, tanto assim que a fila para conseguir um horário de supervisão com ela poderia demorar quatro anos. Em 1970 fundou o Grupo Psicanalítico de Brasília e, posteriormente, o Instituto de Psicanálise de Brasília, alternando períodos em São Paulo e na capital federal. Ele se refere a esse período como sendo de muito glamour: considera que ela teria conseguido construir “um círculo de relações e amizades significativamente amplas, que a colocou em contato com a vida social e política da cidade”, oferecendo reuniões “com a presença de personalidades destacadas do meio político e diplomático de Brasília”[50].

Ele lembra a origem de Virgínia e a discriminação que teria sentido por conta de “sua origem racial”, para contrastar com o que seria essa transformação tão significativa que

[…] sinaliza para o ápice de um processo de elaboração e superação de suas angústias primitivas. Tendo encontrado na psicanálise um suporte para entrar em contato com suas emoções mais arcaicas e enfrentar os medos que as acompanham, Virgínia Bicudo pode lançar-se em desafios como uma forma de superação e de crescimento pessoal[51].

Depois dessa fase, Virgínia teria retornado a São Paulo e realizado uma volta às origens, na medida em que buscou retornar ao apartamento em que tinha morado na década de 1960. Para Abraão, há um perceptível contraste entre o ritmo menos intenso que a vida passa a ter em São Paulo e o “dinamismo” que caracterizou seu período em Brasília. Aponta que com menos energia para novos desafios aparece uma característica nova, a “mãe acolhedora”.

Já Janaína Damaceno Gomes, pesquisadora negra que realizou recentemente uma tese sobre a produção acadêmica de Virgínia Bicudo entre 1945 e 1955, irá se perguntar sobre a posição de Virgínia frente a sua cor e a relação com suas origens. Aponta que Virgínia teria sido, ao mesmo tempo e contraditoriamente, denunciadora do preconceito de cor e conivente com a leitura da democracia racial. “Embora tenha participado dos processos de referenciamento acadêmico num período em que a maioria dos negros sequer era alfabetizada e tenha sido sujeito ativo num modelo de vigor da sociologia participante, ela sumiu e se fez sumir”[52]. E a autora continua:

Virgínia enriqueceu com a psicanálise, tornou-se célebre e requisitada entre ministros e senadores, mas isso teve um preço: tal como suas personagens ela precisou se afastar de seu grupo para completar seu processo de ascensão. Mas nesse processo ela não embranqueceu, ela apenas perdeu a cor […]. Foram seus relatos já idosa, de alguém que precisa marcar a pertença e relembrar sua origem, que foram fazendo sua cor mais viva. Foi sua velhice negra que me comoveu: a volta aos turbantes, a preocupação com o cabelo […], a perda do controle, a distância dos amigos, os dramas familiares. Ela não teve uma morte branca, ela morreu como uma mulher negra”[53].

O que aparece como ápice da realização profissional e pessoal de Virgínia para um autor parece o afastamento das suas origens para outra. O que aparece já como falta de dinamismo para um dos autores, à outra soa como resgate de sua pertença. Mas de onde viria esse contraste?

“A incidência da realidade social no trabalho analítico”        

Esse é o título de um artigo de Virgínia Bicudo de 1972 e nos parece essencial retomá-lo para avançarmos um pouco mais. Trata-se de um relatório do IX Congresso Latino-Americano, realizado em Caracas em 1972. Virgínia afirma que havia solicitado aos colegas da SBPSP que enviassem seus pontos de vista sobre o tema para realização desse relatório, tendo recebido somente três respostas. Já em relação aos psicanalistas argentinos, recebe uma série de contribuições, uma vez que teria sido o tema do Simposium da APA (Associação Psicanalítica Argentina) em 1971. Dialoga com vários desses artigos que lhe são encaminhados, os quais fazem parte de uma publicação fundamental na psicanálise argentina: Questionamos[54]. Trata-se de textos produzidos por integrantes de um grupo de 23 psicanalistas que afirmavam a necessidade de questionar o isolamento das instituições psicanalíticas e o liberalismo aparente de sua ideologia. Passam a se posicionar assim após uma greve geral contra a repressão policial sobre a manifestação dos estudantes e operários que culminou com quatro mortes em poucos dias, em maio de 1969. Acreditavam e defendiam que era preciso se posicionar, mesmo dentro da clínica psicanalítica, e que isso não significaria querer doutrinar os pacientes ou deixar de ser psicanalista.

