Em 8 de junho de 2021, um tiro de fuzil no peito matou a designer de interiores Kathlen Romeu, de 24 anos, no Lins de Vasconcelos. A família da jovem, negra e grávida de 14 semanas, contestou de pronto a versão da Polícia Militar de que houve confronto com traficantes no local. Seria mais um caso de bala perdida, se o pai da vítima, o personal trainer Luciano Gonçalves, de 45, não conseguisse a prova que pôs em xeque a narrativa dos agentes: um vídeo que mostra os PMs andando calmamente num beco. Seis meses depois do crime, parentes e amigos fizeram um protesto na porta da sede do Ministério Público do Rio (MPRJ) para pedir agilidade nas investigações, ainda sem autoria.
O homicídio da jovem grávida é um dos tipos de casos levantados pelo estudo do Fórum Justiça (FJ) “Letalidade Policial no Rio de Janeiro e respostas do Ministério Público”. Segundo a pesquisa, dos 1.491 inquéritos finalizados pelo MPRJ, com mortes envolvendo policiais militares, civis ou penais, que não estavam em sigilo, apenas130 resultaram em denúncia, ou seja, 8,7%. Os demais, 1.361 (91,3%) foram arquivados.
Embora a promotoria não tenha dado detalhes sobre os casos sob sigilo, de acordo com o Fórum Justiça, somados com aqueles sem segredo, há 4.527 inquéritos no período analisado. Desse total, 1.748 desencadearam denúncias, ou seja, chegaram à autoria dos crimes. Tomando por base o dado, só quatro em cada 10 casos investigados pela polícia e o MPRJ chegaram à Justiça (39%), ainda dependendo da aceitação ou não da denúncia pelo magistrado.
Outro dado levantado pelos pesquisadores, que chamou a atenção, foi o tempo de duração dos inquéritos em que o MPRJ ofereceu denúncia criminal contra os investigados, no caso, agentes de segurança pública: em média quatro anos. Já para arquivar o caso, a duração acaba sendo aproximadamente o dobro. Mas também há casos absurdos, como inquéritos que passaram 27 anos até haver a denúncia. Há quatro deles nessa situação, cujas investigações se iniciaram em 1993 e acabaram arquivados em 2020.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que avalia o desempenho dos tribunais de justiça dos estados, informa que um processo criminal na justiça estadual dura cerca de dois anos e 11 meses, quase três anos. Se um caso pode durar, em média, quatro anos até chegar a denúncia, a família da vítima pode esperar sete anos em busca de justiça.
Prioridade aos casos de menor complexidade
O Fórum Justiça é uma articulação de integrantes do sistema de justiça, acadêmicos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil em busca de uma justiça democrática e inclusiva. O coordenador-executivo do Fórum Justiça, Paulo Malvezzi, ressalta que a demora do MPRJ nas investigações contribui para a impunidade.
— São milhares de mortes acontecendo e não há uma resposta do Ministério Público. Apenas 8,7% de casos denunciados é muito pouco. Levar quatro anos para tal resposta para a sociedade também não é aceitável. Todos sabemos que, quanto mais tempo se leva para elucidar um crime, mais difícil para chegar à autoria — ressalta Paulo.
A pesquisa aponta ainda que houve um incentivo do governo do estado do Rio “para que mortes cometidas por policiais não sejam reduzidas”, o que resultou no crescimento de casos de morte por intervenção policial. Por conta disso, há a necessidade de os promotores controlarem a atividade policial. Daí a pergunta no relatório: “por que o MPRJ se mantém apático em relação ao aprofundamento da violência policial assistido nos últimos anos?”
O próprio estudo tenta responder à pergunta. A conclusão é de que há “um excesso de autonomia funcional no MP como um todo, o que implicaria em uma dificuldade de se construir uma atuação articulada do órgão”. Segundo os pesquisadores, a elucidação dos casos “fica à mercê da vontade ou da vocação de certos promotores a atuação pelo controle externo da atividade policial”. Além disso, relatório traz que alguns promotores acabam priorizando os casos de mais fácil resolução, pois as dificuldades em termos de recursos humanos e técnicos se impõe ao trabalho da promotoria.
Perícia independente
A falta de estrutura do MPRJ para investigar também foi um dos fatores apontados na pesquisa. Há falta de peritos, de laboratórios forenses e de legista, que não sejam atrelados à Polícia Civil. Como na maioria das vezes o inquérito policial não possui provas suficientes, conforme cita o relatório, o promotor tem duas possibilidades: ou devolve o inquérito ao delegado do caso solicitando novas diligências ou pede arquivamento por falta de provas. A pesquisa aponta que a devolução não é bem-vista pelos investigadores da Polícia Civil, uma vez que dará mais trabalho.
Segundo o pesquisador Pablo Nunes, que assina o relatório com Jonas Pacheco, a pesquisa seria mais profunda, se o sigilo não fosse tão frequente quando o assunto são mortes decorrentes da violência policial.
]— Decretação de sigilo tem sido utilizada com maior frequência nos últimos anos em várias instituições e em diferentes níveis federativos. A Polícia Civil do Rio, por exemplo, decretou sigilo por cinco anos em documentos sobre as mortes cometidas na chacina do
Jacarezinho, em 2021, e também decretou sigilo de informações sobre usos de helicópteros por policiais em operações — comenta Pablo, queixando-se de que o MP não passou dados mais detalhados de alguns inquéritos, alegando serem sigilosos.
Os dados serão divulgados nesta quarta-feira no seminário “Quem controla a polícia do Rio de Janeiro?”, acessando https://www.even3.com.br/quem-controla-a-pmerj/.
Dor da perda de filha é como tiro de fuzil no peito
Para o pai de Kathlen Romeu, apesar de ser “praticamente impossível” denunciar policiais, por serem agentes do estado, ele conseguiu reverter o caso correndo atrás das provas para mostrar que a filha foi alvo da PM, enquanto o Ministério Público, à época, não teria sido diligente na investigação.
— Os policiais já foram denunciados, porque corremos atrás das provas. Tivemos uma briga com o MP devido à sua morosidade, mas agora as coisas estão andando. Não admitimos a falácia de sempre dos policiais, de que eles só reagiram à injusta agressão. Na verdade, não havia confronto. Desqualificamos o depoimento deles — diz o pai.
Não há um dia sequer que Luciano não se lembra da filha:
— Não desejo a ninguém, nem aos policiais, a dor de perder uma filha. O tiro de fuzil que atingiu o peito da Kathen, eu levo todos os dias ao me lembrar dela. Perdi minha filha nessa política de segurança perversa, que atinge pretos e pobres. Mesmo com essa perda, estamos na luta. Queremos uma sentença justa — comenta.
A primeira audiência do caso Kathlen será no dia 29 de maio, às 14h, no II Tribunal do Júri, no fórum do Rio.
No último sábado, após o jogo do Flamengo contra o Fluminense, houve mais um crime envolvendo um policial, desta vez, da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). O policial penal Marcelo Maia é acusado de atirar em dois torcedores do fluminense, num bar, nos arredores do Maracanã. O cinegrafista Thiago Motta morreu e BrunoTonini se encontra em estado grave no Hospital Badim, na Tijuca.
Por nota, o MPRJ informou que “não se pronunciará, por ora, já que ainda não teve acesso à pesquisa para uma análise criteriosa”.