Pesadelo Real

FONTEPor Fernanda Lemos Gonçalves, enviado ao Portal Geledés
Getty Images

De uns dias cá tenho sentido meu corpo inchado. Eu que tenho projeto “tanquinho” a cada estação, imaginei que fossem os efeitos das abdominais que ando fazendo. Mas essa semana a minha barriga adquiriu uma forma arredondada e o teste da farmácia confirmou as minhas suspeitas: grávida!

Tem duas semanas que estou brigada com o preto. Dessa vez parecia ser pra valer. Ele é esquentado e eu sou outro furacão. Entre nós dois tudo é muito, desde o amor até a fúria. Mas eu estava mesmo com saudades dele; não apenas o fato de estar sozinha com uma gravidez inesperada. E é uma responsa ser mãe (preta) solo nesse país!

Para além disso, eu estava com saudades do seu sorriso e do seu cheiro, ai aquele cafuné que não tem igual! Queria muito beber o seu café que é nem forte e nem fraco demais, com uma pitada de canela: no ponto e perfeito. Estava com saudades dele brigando comigo para acordar porque eu não tenho hora com nada e ele é muito pontual, coisa que aprendeu quando serviu no exército. 

Á noite nos encontraremos no banquinho da praça; eu sei que ele sempre para lá para fumar um cigarro antes de subir o morro.  Dito e feito! Estou chegando e já o estou avistando com sua blusa colorida e com seu óculos de grau inseparável.  A miopia de um professor só aumenta com o passar dos anos. O coração está a mil. 

Ao encontrá-lo, não preciso dizer uma palavra sequer, nos olhamos e entendemos que a briga foi um exagero danado.  Nos beijamos e em seus braços sinto toda a segurança do mundo.  Nos amamos demais e vou dar a notícia de que seremos pais depois de subir o morro, ao chegar em sua casa.

O preto está com um baseado enrolado em blunt – para quem não sabe, blunt é um papel de seda mais escuro, usado normalmente em charuto – mas como não há cheiro, passamos  por uma viatura da polícia sem medo. Não havíamos reparado nos canas do outro lado da rua, que estavam nos fitando o tempo todo. 

Um desses porcos fardados joga uma piada e o preto não deixa passar em branco.  Quem tem Ogum na coroa não abaixa a cabeça assim. Outro cana, que estava do outro lado da rua joga uma pedra nele e ele corre.  Ele consegue correr até duas esquinas para além dali  e três homens o encontram.  Tais homens batem nele com muito ódio, todos eles são brancos. Eu não entendo o que gerou tanto ódio nesses caras, o preto não fez nada tão absurdo para levantar essa fúria coletiva. Chega o quarto com um cassetete e bate, com muita violência, em seu corpo magro. Eu realmente não sei de onde surgiram esses homens, mas todos têm a mesma aparência e todos estão com um uniforme bege. Não consigo distingui-los, a minha visão está turva. 

Eu grito, com toda a força do meu ventre. Estão matando o homem que eu amo e bem na minha frente. O meu desespero é tamanho que não consigo correr, não consigo defendê-lo.  Até que um deles golpeia a sua cabeça com muita força e seu corpo obedece à terceira Lei de Newton, indo de encontro ao chão e voltando a uma altura considerável. 

Ali ele já está sem vida. Não há como resistir a um golpe desses. Se eu pudesse, estaria protegendo seu corpo das violências daqueles homens, mas é a violência de um Estado. Eu sozinha não consigo.  Eu só consigo gritar ao ver a cena de um assassinato de um homem, com toda a sua humanidade negada diante de um Estado genocida. 

Eu grito desesperadamente ainda mais alto. Acordo. 

Olho para o lado e estou na cama. Sozinha. 

Não estamos mais juntos. Eu não estou grávida. Me sinto profundamente aliviada. Apesar de bem real, era apenas um sonho. Que sorte a minha! Muitas de nossas irmãs não tiveram a mesma sorte que eu de estar apenas em um sonho.

 O meu Grito foi carregado com a dor de muitas irmãs que tiveram seus filhos assassinados, seus maridos violentados, seus irmãos acorrentados. Marli não está sozinha e ali eu consegui sentir a sua dor de ter um irmão assassinado em plena ditadura militar.1

O grito que ecoa no peito de todas as mulheres que tiveram suas trajetórias rompidas por esse Estado e por outros regimes, desde que fomos sequestrados e forçados a trabalhar nas lavouras e casas grandes.

A quantidade de pessoas presas, segundo dados do Infopen 2019 chega ao número de 773.151 (em estabelecimentos penais e também detidos em outras formas de cárcere). De acordo com o mesmo levantamento, o Brasil detém um total de 758.676 de presos e presos custodiados apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias. 3  É importante mencionar que 66,7% da população carcerária é negra. 

Segundo Juliana Borges, a população prisional brasileira não é multicultural. De forma sistemática, detentos e detentas têm seus direitos violados. A prisão como conhecemos hoje não tem papel de correção social surge como espaço de correção. Porém, mais distorce e possui função punitiva do que corrige. 2

Segundo a mesma autora, “o sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por essa estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial” (BORGES, 2019).

Estar em situação de encarceramento significa a privação de direitos e uma situação de aprofundamento de suas vulnerabilidades (BORGES, 2019). Dessa forma, tanto o cárcere quanto o pós-encarceramento significam a morte social desses indivíduos, principalmente  negros e negras que são a maior parcela das pessoas que estão em situação de cárcere. Essas pessoas carregarão a marca de ex-detento ou ex-detenta mesmo após a saída do regime. Nesse cenário, é possível concluir que essa é uma das instituições mais fundamentais e efetivas no projeto de genocídio da população brasileira. 

Não passou de um pesadelo. Será mesmo?

  1. GONZALÉZ, Lélia. Primavera para as Rosas Negras.. 2018
  2. BORGES, Juliana Encarceramento em massa / Juliana Borges. –São Paulo : Sueli Carneiro ; Pólen, 2019.
  3. Dados sobre população carcerária do Brasil são atualizados. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados. Data de acesso: 15/05/2021. 
  4. Proporção de negros nas prisões cresce 14% em 15 anos, enquanto a de brancos cai 19%, mostra Anuário de Segurança Pública. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/19/em-15-anos-proporcao-de-negros-nas-prisoes-aumenta-14percent-ja-a-de-brancos-diminui-19percent-mostra-anuario-de-seguranca-publica.ghtml. Data de acesso:  04/06/2021. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

-+=
Sair da versão mobile