Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Permita que eu escureça, não esclareça
É um tema difícil. No momento que começo escrever sobre, minha garganta aperta e o peito inquieto e ansioso sinaliza o gatilho que é encarar de frente o assunto que têm me tomado crises de choro e da sensação permanente de des-pertencimento. Não-lugar.
E eu começo pelo não-lugar. Numa das vezes em que uma pessoa se sentiu confortável pra questionar minha identidade racial, ela se incomodou pelo fato de eu compartilhar indignação nas redes sociais sobre o assassinato (genocídio) de jovens negros e periféricos no Rio de Janeiro.
Pisando em ovos, mas nem tanto, ela me disse que eu estava roubando um lugar de fala que não era meu. Talvez porque eu coloquei como legenda na foto em que predominava jovens negros retintos, a frase “parem de nos matar”. E eu não me pareço com aqueles jovens. Tenho a pele clara e traços finos e eles não. Crise de choro. Aceitei. Justifiquei aquele questionamento que me fez sofrer profundamente, e tentei seguir com a vida.
Mas não deu. Eu tinha que dar conta desse não lugar. Esse entre-lugar enlouquecedor. Nem branca, nem preta. E preta eu não posso ser mesmo. Me resta um tal de parda, que consta na minha certidão, e pra muitas-os é cor de papel. E esse termo tem uma história longa que eu também tive de dar conta se quisesse assumir um discurso próprio, para citar Neusa Santos.
Em uma outra ocasião, de profunda vulnerabilidade, procurei um psiquiatra porque havia decidido iniciar um tratamento medicamentoso para transtorno de ansiedade e pânico. O psiquiatra, de uma rede que prestava atendimento social, durante a consulta, em dado momento em que eu relatava meus processos por ser de origem periférica e negra, ele se incomoda e me diz que eu não tinha que me colocar “naquele lugar”. De pé, diante de mim, me forçando olhar com dificuldade pra superioridade branca dele ele me diz: “porque, veja bem, você não é … negra. seu cabelo é só um porém”.
Ah, tem o cabelo também. Já me questionaram se eu “armo” ele. Se eu provoco ele a ficar do jeito que ele é. A mesma pessoa do primeiro relato desse texto, começou sua indagação, com “vem cá, você diz que é negra só por causa do seu cabelo?”
E de fato, talvez seja somente através dele que eu tenha me feito negra. Que o mundo tenha me feito negra. São sobre o cabelo as experiências racistas que prontamente consigo verbalizar, mas que já me auto-questionei sobre sua veracidade, porque afinal “pode ser coisa da minha cabeça”, “eu posso estar querendo ocupar um lugar que não é meu”.
Eu podia alisar, sofrer em procedimentos com formulas de preservar corpos mortos, esconder o máximo que podia o traço quase único que me tornava mais negra que qualquer outra identidade. Mas nada disso me escondiam, me encobriu e me protegeu desses momentos.
Mas eu ainda preciso me justificar, passar horas a fio tentando te convencer porque preciso desse lugar. e desesperadamente pedir que não me retire dele. Preciso mostrar os momentos de racismo que eu passei. Você, pessoa que eu nem conheço, precisa que eu me fragilize ao máximo e te convença dos racismos a que fui submetida.
E eu me convenci que tinha realmente que tentar te convencer. Então, farei isso uma última vez, porque, agora, preciso começar um processo de cura, de ressignificação de um não-lugar.
O cabelo alisado, o medo tremendo de exposição ao sol usando camadas e mais camadas de roupas para não escurecer a pele, a boca cerrada e sendo mordida pra dentro pra não mostrar sua grossura… Nada disso me deu o lugar de uma pessoa branca, ainda que a minha pele seja mais clara.
Criança, as outras crianças, nas brincadeiras, me faziam de empregada doméstica, como minha mãe. Eu não via ou não calculava problema algum naquilo, porque minha mãe era a pessoa mais forte e incrível que eu conheço e tinha uma profissão como qualquer outra. Mas quando acessei os porquês, os processos históricos que fizeram minha mãe e todas as mulheres – negras – de minha família serem trabalhadoras domésticas, eu sofri.
A música que adoravam cantar pra mim na escola, quando meus cabelos estavam “armados” era ‘Nêga do cabelo duro passa um alisante que ajuda a melhorar”. Nunca “melhorou”, seguiu sendo maltratado e acusado de “ruim”. E eu sofri.
Adolescente, de cabelos já constantemente alisados, iniciando a descoberta dos desejos e do querer ser admirada, amada por alguém, o garoto que eu achava sentir algo por mim, em um dia que eu “descuidei” a raiz do cabelo, notou a presença dos “parentes” e fez cara de nojo ao se aproximar de mim, e logo em seguida soltou um “não sabia que seu cabelo era ruim”. E eu sofri.
Jovem, recém ingressa na universidade, redescobrindo meus “parentes”, passado os processos de transição capilar, em um momento de celebração, em que seria madrinha de batizado pela primeira vez de uma criança negra como eu, linda como eu, um tio me confidencia secretamente ao ouvido: “eu tenho vontade de colocar fogo nesse seu cabelo”. E eu sofri.
São algumas das memórias que consigo acessar porque foram as mais escancaradas. Tem as complexas e veladas, que em um texto eu não conseguiria esgotar. Porque persistem. E eu não consigo me isentar desse lugar, mesmo que isso te incomode.
Por isso, permita que eu fale, que eu me enuncie, me afirme, e que não precise confidenciar a público as minhas cicatrizes que você diz eu não as ter.
Permita que eu escureça, não esclareça.