“Perdi um olho por intolerância religiosa”: crime atinge mais as mulheres

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A manicure Vivian Bruna Braes foi atingida por um facão por um vizinho que se incomodou com "música de macumba" (Foto: Arquivo pessoal)

Devota de São Jorge, a manicure Vivian Bruna Braes, de 38 anos, passou algumas horas da tarde do dia 23 de abril, em que se celebra o santo, escutando músicas que remetiam a ele e também a Exu para pedir proteção. Ela estava no portão de sua casa, em Macaé, no norte fluminense. Mas terminou o feriado sem um olho em decorrência de um golpe de facão desferido por um vizinho que não queria ouvir “música de macumba”. Pesquisa mostra que as religiões de matrizes africanas foram as que mais sofrem ataques no Estado.

Intolerância religiosa é crime e prevê pena de um mês a um ano ou multa. Se há violência, a pena é aumentada de um terço. Mas o boletim de ocorrência feito na 123ª DP (Macaé) está registrado como tentativa de homicídio. Segundo a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio, foi aberto um inquérito para investigar o caso. Universa apurou que o suspeito ainda não foi localizado pela polícia para ser ouvido.

Vivian conta que era por volta das 18h quando estava no portão de casa ao lado da família ouvindo as músicas. Em determinado momento, seu companheiro foi ao bar em frente a sua casa e escutou críticas de um homem porque o grupo estava escutando “macumba”. Segundo ela, seu marido não respondeu.

Em uma segunda ida ao bar, Vivian acompanhou o marido, quando ouviu mais ofensas contra sua religião. Ela questionou ao homem qual era o problema de ouvir aquele som. E deu-se ali um princípio de discussão, até que o homem, aparentemente bêbado, tropeçou numa caixa de cervejas e caiu.

A manicure segue relatando que ele foi para casa, na rua atrás de onde ela mora, e voltou com um facão na mão, apontando para os dois casais. Ao tentar defender o marido, Vivian segurou o braço do homem, e acabou sendo atingida no rosto. Na hora, ela conta, ele fugiu. Levada para o hospital, precisou retirar o olho direito.

Estou assim pela ignorância de um espírito sem luz.

Vivian Bruna Braes

Mulheres são as maiores vítimas de intolerância

De 2018 até abril de 2022 o Tribunal de Justiça de São Paulo registrou 447 novos processos por crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. Eles estão sob o mesmo código de assunto no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e por isso os tribunais rastreiam de forma conjunta. O levantamento foi feito a pedido de Universa.

Foto: Imagem retirada do site Universa

Pelos dados, nota-se que entre 2018 e 2021 houve um aumento de 19,4% no número de novos casos (de 98 para 117). Eles revelam ainda que as mulheres foram a maioria dos alvos durante todo o período: um total de 241 vítimas femininas ante as 206 vítimas masculinas.

Foto: Imagem retirada do site Universa

Já no Rio, estado onde Vivian foi agredida, apenas em 2021 a polícia registrou 1564 ocorrências ligadas a crimes de ódio e intolerância religiosa, um aumento de 13,3% em relação a 2020, quando a média de casos por dia superou a marca de três. Os dados foram revelados recentemente pelo Instituto de Segurança Pública do Estado.

O levantamento mostra ainda que 56% das vítimas por injúria de preconceito são mulheres negras, o que representa pelo menos uma vítima por dia durante todo o ano de 2021.

Outra pesquisa, levantada pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio, aponta que as religiões de matrizes africanas foram as que mais sofreram ataques no ano passado. Segundo o relatório do grupo formado por representantes da sociedade civil, órgãos públicos e entidades religiosas, foram 47 denúncias, sendo 43 de preconceito contra religião de matrizes africanas, seguidas por judeus (3) e católico (1).

O relatório reúne denúncias, relatos em rede social, notícias de agências dos movimentos sociais e declarações de lideranças religiosas ou das próprias vítimas.

