Pelé: Racismo e esquecimento marcam os 80 anos do jogador

FONTETRIP, por Kamille Viola
Pelé (Foto: EFE/Sebastiao Moreira)

Ele figura em todas as listas de melhores atletas do século 20. Para muitos, é o maior de todos os tempos. Marcou 1.281 gols em 21 anos, foi artilheiro paulista por dez anos consecutivos e tem mais de 60 títulos conquistados, entre eles o tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira. Conta-se que seu talento com a bola foi capaz até de parar uma guerra. Nesta sexta-feira, 23 de outubro, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, completa 80 anos de vida. Por que as homenagens não estão à altura da grandiosidade de sua carreira?

Para a jornalista Angélica Basthi, autora do livro Pelé: uma estrela negra em campos verdes, alguns fatores contribuíram para que um imaginário negativo sobre ele seja hoje tão presente na sociedade brasileira. Um deles foi a rejeição a Sandra, fruto de um relacionamento que teve em 1963. Ela brigou na justiça para ser reconhecida como filha, mas nunca conseguiu conviver com o pai, tendo morrido em 2006, aos 42 anos, de câncer de mama. “Ninguém conseguiu entender bem por que o Pelé demorou tanto a reconhecer essa filha. E ele teve outra filha também fora do casamento, a Flávia, que ele reconheceu. Qual foi sua grande dificuldade? Achou que a moça queria dar um golpe? Mas, depois, com tantas evidências de que ela era filha dele, por que ele se recusou? Isso foi muito polêmico e muito discutido na época. Ficou uma marca em sua trajetória”, observa ela.

Outra questão bastante controversa foi a recusa do jogador em falar sobre questões raciais durante grande parte da sua vida. Angélica observa que, nos últimos anos, ele vem revendo essa postura, embora “à sua maneira”: em 2014, ao comentar o racismo sofrido pelo goleiro Aranha, durante um jogo pelo Santos (time que Pelé também defendeu), disse que, se tivesse parado toda partida em que alguém o chamasse de “macaco” ou “crioulo”, todos os jogos dos quais participou teriam que ser interrompidos – admitindo, pela primeira vez, que sofria discriminação racial. Em junho, aderiu às manifestações pelo assassinato de George Floyd, Blackout Tuesday, postando um quadrado preto no Instagram. “Isso também é novo no repertório do Pelé”, pontua a jornalista. “Ainda permanece essa imagem, em que ele próprio investiu, do Pelé dos anos 70, que nunca quis ser vinculado à questão racial”.

A jornalista Angélica Basthi, autora do livro Pelé: uma estrela negra em campos verdes (ed. Garamond) (Foto: Arquivo pessoal)

Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Marcos Queiroz acredita que a pouca atenção à data tem a ver também com uma crise identitária que o Brasil está vivendo. “Esse país tem que se reconstruir. Inclusive na relação com aquilo que é mais fremente, que é o futebol. Esse apagamento em relação aos 80 anos do Pelé é parte de um Brasil que que está procurando se encontrar, como diz o Candeia. Tem crise econômica, política, mas também, como diz o [historiador Luiz Antonio] Simas, uma crise epistêmica”, reflete. “E, pensando essa depressão do Pelé [em fevereiro, Edinho, filho do jogador, disse que Pelé estava recluso e com “certa depressão” devido a seus problemas de mobilidade], talvez ele esteja deprimido porque o Brasil também está deprimido. O mundo que se construiu em torno do Pelé e que ele viveu não existe mais. E dificilmente vai voltar a existir”.

O racismo da sociedade brasileira também faz com que Pelé seja julgado de forma implacável por todos os seus erros. “Sua figura é interessante para pensar a questão racial porque ele reúne vários fatores, entre eles a imagem na qual ele próprio investiu de homem perfeito. O homem branco perfeito é completamente diferente do homem negro perfeito. O homem negro é cobrado para ser impecável”, analisa a jornalista Angélica Basthi. “Ele abraçou essa ideia do homem perfeito. Só que ele é um homem negro. Então a sociedade, quando olha o Pelé, olha esse homem negro. Cadê essa perfeição? As pessoas fazem vista grossa para outros jogadores, mas não para ele. O julgamento é implacável. E é implacável com esse conteúdo racial, sim. O homem negro perfeito que o Pelé deveria ser e bancar: não pode errar, tem que ser esse homem que não existe”.

Marcos Queiroz, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (Foto: Arquivo pessoal)

A jornalista esportiva Martha Esteves acredita que a pouca memória do brasileiro e a reclusão de Pelé, além da questão com a filha, contribuem para a fraca celebração em torno das oito décadas do jogador. “Acho que a doença foi um fato complicado para ele. Ele está muito recluso. E quem não é visto não é lembrado, infelizmente. Isso deve estar contribuindo para ele estar recebendo poucas homenagens, o que é lamentável, né? Porque ele é e sempre vai ser o melhor do mundo. Ninguém vai superar. O Messi acha isso”, diz. “Você está falando de um ídolo mundial, que foi recebido pela Rainha da Inglaterra, que parou guerra, que, se estivesse na ativa hoje, no mundo das redes sociais, do exibicionismo, seria muitíssimo mais famoso do que os Beatles, por exemplo. Ou de qualquer um que esteja vivo hoje”.