O contraste entre o momento político dos dois países é o que primeiro podemos apontar: eles, os argentinos, ainda não estão vivendo os tempos sombrios da ditadura que terá início, para eles, em 1976. Nós, os brasileiros, estávamos há alguns anos vivendo os tempos de chumbo e precisaríamos de mais outros tantos para voltar a experimentar a liberdade e a democracia.

Imaginar o que seria possível à instituição psicanalítica naqueles tempos no Brasil pode não ser tarefa fácil, mas sabemos, através do depoimento de Isaías Melsohn, que “o clima autoritário que passou a vigorar no Brasil encontrou caminho dentro da Sociedade de Psicanálise de São Paulo, nos anos 1970, com advento de algumas figuras reacionárias do ponto de vista institucional”[55]. Melsohn continua, afirmando que “[…] o grupo responsável pelas posições conservadoras, discricionárias e reacionárias era formado por pessoas que giravam em torno do pensamento de Bion e da pessoa de Frank Philips”[56]. Sabemos que Frank Philips foi o analista de Virgínia na sua reanálise, tanto durante uma curta temporada no Brasil quanto nos seus anos em Londres.

O artigo sobre a incidência da realidade, escrito por Virgínia, parece estar bem de acordo com a posição de alegada neutralidade defendida pela Sociedade. Aponta inicialmente que a realidade social está 100% no trabalho analítico, mas passa a distinguir a realidade social levada para o trabalho analítico pelo paciente e aquela que é levada pelo analista. É no que se refere à relação entre os analistas e à realidade social que aparecem uma série de diferenças quanto a sua posição e a dos analistas argentinos e uruguaios citados por ela. Defendendo a neutralidade da ciência e considerando a psicanálise como uma ciência (em contraponto à ideologia), Virgínia nos aponta que seriam desejáveis uma abstenção e uma assepsia por parte do analista, da mesma forma que estas são exigências para o cirurgião. “A orientação técnica, que preconiza ao analista abster-se de incluir na situação analítica sua realidade social ideológica, não implica alienação social”[57].

A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, entre os anos de 1960 e 1970, viveu um momento de centralização do poder, a tal ponto que os analistas didatas permanecem os mesmos sete que haviam sido analisados pela Dra. Adelheid Koch, apesar do aumento significativo do número dos candidatos[58].

É o momento em que não vemos mais Virgínia pelas ruas da cidade, visitando as escolas, trabalhando fora do consultório, se preocupando em transmitir os conhecimentos psicanalíticos em meios de ampla divulgação e de fácil acesso, como o rádio e o jornal; é justamente esse momento de fechamento da Sociedade, o momento de maior concentração de poder.

Nossa impressão é a de que Virgínia teria voltado diferente da sua estada em Londres, como se precisasse insistir numa psicanálise mais pura, na “verdadeira psicanálise”, e tivesse se tornado alguém bastante diferente daquela que aparece no seu próprio relato, ao falar das suas origens e das suas memórias. Onde foi parar aquela Virgínia que dizia que não queria ir para USP porque lá só tinha grã-finos?

Não temos como responder por ela. Mas ao mesmo tempo em que Virgínia escrevia sobre a assepsia necessária ao analista, uma outra analista, num outro país, Marie Langer, escrevia o oposto. Dizia que não acreditava mais na neutralidade do analista e afirmava ter perdido a fobia ao mundo de fora da instituição[59]. Apesar de tão corajosa, tendo tido que se exilar por mais de uma vez, Marie Langer confessa que teria passado por um momento em que sente que recuou, que escolheu o caminho mais fácil. Teria sido pouco depois de mudar para a Argentina, tendo Perón subido ao poder e estando novamente sob perigo caso se posicionasse politicamente. Nesse momento, acabou por renunciar temporariamente àquilo em que acreditava, o Marxismo. Pertencendo a uma geração que havia criado a Sociedade Psicanalítica, sentia que precisava manter como interesse primordial o progresso e a difusão da Psicanálise. “Poderia ter sido de outro modo? Creio que sim. Mas escolhi a solução mais fácil: aceitar, em troca da minha ideologia, uma Weltanschauung psicanalítica, embora esta, segundo Freud, não exista”[60] Ainda, segundo Langer:

