Polêmica racial e ‘reelitização’ no Itamaraty

Justiça barra aspirantes a diplomata indevidamente autodeclarados negros em concurso que retomou critério eliminatório da prova de inglês

por André Barrocal — no Carta Capital

O Itamaraty começa o ano em clima de polêmica racial. No fim de 2017, a Justiça proibiu a posse de candidatos a diplomata que aparentemente declararam-se negros de forma indevida. O diretor da escola de formação do Itamaraty foi pressionado a recuar de fazer do inglês de novo uma disciplina eliminatória no concurso da Casa, uma opção, também ao que parece, prejudicial a afrodescendentes e à aplicação da Lei de Cotas.

A proibição da posse foi determinada por uma liminar do juiz Ed Lyra Leal, da 22a Vara de Brasília. Ele atendeu a um pedido do Ministério Público Federal feito uma ação civil pública movida pelo MPF contra dispositivos do concurso realizado em 2017 para selecionar aspirantes a diplomata.

Na seleção, o Itamaraty buscou seguir a Lei de Cotas, de 2014, que reserva a negros 20% das vagas de concursos públicos. O processo tinha uma comissão para verificar se os postulantes autodeclarados negros eram aptos à condição de cotista. Uma outra comissão revisaria casos de pessoas barradas na verificação que se sentissem injustiçadas.

A primeira comissão excluiu cerca de 40 pessoas, das quais umas 25 conseguiram decisão favorável na revisão.

Em uma averiguação preliminar, a procuradora da República Anna Carolina Resende Maia Garcia, do 2o Ofício da Cidadania do MPF no Distrito Federal, pediu ao Itamaraty fotos dos autodeclarados negros e a gravação das entrevistas deles. Solicitou ainda as decisões das duas comissões.

A conclusão da procuradora foi que havia candidatos indevidamente autodeclarados negros e que houve erro por parte da comissão revisora que aceitou os recursos daquelas pessoas. Anna Carolina então decidiu acionar a Justiça, com uma ação apresentada em 14 de dezembro.

“É nítido que não foram as características fenotípicas desses candidatos que motivaram o deferimento ou indeferimento dos recursos”, afirma a procuradora na ação. “Nota-se, da simples análise das fotos, que os requeridos não têm a aparência física das pessoas negras.”

O juiz Leal entendeu haver “o risco de lesão grave” se o concurso fosse adiante, pois quem não merece tiraria proveito da Lei de Cotas. “Mais relevante, o ingresso de candidatos desprovidos da qualificação legal representaria patente iniquidade perpetrada contra candidatos aprovados no concurso que preenchem o requisito da cota”, escreveu ao dar a liminar, em 19 de dezembro.

O governo não é o único réu na ação. Seis candidatos que conseguiram decisão favorável da comissão revisora também são: Filipe Mesquita de Oliveira, Matheus Freitas Rocha Bastos, Paulo Henrique de Sousa Cavalcante, Rebeca Silva Mello, Rodolfo Freire Mache e Verônica Couto de Oliveira Tavares.

São seis os réus pois este é o número reservado a cotistas no Itamaraty. Os concursos anuais para diplomata costumam abrir 30 vagas.

“Para nós, 80% dos seis são ‘pardos claros’. ‘Pardos pretos’ e ‘pardos pardos’ vêm primeiro para fins de cotas”, diz Frei David, diretor da Educafro, entidade militante das ações afirmativas e da inclusão social de negros e pobres. “É o terceiro ano seguido que as vagas de negros são ocupadas por ‘pardos brancos’ no Itamaraty.”

David conversou sobre o assunto com o diretor do instituto Rio Branco, a escola de formação do Itamaraty, um dia antes da ação do MPF. O embaixador José Estanislau do Amaral Souza Neto topou abrir à sociedade civil a participação nas comissões de verificação e revisora do concurso de 2018, para evitar novas polêmicas. Mas não quis voltar atrás no concurso de 2017. Disse isso à procuradora Anna Carolina, por telefone.

Souza Neto foi o responsável por ressuscitar em 2017 o caráter eliminatório da prova de inglês no concurso. Fixa-se uma nota e, quem tira menos, dá adeus à disputa. A prática havia sido abolida em 2004, primórdios do governo Lula, com o objetivo de democratizar o acesso à carreira, tida como restrita a brancos endinheirados.

“É uma reforma democrática que permitirá a um número maior de brasileiros que nunca tiveram chance de viver no exterior ter condições de concorrer em razoável igualdade de condições, desde que provem sua excelência e capacidade de aprendizado”, dizia o ministro das Relações Exteriores na época, embaixador Celso Amorim.

Para compensar a entrada de candidatos com inglês precário, o Itamaraty passou a investir em aulas paralelas e, após um ano e meio, os estudantes tinham de apresentar certificado de proficiência no idioma. A lógica é que o futuro diplomata deveria terminar sua formação falando inglês, não que precisasse ser assim no começo.

O atual diretor da escola pensa diferente. Diz estar “apenas reintroduzindo uma boa prática que sempre existiu no passado”. Inglês, afirma, é o “idioma mais usado internacionalmente e sem o qual um diplomata seria um profissional incompleto, incapaz de desempenhar plenamente suas funções”. O caráter eliminatório da prova “obedece assim ao requisito do bom exercício da profissão”.

Essas explicações constam de uma troca de cartas com Frei David, à qual CartaCapital teve acesso. O contato começou em junho passado e culminou com um encontro entre eles em 13 de dezembro, em Brasília. A intenção da Educafro era fazer o Itamaraty desistir do critério eliminatório do inglês.

Segundo a reportagem apurou, ao ressuscitar o critério, Souza Neto agiu aparentemente por conta própria. Sem estímulos de professores do Rio Branco que poderiam estar preocupados com a qualidade dos alunos ou do chanceler tucano Aloysio Nunes Ferreira.

O embaixador de 61 anos chegou ao cargo no início do governo Temer, em outubro de 2016. Foi colaborador direto de outro presidente, o tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Era da assessoria diplomática do Palácio do Planalto entre 1995 e 1997. Ao sair da gestão FHC, trabalhou por cinco anos no setor privado, em empresas como a multinacional Unilever.

Em 1994, foi assessor no ministério da Fazenda ao lado do diplomata Sérgio Danese, atual número 2 do Itamaraty. O número 2 da época em que o inglês deixou de ser excludente vê com o pé atrás a volta da prática. “Era discriminatório. O candidato podia ter uma média alta, se soubesse muito de outras disciplinas, isso tinha de ser levado em conta”, afirma Samuel Pinheiro Guimarães.

“Dizem que a qualidade dos alunos do Rio Branco teria caído. Não sei. Inglês e francês são indispensáveis na diplomacia, o português é pouco falado no mundo, há que se reconhecer”, completa o embaixador.

“A grande vítima do critério eliminatório é o povo negro, dado o fosso histórico que nos separa dos brancos, causado por séculos de escravidão e segregação racial”, diz Frei David. Um levantamento da Educafro nos resultados dos três últimos concursos do Itamaraty, incluindo o de 2017, indica que de fato os negros vão sofrer mais.

Em 2017, 40% dos candidatos cotistas tiraram em inglês menos do que a nota mínima, enquanto entre os brancos foram 9%. Em 2016, foram 44% e 9%, respectivamente. Em 2015, 78% e 51%.

Essa decisão do Itamaraty é um “retrocesso” que favorece quem “passam férias na Europa duas a três vezes por ano e tem curso de inglês desde os 6 anos”, diz David. “É a re-elitização” da diplomacia.

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