Pessoas como eu desistem logo…

FONTEPor Lígia Rodrigues de Almeida, enviado para o Portal Geledés
© Anna Ismagilova/adobe

Tinha 9 anos quando fiz meu primeiro Registro Geral, o RG. Era a concretização do mantra de minha mãe, repetido a cada vez que eu e meu irmão saíamos: “Leva o RG! Se acontecer alguma coisa na rua vão saber que vocês tem pai e mãe”. Criança, me perguntava quem nesse mundo não haveria de ter nascido de pai e mãe. Mas de fato, misteriosamente, nosso pai e nossa mãe importavam mais. Ainda que a “turminha” fosse grande, sempre eram os nossos RGs os que deveriam passar por verificação.

Passado o drama da infância, o de fazer saber que tínhamos pai e mãe, veio a adolescência. As meninas da minha idade, quatorze, quinze anos, já sofriam por amor. Eu, ainda sofria para deixar o cabelo “chapado” e encontrar aquela maquiagem que não fizesse o meu rosto destoar de todo o resto do meu corpo. Nessa época, no mundo dos cosméticos, só havia uma cor de pele, e era rosa, bem claro. Desisti de usar maquiagem, de modo que não parecia tão vaidosa quanto minhas amigas, assim, virei a desencanada, a relaxada, a amiga dos meninos, a cupido da turma. Até que alguém, em algum lugar, brilhantemente teorizou: “Pegar galinha preta da sorte!”. Foi ai que conheci meu primeiro amor. Faz 20 anos, e ainda há muito a se discutir sobre a solidão das mulheres negras, seguimos…

Aceitei que não eram fabricados produtos compatíveis com meu corpo e minha pele, aceitei meu cabelo e meu desejo de seguir sendo diferente, carregando com afinco meu RG. Era diferente, mas tinha pai e mãe. Entrei na faculdade. “Pública!”, repetia minha mãe, que seguia fazendo faxinas enquanto eu trabalhada servindo mesas nos bares e buffets. Meus amigos na Universidade eram parecidos com os que tive durante o ensino médio, no colégio particular onde era bolsista. Apenas eu e um amigo destoávamos da turma, mas ainda não sabíamos que éramos tão diferentes assim. Foi na nossa primeira prova que soubemos. Quatro e setenta e cinco! Foi a nota que a professora atribuiu às nossas provas, muito semelhantes a todas as outras que mereceram um redondo oito. O motivo? “Pessoas como vocês não atingem nem a média”. Mas, por sorte, tínhamos direitos e faríamos uma prova substitutiva. O tema? As teorias do sociólogo Émile Durkheim. O texto? Totalmente em francês. “Se não conseguiram na primeira, porque conseguiriam na segunda? Pessoas como vocês desistem logo!”.

Me formei em quatro anos, fiz disciplinas pela manhã e durante a tarde. A noite seguia servindo mesas: “Você é bonitinha, pena que não é estudada!”. Imagina quanta bebida não derramei nas pessoas sem querer. Ossos do ofício!

Pensava em ser diplomata quando entrei na faculdade, depois vieram as ofertas para que eu pesquisasse sobre temas relacionados às mulheres negras. Ofertas que partiram do meu único professor negro, ao longo de todos esses anos de formação. Nesse meio tempo me apaixonei pelas leituras sobre os povos ameríndios e segui por esse caminho.

Com diploma de licenciatura e bacharelado prestei o processo seletivo para o mestrado em antropologia social. O choque veio logo na entrevista. Um dos professores, que pouco me perguntou sobre o projeto que estava diante da banca apresentando, me fez um único questionamento: “Como você, na sua condição, pretende se manter aqui?”. Respondi que na ausência de bolsa de pesquisa eu tinha pai e mãe. Estava ali, no meu RG. E mais uma vez veio à tona essa obsessão por quem me pariu. Mas afinal, de que condição falava o tal professor? Soube mais tarde, na sala de aula.

