Pode o presidente ser (chamado de) racista?

“Esses tuítes não foram racistas. Eu não tenho um único osso racista no meu corpo!”, postou o presidente dos EUA, Donald Trump, na última terça-feira (16).

Por Thiago Amparo, da Folha de S.Paulo

Era a resposta do mandatário a acusações, formalizadas em um pedido de impeachment rejeitado pelo Congresso dos EUA, de que teriam sido racistas os seus comentários sobre quatro congressistas democratas: Alexandria Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Rashida Tlaib e Ilhan Omar.

Dois dias antes, Trump havia pedido para que elas “voltassem para seus países e ajudassem a consertar os lugares totalmente quebrados e infestados de crime de onde vieram”. Todas as congressistas são cidadãs americanas e, com exceção de Ilhan Omar, que se naturalizou americana, nasceram em solo americano.

Trump sabe bem disso. Ao invocar o inexistente “país de origem” das congressistas, Trump está invocando uma forma comum de racismo nacionalista, o que a escritora e artista Grada Kilomba chama de política espacial racista em seu livro “Memórias da Plantação”, o mais vendido na Flip neste ano.

É a forma de dizer que alguns pertencem a este lugar, outros não. A própria família e esposa de Trump são imigrantes e não tiveram seu lugar de pertencimento questionado, mostrando que se trata de um corte racial, não geográfico.

A partir de qual ponto podemos chamar um presidente de racista?

Jornalisticamente, é bom o debate. O editor-executivo do Washington Post relatou que o jornal tem sido “cauteloso na terminologia” para “informar seus leitores da maneira menos passional possível”. Concluiu, no entanto, que o jornal usaria o termo “racista” para os tuítes do Trump “dada a história profunda de racismo nos EUA”.

Adam Serwer, escritor do The Atlantic, por outro lado, relatou que a questão não é fato vs. opinião, mas sim consenso vs. controvérsia. Muitos leitores discordam que Trump foi racista, portanto a imprensa não deveria qualificá-lo como tal, escreveu Serwer.

Tal debate jornalístico parece ofuscar algo fundamental sobre nossa era onde nacionalismo populista se alimenta de pós-verdade: políticos transformam fatos em opiniões ao definir qualquer tema como controverso, inclusive os limites do que é racismo.

Suavizar a definição de racismo serve justamente para manter a presente distopia onde todos os leitores concordam com que racismo seja inaceitável, ao mesmo tempo em que permite, pela recusa de chamar de racista algo que o é, que uma fala presidencial não seja assim qualificada. Nesta distopia permite-se a convivência pacífica entre nacionalismo racista e consenso social de que racismo seja algo ruim.

Palavras —todas elas— são socialmente construídas e assim convencionadas. Não é algo atípico que imprensa convencione claramente, por meio de editoriais ou guias de estilo, quando e como utilizarão a palavra ‘racista’.

Doreen St. Félix, colunista da revista New Yorker, lembrou que o guia de estilo da Associated Press mudou seu verbete sobre raça em março deste ano, e agora se lê: “Não use termos raciais ou similares como eufemismos para racista ou racismo onde os últimos termos sejam de fato cabíveis”.

Agora, e o direito com isso? Por que presidentes podem falar frases que se ditas por seu empregador, por seu professor, por seu desafeto pessoal poderiam até configurar crime de racismo?

Nesta quinta-feira (18), uma charge na revista New Yorker retrata uma mãe brigando com seu filho: “Não use linguagem presidencial nesta casa”. Por que presidentes podem mensurar quilombolas por arrobas e definir que “nem para procriador eles servem mais”, como o fez presidente Bolsonaro, então deputado, em 2017?

Em livro a ser lançado ainda este ano pela Cambridge Press intitulado “Whitelash: Unmasking White Grievance in the Age of Trump”, o jurista norte-americano Terry Smith argumenta que tanto candidatos a presidente quanto seus eleitores podem vir a ser legalmente responsáveis nos EUA por perpetuar racismo.

No Brasil, define-se racismo como praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional pelos termos da Lei 7716 de 89.

A Convenção da ONU sobre o tema, ratificada pelo Brasil em 1968, define discriminação racial como “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica.” Aqui fica claro que xenofobia como política espacial racista é uma forma de racismo.

Quando teve a oportunidade de enegrecer (sic) o que significa racismo, o Supremo Tribunal Federal brasileiro falhou magistralmente.

Ao rejeitar denúncia contra Bolsonaro pelo crime de racismo, o ministro Marco Aurélio definiu que as afirmações, embora denotem superioridade de um grupo por outro, são “desprovidas da finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação” do grupo em questão, portanto, não configuraria crime. Parece o STF (por 3 a 2) a afirmar que somente a incitação a eliminação física de um grupo por outro (definição legal de genocídio, aliás) seria o grave o bastante.

Embora tenha qualificado como “de toda infeliz” a mensuração de quilombolas em arrobas, o ministro Marco Aurélio afirmou que o objetivo do agora presidente era apenas “enfatizar estar um cidadão específico do grupo acima do peso tido como adequado.”

Em outras instâncias, como no caso Maria do Rosário vs. Jair Bolsonaro, o Judiciário brasileiro entendeu, corretamente, que imunidade parlamentar não incluía a permissão para dizer que a deputada “não merecia ser estuprada por ser muito feia”.

Lembro aqui de Ruanda. Lembro da rádio que propagava ódio dia e noite chamando o grupo étnico opositor de “baratas”. A relação entre violência e discurso de ódio naquele caso é bem documentada pela literatura acadêmica. Triplicaram os casos de intolerância no período eleitoral em São Paulo em 2018. Onde recai a responsabilidade de presidentes por sua linguagem?

Quando qualificamos uma frase racista de meramente polêmica, nós a isentamos da responsabilidade pela violência que ela há de gerar.

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