Perigo, por Sueli Carneiro

Foto: Marcus Steinmayer

Novo tema ganhou destaque na imprensa nos últimos dias. Trata-se de concordata (acordo ou tratado firmado entre um papa e um governante a respeito de assuntos religiosos) que estaria sendo urdida entre o Vaticano e o governo brasileiro. O objetivo seria conceder vantagens religiosas e educacionais à igreja católica. O assunto veio a público em artigo de Roseli Fischmann publicado na imprensa, no qual a autora revela que, segundo um advogado representante da CNBB “estariam quase totalmente prontos, com poucos pontos a ajustar, os termos de concordata entre o Estado do Vaticano e o Brasil”. Disse ainda o advogado que seria concordata “muito completa, com repercussões legais, políticas, administrativas, tributárias e financeiras” e que a decisão do papa de vir ao Brasil em maio próximo estaria ligada a isso. Outras manifestações da igreja na mídia indicam que a visita se liga ao decréscimo do número de católicos na América Latina e no Brasil.

Por Sueli Carneiro, do  Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Para as brasileiras, em especial, a possibilidade de assinatura de tal concordata se reveste de fonte de inesgotáveis preocupações. O Vaticano tem sido inimigo declarado dos direitos das mulheres. De forma obscurantista, tem defendido em fóruns nacionais e internacionais posições dogmáticas que resultam, se aceitas e aplicadas, na exposição a sérios riscos de saúde.

A igreja se opõe ao uso de preservativos para a proteção contra o contágio de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e Aids. Recomenda cândida e idilicamente a castidade para os solteiros e a fidelidade para os cônjuges. Manifesta-se igualmente contra o aborto legal, inclusive nos casos permitidos por lei (como, no Brasil, quando há risco de morte para a gestante ou quando o feto não tem condições de sobrevivência, como os portadores de anencefalia). É assim também em relação à gravidez decorrente de estupro.

São posições dogmáticas que desprezam o sério problema de saúde pública. É o caso do aborto ilegal, que implica morte ou graves seqüelas para milhares de mulheres anualmente; que nega o direito de se desfazer de gravidez resultante de estupro ou de evitar o sofrimento de persistir com uma gestação em que o feto não tem viabilidade para a vida.

O papa Bento XVI é autor do memorando “Sobre a cooperação dos homens e das mulheres na igreja e no mundo”. Trata-se de documento elaborado quando o pontífice era cardeal. Nele, o papa condena o feminismo, que em seu entendimento conduziria à luta entre os sexos, e repudia a defesa do homossexualismo, que, segundo ele, cria “equivalência entre a homossexualidade e a heterossexualidade”.

Entre os temas que a hipótese de concordata repõe como previsível conseqüência do acordo, está o ensino religioso nas escolas. Ao contrário dos que acreditam que o fato “tem a potencialidade de discutir a tolerância e o pluralismo”, a visão do papa não parece tolerante com a luta de emancipação das mulheres nem com o direito à livre orientação sexual. É a concepção que ele ordena para os fiéis. Não é isso que queremos que as crianças aprendam nas escolas. Nem outras modalidades assemelhadas de dogmas e preconceitos.

Se a liberdade religiosa é uma das conquistas da cidadania e se as mulheres e homossexuais são também sujeitos de direitos arduamente conquistados, a quem cabe o dever de arbitrar quando dois direitos entram em colisão, ou seja, quando o exercício de um implica a negação de outro? Esse é o papel do Estado, ao qual compete assegurar o exercício democrático de ambos.

Aí reside a importância de assegurar a laicidade do Estado, sem ambigüidades, para o que muito contribuiria fosse acatada a sugestão de Aldo Pereira, também em artigo na imprensa, de que o Congresso Nacional aprove emenda constitucional que suprima o parágrafo 1º do art. 210. O texto prevê que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. A supressão reafirmaria o dispositivo secularista expresso no art. 19, inciso I, que “proíbe ao Estado estabelecer (oficializar) ou subvencionar cultos religiosos ou igrejas (congregações) ‘ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança’ (…)”.

As igrejas, candomblés, templos, sinagogas, mesquitas são espaços com o fim específico e legítimo de preservação e reprodução de valores religiosos das diferentes denominações. Então, por que a escola, cuja missão essencial é ofertar ensino laico e científico, deveria destinar tempo e recursos para o proselitismo religioso?

 

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