“Trata-se de racismo religioso”

Para o historiador Pedro Rebelo, especialista em ciência da religião, a intolerância religiosa no país, em especial contra religiões de matrizes africanas, é uma herança do racismo estrutural que começou no século 18, quando se confundia rituais africanos com feitiçaria.

“Não há como dizer que o ataque contra terreiros no Brasil possa ser tipificado unicamente como intolerância religiosa. Trata-se de racismo religioso”, aponta ele, colaborador no Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, que desenvolve pesquisas e projetos sociais voltados para Comunidades Negras Tradicionais.

E ao analisar os dados do TJSP, o coordenador geral da Comissão de Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, Hédio Silva Jr., decreta: eles não refletem a quantidade de queixas que chegam na delegacia de polícia.

“Tem um número certamente muito maior de queixas e intolerância que não chegam ao judiciário, porque a tendência é que elas não se transformem em denúncia, e caso isso ocorra, que a Justiça aceite pedido do Ministério Público”, ele explica.

“Não vejo minha filha por intolerância”

Em 2021, a vendedora Juliana, 34, foi denunciada pelo Ministério Público de São Paulo por lesão corporal de natureza leve e omissão ao levar a filha, na época com 10 anos, a um terreiro de candomblé, em Campinas (SP). Mesmo absolvida, diz que está desde então sem contato com a menina. Por envolver menor de idade, a identidade da família deve ser preservada.

A Universa, Juliana conta que levou a filha única num ritual de cura, que consiste na escarificação, que é um corte bem superficial no braço. Por causa disso, foi denunciada, e a criança levada para a casa do pai, de quem Juliana é separada quando a menina tinha 7 meses. Segundo o MP, “a criança foi levada a um ritual religioso no qual sofreu cortes provocados por gilete ou navalha, causando-lhe lesões corporais de natureza leve.”

Mas Juliana foi absolvida, e na decisão a que Universa teve acesso o juiz de direito Bruno Paiva Garcia escreve que “não se verifica qualquer outra justificativa (para a denúncia) senão a intolerância religiosa”. Faz ainda uma comparação: “a escarificação religiosa, assim como a circuncisão —feita entre judeu e que consiste na retirada da pele que cobre a cabeça do pênis— ainda que formalmente típica, está em consonância com valores constitucionais e jamais pode ser considerada uma conduta criminosa.”

Há ainda um processo na Justiça pela guarda da menina, e Juliana conta que nem o telefone da família do pai da criança ela tem mais. Foram cortados quaisquer contatos, com ela ou com seus parentes.

“Hoje não sei nada da menina. E ela já está com 12 anos. Tudo isso por intolerância”, conclui.

Universa procurou a advogada do pai da criança e incluirá uma resposta, se houver. Mas em nota enviada ao UOL na época dos fatos, a defesa afirmou que o processo não foi motivado por intolerância religiosa, que ele sempre respeitou a fé professada pela mãe e que jamais se opôs que a filha tivesse a mesma orientação religiosa. Mas não falou sobre os motivos pelos quais registrou o boletim de ocorrência.

“Somos todos filhos de um mesmo Deus”

Quando tinha 11 anos, a auxiliar de veterinária Kayllane Coelho foi apedrejada ao sair de um culto de candomblé na Penha, zona norte carioca. A Universa ela, que hoje tem 18 e se identifica como Kayllane de Telekompensu, conta que foi xingada e ouviu que iria para o inferno antes de sentir dor e sangue escorrendo da cabeça.

Praticante do candomblé, Kayllane Coelho foi apedrejada quando tinha 11 anos (Foto: Zô Guimarães/UOL)

Após o episódio, ela fala que ouviu um homem num ônibus repetir o que já tinha escutado no dia da agressão: que iria para o inferno, e para seguir o caminho de Deus. Filha de uma evangélica e neta da ialorixá Mãe Kátia de Lufan, diz que prefere responder com amor.

“A Bíblia diz para amarmos o próximo, mas está faltando justamente amor e respeito, e sem isso não vamos combater a intolerância religiosa. Independentemente da sua cor, orientação sexual e crença somos todos filhos de um único Deus. Só muda o nome”, ela prega.

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