Alguns dizem que, por sorte, consegui uma bolsa de pesquisa, ainda que a sua concessão dependa da consistência do projeto. Talvez pessoas como eu não tivessem competência para conseguir tal feito por meio do trabalho duro. E foram dois duros anos de trabalho. Gastos, sobretudo, para responder aos colegas e professores

– que sempre tiveram acesso à cursos de línguas, livros e viagens – o porquê de algumas situações me levarem à exaustão.

Mas como pessoas como eu desistem logo, enquanto preparava a defesa de minha dissertação de mestrado estudava para uma prova de francês, um dos requisitos para aprovação no doutorado em antropologia social. A mesma língua que quase me fez reprovar no meu primeiro semestre da faculdade. Aliás, o francês foi um tormento por um longo tempo. Certo dia, já no doutorado, em uma sala com aproximadamente 30 pessoas, uma colega que lia um trecho em francês virou-se na minha direção e de outros dois colegas, e pedindo desculpas, disparou: “Depois posso traduzir para vocês, se vocês quiserem!”. E assim fez. Pessoas como nós não costumam falar ou compreender outras línguas.

Quatro anos se passaram, defendi minha tese, resultado de uma pesquisa que contou novamente com uma bolsa que, como alguns dizem, consegui por sorte. Já eu, prefiro pensar que talvez tenha sido por conta da classificação que conquistei com as notas, durante o processo seletivo. E em razão do privilégio que tive, e que não esqueço, de poder estudar enquanto minha mãe fazia faxinas e meu pai “corria atrás”, na tentativa de quebrar um ciclo que acompanha nossa família por algumas gerações. Mas quem sou eu para contrariá-los.

Como pessoas como eu desistem logo, comecei a fazer processos seletivos para docente em universidades federais e estaduais, ainda como professora substituta. Nos últimos anos, poucos concursos para professores efetivos foram abertos. Valoriza-se pouco a educação no nosso país.

Enquanto aguardava o momento em que ministraria uma de minhas muitas aulas teste, me dei conta de que a única pessoa que novamente destoava das outras, era eu. Pessoas como eu, graças às políticas de ações afirmativas, agora têm ocupado espaços em lugares onde não entraríamos, ainda que estivéssemos portando nossos RGs. Infelizmente ainda somos poucos.

Lembro-me dos burburinhos da primeira reunião que participei do Conselho de Curso, onde meus colegas, professores e professoras, me receberam muito gentilmente. “Afinal, essa é nova cara da Universidade Pública!”. Participei de vários eventos, fui convidada para falar em diferente ocasiões, mas confesso que ainda que gostasse e achasse importante falar a respeito de minha experiência sobre ser mulher negra e professora universitária, cansava o fato de todos os assuntos terminarem nessa mesma questão. Às vezes me soavam como uma forma de reforçar que eu não deveria estar ali, era como se me perguntassem: “como é ser alguém que está onde não devia estar?” Pergunta que não era feita aos homens e mulheres brancas que sentavam ao meu lado nas conferências e palestras que ministrávamos juntos.

Ora ou outra a lembrança do senhor que me atendeu no banco no dia em que fui solicitar o número do meu PIS para assinatura do contrato de trabalho, me pegava sem aviso: “É pra trabalhar de empacotadora?”. É estarrecedor, para dizer o mínimo, que no século XXI ainda existam pessoas que se sentem em posição de determinar os lugares que, pessoas como eu, podem ou não ocupar.

Nessas horas o que faz com que eu me recupere da vertigem causada pelo abismo é a lembrança do olhar de uma de minhas ex-alunas. Uma menina negra e miúda que em nossa primeira aula, sem nem me conhecer ou ouvir meu nome, me

abraçou se dizendo feliz em saber eu seria sua professora. Mas como não podemos contar com a sorte em todas as ocasiões, naquela noite morreu Marielle Franco. Assassinada! Uma mulher, negra, vereadora. Assassinada! Ainda hoje ecoa a questão: “Quem mandou matar Marielle?” Serei eu a próxima? Naquela tarde chuvosa em que corro pela rua esquecendo de colocar no bolso meu RG? Sigo contando com a sorte, desejo que ela caminhe comigo.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile