Pérolas de memórias dos movimentos negros como registro histórico de uma identidade violentada

Projeto envolvendo Cebrap, Unicamp e Universidade da Pensilvânia resgata e conserva documentos de entidades como Movimento Negro Unificado e Geledés e de ativistas como o fotógrafo Januário Garcia

FONTEPor DANIELA MERCIER, do El País
Ativistas como Lélia Gonzalez, Benedita da Silva e Abdias Nascimento na marcha "Zumbi está vivo", realizada no Rio de Janeiro em 1983. Foto faz parte do acervo de Januário Garcia que está sendo preservado.JANUÁRIO GARCIA

“Na minha geração, ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, porque vai ter. Eu vou fazer essa memória.”

A frase proferida em uma entrevista há um ano é de Januário Garcia. Autor de imagens que estamparam capas de discos marcantes, como Alucinação (Belchior em um close hipercolorido) e Muito (Caetano Veloso no colo de Dona Canô), ele também foi um importante fotógrafo dos movimentos negros, acompanhando manifestações e ativistas que ocuparam as ruas contra o racismo e a violência policial desde a década de setenta. Com um acervo da ordem de 65.000 arquivos analógicos, além de imagens digitais, ele tinha consciência da necessidade e da urgência de preservar seus registros e, desde julho de 2020, vinha trabalhando com acadêmicos para catalogar o seu trabalho. No último dia 30 de junho, aos 77 anos, faleceu por complicações da covid-19. A pandemia levou a vida de um dos militantes mais ativos pela história e valorização da cultura negra no Brasil e, com ele, também um pedaço da memória da luta racial dos últimos 40 anos.

A perda histórica não é banal. Não somente fotografias, mas gravações, correspondências, atas de reuniões, rascunhos de discursos, panfletos e cartazes que contam a trajetória de organizações e movimentos sociais negros do país ainda estão guardados, em grande parte, devido ao esforço pessoal de seus integrantes, ao mesmo tempo em que pesquisadores enfrentam a lacuna de registros oficiais e da grande imprensa para resgatar essas informações. A preservação da memória documental do ativismo negro está ainda mais fragilizada no Governo Bolsonaro, com a escolha de Sérgio Camargo —crítico da militância e negacionista do racismo estrutural— para o comando da Fundação Palmares, que tem entre suas missões justamente proteger a história negra. Em junho, Camargo anunciou a retirada de circulação de 95% do acervo bibliográfico da entidade, incluindo cerca de 4.000 livros, catálogos, panfletos e folhetos com temática negra, mas considerados inadequados por conterem “militância política explícita”, “demonização da polícia”, entre outros critérios, Após ação popular, a Justiça Federal do Rio de Janeiro concedeu uma decisão liminar (provisória) impedindo a doação do acervo.

É nesse contexto que três grupos de pesquisadores uniram esforços em um projeto de captação, conservação, digitalização e divulgação do acervo de entidades e militantes, lançado neste mês: o Afro Memória. A iniciativa é coordenada por Paulo César Ramos, pesquisador do Afro, o núcleo de estudos sobre a questão racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Na elaboração de sua tese de doutorado sobre a mobilização contra a violência policial em São Paulo, ele conversou com ativistas sobre suas experiências. “Chegava um momento das entrevistas em que eles diziam: ‘Eu não me lembro desse detalhe’ ou ‘essa informação existe, mas eu não consigo me lembrar agora. Se você tiver interesse pode ir lá em casa pegar os papéis que eu guardei’”, conta Ramos sobre a situação que o levou a iniciar o projeto. “Chegando à casa desses militantes eu descubro que eles tinham relíquias. Em estantes, em caixas, guardadas das maneiras mais variadas”, explica o pesquisador.

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