Pílulas de Discernimento: em gratidão aos feminismos

Março finda e Joanna Burigo reflete sobre as formas como as feministas aprimoram a vida social, citando a recém fundada Internacional Feminista

FONTECatarinas, por Joanna Burigo
Imagem retirada do site Catarinas

Na minha coluna mais recente aqui para o Catarinas discorri sobre divas pop e feminismo, assunto que muito me interessa pelo tanto de manchetes de mídia e engajamento nas redes sociais que o tema engendra. Ao final, já inspirada pelas palavras da pesquisadora Izabel Belloc sobre a  adesão do Brasil ao Compromisso de Santiago, e no afã necessário de reconhecer a multiplicidade de contribuições que mulheres vêm fazendo para a sociedade, deixei combinado com a leitora que escreveria sobre feminismos menos visibilizados do que os costumeiramente invocados no tititi sobre as milionárias da cultura pop. 

Os feminismos acumulam históricos e histórias, há muitas maneiras de contá-las, e todas sempre deixam ações e nomes de fora, por motivos mais ou menos nobres. Em seu brilhante artigo “Contando estórias feministas“, a muito querida professora Clare Hemmings identifica e analisa narrativas e apagamentos do feminismo ocidental. Foi sobre isso que ela falou quando abriu o Seminário Internacional Mundo de Mulheres e Fazendo Gênero, na UFSC, em 2017.

A professora de Teoria Feminista da London School of Economics, Clare Hemmings, no Seminário Internacional Fazendo Gênero, UFSC, agosto de 2017. Fonte: página do evento / Imagem retirada do site Catarinas

Em “Feminismos – Uma história global” (Companhia das Letras, 2022), a historiadora Lucy Delap escreve como quem estudou Hemmings, e se propõe a costurar outras formas de relatar contribuições para a justiça social, por diversos feminismos, ocorridos em várias localidades ao redor do mundo, e com a participação de várias lideranças – como a de Funmilayo Ransome-Kuti, ativista nigeriana pelos direitos das mulheres, e mãe de Fela Kuti. 

Eu mesma leciono sobre as Histórias dos feminismos, e você pode me assistir na disciplina do curso Feminismos, algumas verdades inconvenientes da UFGRS, cuja feitura foi inspirada na Cartilha Laudelina de Campos Melo do curso homônimo da Emancipa Mulher, que também elaborei (e que, em breve, você também poderá assistir na íntegra e gratuitamente no site da escola). 

No Brasil, nomes como o de Amelinha Teles e Sueli Carneiro são icônicos de muitas das lutas travadas por ativistas no país, e tenho acompanhado com interesse o trabalho de resgate histórico de lideranças trans que a pesquisadora e conselheira dos direitos da população LGBT em Pernambuco, Caia Maria, tem divulgado em suas redes.

Maria Amélia de Almeida Teles, jornalista e escritora, foi presa e torturada pelo DOI-Codi, segue sendo uma das principais vozes de denúncia e apuração da verdade do período da Ditadura Militar, e desenvolve um trabalho primoroso e histórico dos feminismos nacionais. Aos quase oitenta anos, a maioria deles dedicados à justiça social, dirige a União de Mulheres de São Paulo, coordena projeto de Promotoras Legais Populares, e continua publicando: seu mais novo livro, “Feminismos – Ações e histórias de mulheres” (Alameda, 2023), será lançado em 15 de abril e mal posso esperar para as histórias que esta lenda viva de tantas batalhas democráticas no nosso país tem a ofertar. 

Sueli Carneiro, outra lenda viva de muitas lutas e processos de comunicação e educação sobre gênero e raça no Brasil, recentemente teve sua tese de doutorado lançada em livro. Em “Dispositivo de Racialidade” Carneiro defende que o enfrentamento ao racismo aconteça sempre pelo coletivo, onde o autocuidado e o cuidado do Outro forjam a busca por emancipação – uma lição aplicável aos movimentos feministas. 

Sueli Carneiro, filosofa e escritora – Ze Carlos Barretta/Folhapress 11.nov.2019

Mas estes são nomes conhecidos. Muito feminismo é feito por pessoas, articulações e grupos dos quais a maioria da sociedade jamais ouviu falar.