[…] analisando agora minha decisão, encontro causas muito pessoais, e outras comuns, provavelmente a muitos de nós, os que tínhamos emigrado. Tivemos que nos refazer uma posição, durante certo tempo carecemos de um título nacional que nos autorizasse a trabalhar legalmente, sentíamo-nos inseguros e estranhos neste novo país […] Nosso sotaque nos traía como estrangeiros. Estávamos cansados de lutar e tínhamos muitos medos”[61].

Lendo o texto dessa outra pioneira, pensamos em Virgínia e em como ela foi estrangeira, tantas vezes, nos espaços em que circulou e desbravou, mesmo estando no seu país. Os ataques que recebeu por ser não médica entre os médicos, não homem num universo marcadamente masculino, por ser não branca num universo que fazia questão de ser tão branco. E imaginamos que também ela, como Marie Langer, pode ter cansado de lutar, em algum momento, e ter sentido que tinha muitos medos. ♦

REFERÊNCIAS

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* Ana Paula Musatti-Braga é psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela USP, membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade – USP e do Núcleo Psicanálise e Política da PUC – SP.



[1] MAIO, Marcos Chor (2010a) Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu, jul.-dez. 2010a, p. 350

[2] Embora Lélia Gonzalez não fosse psicanalista, e sim socióloga, fez articulações importantes a respeito das mulheres negras utilizando conceitos psicanalíticos, tendo participado da Fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro.

[3] BICUDO, Virgínia Leone (1972) “Incidência da realidade social no trabalho analítico”. In: Revista Brasileira de Psicanálise, Órgão Oficial da Associação Brasileira de Psicanálise, vol. VI, nº 3/4, São Paulo.

[4] ESCHER, Maurtis Cornelis. Exposição de gravuras, litografia de 1956.

[5] MAUTNER, Ana Verônica. Fui buscar defesas para o íntimo. Folha de São Paulo, São Paulo, Folha Ilustrada, p. 6, 2000. Disponível em: <http://acervo.folha.com.br/fsp/2000/10/06/21>. Acesso em: junho 2014.

[6] Ibid, p. 6.

[7] BICUDO, Virgínia Leone (1945) Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, 2010.

[8] BICUDO, Virgínia Leone (1945) Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, 2010, p. 64.

[9] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo.

[10] CYTRYNOWICZ, Monica Musatti (2006) História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo: Narrativa Um.

[11] Devemos a Janaína Damaceno Gomes (2013) essa indicação.

[12] ALMEIDA, Tânia Mara Campos (2011) Resenha de Bicudo, Virgínia Leone. ‘Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo’. Cad. Pagu, nº 36, p. 5. Campinas Jan./Jun. 2011. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332011000100018>. Acesso em: 26/05/2014.

[13] MAIO, Marcos Chor (2010a) Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu, n.35, jul.-dez. 2010a.

[14] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo, p. 47.

[15] MAIO, Marcos Chor (2010a) Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu, n. 35, jul.-dez. 2010a, p. 338-339.

[16] A partir do Laboratório de Higiene e Saúde Preventiva da Faculdade de Medicina de São Paulo, de 1918, foi criado o Instituto de Higiene em 1930. Este, em 1934, foi encapado pela USP e posteriormente nomeado Faculdade de Saúde Pública (Abraão, 2010).

[17] MAIO, Marcos Chor (2010a) Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu, n. 35, jul.-dez. 2010a, p. 344.

[18] BICUDO, Virgínia Leone. Já fui chamada de charlatã. Depoimento a Cláudio João Tognolli. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Mais, p. 6, 5 de jun. de 1994, p. 6. Disponível em: <http://acervo.folha.com.br/fsp/1994/06/05/72> Acesso em: 26/05/2014.

[19] BICUDO, Virgínia Leone apud ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira. São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp, pp. 61-62.