Ela concorda que o racismo também atravessou toda a carreira do craque, influenciando os julgamentos sobre seus erros. “Quando o negro no futebol alcança um patamar de riqueza, de fama, tem um pouquinho de aceitação, mas até a página dois. Porque, se fizer uma cagada, se tiver um deslize de comportamento, aí a porrada vem. Vem com força”, diz. A jornalista esportiva acredita que mesmo o caso de Robinho, que teve o contrato com o Santos suspenso depois da pressão da sociedade diante da condenação do jogador por estupro, poderia ter um desfecho diferente se ele fosse branco. “O Cristiano Ronaldo também foi acusado de um estupro. Para não ir a julgamento, ele chamou a menina e deu um monte de dinheiro. Mas ele está jogando. Não teve a grita internacional, mundial que deveria ter tido. Porque o Cristiano Ronaldo é infinitamente mais famoso, mais poderoso, mais rico e mais craque do que o Robinho. Mas, mesmo lá em Portugal, lá na Europa, não foi dessa forma”, compara.

A jornalista esportiva Martha Esteves (Foto: Arquivo pessoal)

Angélica vê semelhanças entre as críticas baseadas em estereótipos racistas que Pelé recebeu na juventude e as que Neymar recebe hoje. “E isso tem a ver tanto com a ideia desse homem negro perfeito como com esse homem negro infantil, que é a maneira de infantilizar os homens negros para colocá-los sempre num lugar de inferioridade. O homem negro, principalmente no futebol, é associado a emoções infantis, ao despreparo, à falta de maturidade e à ausência de responsabilidade. É sempre a emoção infantil versus a razão, que está dentro do homem branco civilizado. Inclusive o próprio Continente Africano sofre com esse estereótipo do homem negro infantilizado”, explica ela.

O jogador do Paris Saint-Germain, por sinal, também foi alvo de críticas ao longo de sua carreira por não se posicionar sobre questões raciais — até recentemente, quando denunciou ter sido chamado de macaco pelo zagueiro Álvaro González, do Olympique, e acabou expulso de um jogo. “Ele é cobrado, como Pelé era cobrado e, sobretudo, vira esse alvo de referência. Mas muitas vezes a gente acabando centrando essas discussões num jogador que tem as suas controvérsias, em vez de fazer uma discussão estrutural, de como o futebol em si e a atmosfera em torno do esporte impelem esses jogadores a serem constrangidos, a muitas vezes não falarem disso, a terem medo de se posicionar”, argumenta Marcos. “Não há na mídia do Brasil um respaldo em relação a isso. Não há discussão suficiente sobre o que significa o racismo no país, a história do futebol em relação ao racismo, como ele foi inclusive instrumento de perpetuação da desigualdade racial no Brasil”.

Ele observa que, ao mesmo tempo que Pelé era um dos símbolos do país que vivia sob o mito da democracia racial — a ideia de que negros, indígenas e brancos viviam integrados e em harmonia —, é preciso entender a importância do craque ao abrir caminhos para pessoas negras. “Quando ele chegou no Vasco, disseram que lá havia vários negrinhos igual a ele, então não precisava. Chegou no Santos e era chamado de Gasolina, Crioulo, esse tipo de coisa. Ele, como indivíduo, estava sobrevivendo, tentando buscar um espaço naquele contexto no futebol que vinha de dois traumas de Copas recentes”, afirma. “Na época, se dizia que negros eram incapazes, instáveis, sem disciplina. Então só de ele jogar futebol, conseguir aquele espaço, por mais que tenha uma trajetória individual em que normalmente não fale abertamente disso, já abriu muitas portas, dinamizou muitas questões em relação ao lugar que os negros podem ocupar. Porque talvez para a gente seja natural o negro jogando bola, mas ali nos anos 50 não era”.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, ex-jogador de futebol, nas capas das revistas TRIP #57 (1997) e revista da GOL #108 (2010) (Foto: Raphael e José Herrera/Acervo Trip e Renato Stockler/Na Lata/Revista GOL)

Marcos lembra que ele foi o pioneiro de uma linhagem de jogadores em que jovens negros podem se espelhar. “Ele tem essa importância, não só para o brasileiro, mas para o mundo. Quando ele surge como jogador de futebol, é o momento, por exemplo, da luta por independência de países africanos, é o momento de uma discussão imensa sobre racismo nos Estados Unidos, o rescaldo da luta pelos direitos civis, é o momento em que os esportes estão sendo dessegregados nos Estados Unidos. Ele representava muito, como diz o Moacyr Luz, esse poder estar onde você quiser”, explica. “Fazer viagens, poder estar em vários lugares que eram muitas vezes tidos como inacessíveis para a população negra: o Pelé fez. E acho que a gente perde muito uma dimensão quando foca só no que foi negativo ou que é controverso na vida dele”.

Para Angélica Basthi, a projeção que as discussões raciais ganharam na grande mídia nos últimos meses pode ser a chance de refletir sobre o tratamento dado a Pelé nos últimos anos pela sociedade e pela imprensa. “Esse é um ano bem peculiar, não só por causa da pandemia, mas por tudo que a morte do George Floyd representou, nos Estados Unidos e no mundo inteiro, e tantas mortes aqui no Brasil. Nesse momento em que a gente começou a ver alguma mobilização da mídia para essas questões raciais, fica o desafio, nesses 80 anos, da imprensa brasileira fazer uma autorreflexão”, diz. “A gente deve dar ao Pelé o lugar que ele tem na história do futebol. Deve dar a ele também o lugar que ele tem na história do negro brasileiro. Ele é um homem negro que alçou voos inimagináveis, que cometeu vários erros, que foi um dos símbolos da democracia racial, é um homem negro que sofreu racismo, que silenciou o racismo. A gente tem muito a aprender sobre o racismo e sobre a trajetória do homem negro na sociedade brasileira com o Pelé”.

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