Assim, esse texto visa ser minha saudação em gratidão às organizações regionais do 8M; aos movimentos de mães: desde as de Maio, até as de Blumenau; as muitas cientistas cuja produção acadêmica informa a construção de práticas de aprimoramento da justiça social; à participação de mulheres feministas em órgãos internacionais, como a ONU, a OMS, a ARTIGO 19 ou Anistia Internacional; à luta incessante que as feministas vêm travando em parlamentos e governos em todo o planeta; às uniões de mulheres, às procuradoras legais populares, aos coletivos e ONGs feministas independentes, e aos coletivos feministas em corporações e partidos políticos. Louvo todas estas mulheres que contribuem para que perspectivas antipatriarcais se desenvolvam, e angariem mais adesão, reforçando assim uma ética feminista de trabalho que ecoa o ensinamento de Sueli Carneiro – ou, nas palavras de Ìyá Sandrali, autora de “Pelo direito de ser quem sou: um ser coletivo” (Editora Zouk, 2022), usam o melhor de cada uma para, com radicalidade amorosa, transformarmos este mundo machista e racista em um lugar mais acolhedor e inclusivo.  

A abordagem metódica de Izabel Belloc Moreira ao falar sobre documentos oficiais – como o Compromisso de Santiago ou a Agenda Regional de Gênero da CEPAL – demonstra que o desenvolvimento da linguagem de inclusão – e subsequentemente das políticas públicas – pode ser traçado de volta para as inserções feitas por movimentos feministas e movimentos de mulheres nos espaços de debate e disputa. 

A gente vê o progresso acontecendo a partir de prerrogativas, discursos, linguagens, enquadramentos, pensamentos, e muita ralação feminista, e quando estes entram para o senso comum, muita gente se utiliza das lógicas feministas, utilizando as palavras e práticas dos feminismos, sem defenderem o feminismo, o que é no mínimo ingrato. Me angustia o apagamento do feminismo feito por quem vende conteúdos de origem indubitavelmente feminista, e é preciso confrontar, em caráter de urgência, quem oportunamente apaga o termo enquanto prospera com suas práticas. 

Não é incomum vermos pessoas abordarem conceitos feministas pela beirada, fazendo um grande esforço para usar termos outros que não os que os dão melhor nome, ou serem abertamente anti-misoginia, mas terem medo da palavra feminismo. Pessoas que lucram com manuais de combate ao machismo, mas não ousam apontar o patriarcado, que constroem carreiras individuais como vozes a favor das mulheres, claramente se utilizando de conhecimento e ferramentas desenvolvidos por feministas para isso, mas disfarçando ou apagando a origem de onde tiram suas ideias, utilizando-as para o próprio autoengrandecimento.

Apagar o feminismo do feminismo para ser palatável é um mecanismo inconteste da feminilidade que enfatiza a hegemonia da masculinidade. O feminismo com medo de ser feminista acontece e lucra enquanto feministas levam pauladas da sociedade, ainda que sejam as verdadeiras responsáveis pela construção de futuros mais diversos e inclusivos, como mostra a história das agendas progressistas – tais quais as regionais de gênero.

Recentemente, mulheres líderes de 28 países se uniram para fundar a Internacional Feminista – tão recentemente que, enquanto escrevo, entre 30 de março e 01 de abril de 2023, muitas delas estão reunidas na Cidade do México para a primeira reunião da instituição. Manuela D`Ávila e a Ministra Anielle Franco estão entre as fundadoras, e a deputada federal Daiana Santos participa do evento. De acordo com o Instagram do grupo, a Internacional Feminista se propõe a ser uma aliança transfronteiriça para o trabalho coletivo e coordenação feminista, e tem como desafio transformar nossa sociedade capitalista destruindo o patriarcado. 

Meu objetivo com este texto é saudar e agradecer a todas estas feministas, de ontem e de hoje, conhecidas ou anônimas, que há mais de dois séculos vêm identificando o patriarcado como inimigo comum, se organizando para sua derrocada, e dizendo com clareza quem são e a que se propõem. 

Também viso aqui sedimentar a ideia de que a participação de movimentos feministas em debates e disputas políticas – muito mais do que qualquer manchete ou tendência das mídias e redes sociais (e indubitavelmente mais do que influencers e vendedoras que não têm coragem de se assumir feministas, mas não parecem ver problemas em lucrar com o feminismo…) – resulta em boas práticas políticas de inclusão na diversidade. 

Finalizo pegando emprestado o genial discernimento ofertado pela poeta Mariam Pessah (num evento de lançamento do meu livro Patriarcado Gênero Feminismo, Editora Zouk, 2022, no Festival Rastros do Verão, em Porto Alegre no começo de março deste ano): “o feminino não contempla todas as mulheres, mas o feminismo sim”

Avante feministas, e fogo no patriarcado. 

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