[20] SAGAWA, Roberto Yutaka (1994) “A história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo”. In: NOSEK, Leopold (Org.). Álbum de família: imagens, fontes e idéias da psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo.

[21] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp.

[22] Arthur Ramos afirma, em 1939, a inadequação do termo “criança anormal”, uma vez que viria como contraponto às crianças “normais”. Segundo ele, 90% das crianças tidas como “anormais” deveriam ser vistas como crianças difíceis, “crianças problemas”, que seriam vítimas de uma série de circunstâncias adversas (Abraão, 2010).

[23] As atividades de psicologista e de visitadora psiquiátrica irão compor as atividades definidas como próprias do psicólogo, profissão que será regulamentada em 1962.

[24] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp.

[25] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo.

[26] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp.

[27] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo.

[28] BICUDO, Virgínia Leone, 1941 apud ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp, p. 100.

[29] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp, p. 103.

[30] MAIO, Marcos Chor (2010a) Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu, n. 35, p. 309-355, jul.-dez. 2010a.

[31] Ibid., p. 310.

[32] Ibid., p. 343.

[33] MAIO, Marcos Chor (2010b) “Introdução: a contribuição de Virgínia Leone Bicudo aos estudos sobre as relações raciais no Brasil”. In: BICUDO, V.L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, [1945], p. 24.

[34] BICUDO, Virgínia Leone (1945) Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, 2010, p. 157.

[35] Ibid., p. 163.

[36] A publicação de 1955 recebe o nome de Relações Raciais entre negros e brancos em São Paulo: ensaio sociológico sobre as origens, as manifestações e os efeitos do preconceito de cor no município de São Paulo; enquanto a publicação de 1959 sofre uma pequena alteração e passa a se chamar Relações entre brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre as origens, as manifestações e os efeitos do preconceito de cor no município de São Paulo.

[37] SAGAWA, Roberto Yutaka (1994) “A história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo”. In: NOSEK, Leopold (Org.). Álbum de família: imagens, fontes e idéias da psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo.

[38] BICUDO, Virgínia Leone apud ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp, p. 111.

[39] SAGAWA, Roberto Yutaka (1994) “A história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo”. In: NOSEK, Leopold (Org.). Álbum de família: imagens, fontes e idéias da psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 21.

[40] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp.

[41] BICUDO, Virgínia Leone (1956) Nosso Mundo Mental, Instituição Brasileira de Difusão Cultural, p. 11-12.

[42] Ibid., p. 12.

[43] BICUDO, Virgínia Leone (1956) Nosso Mundo Mental, Instituição Brasileira de Difusão Cultural, p. 231.

[44] Ibid.

[45] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp.

[46] Ibid.

[47] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo, p. 61.

[48] ABRAÃO, Jorge Luís Ferreira (2010) Virgínia Bicudo: A trajetória de uma psicanalistas brasileira, São Paulo: Arte&Ciência Editora/Fapesp.

[49] Ibid., p. 153.

[50] Ibid., p. 220.

[51] Ibid.

[52] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo, p. 150.

[53] GOMES, Janaina Damaceno (2013) Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado), FFLCH – USP, São Paulo, p. 153.

[54] LANGER, Marie (org.) (1973) Questionamos: a psicanálise e suas instituições, Editora Vozes, Petrópolis, 1973.

[55] MELSOHN apud CYTRYNOWICZ, Monica Musatti (2006) História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo: Narrativa Um, p. 42.

[56] Ibid., p. 43.

[57] BICUDO, Virgínia Leone (1972) “Incidência da realidade social no trabalho analítico”. In: Revista Brasileira de Psicanálise, Órgão Oficial da Associação Brasileira de Psicanálise, vol. VI, nº 3/4, São Paulo, p. 296.

[58] CYTRYNOWICZ, Monica Musatti (2006) História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo: Narrativa Um.

[59] LANGER, Marie [Org.] (1973) Questionamos: a psicanálise e suas instituições, Editora Vozes, Petrópolis, 1973.

[60] LANGER, Marie [Org.] (1973) Questionamos: a psicanálise e suas instituições, Editora Vozes, Petrópolis, 1973, p. 256.

[61] Ibid.

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