Políticas antirracistas no Governo Federal em 2023: o que se entrevê em um governo de centro?

FONTEClara Marinho Pereira¹ ², enviado para o Portal Geledés
Arquivo Pessoal

Após seguidas conquistas – como a Lei de Cotas no ensino superior federal, a EC das Domésticas e a Lei de Cotas no Serviço Público –, a ampliação de direitos da população negra tem sido represada nos últimos anos. A pandemia terminou por evidenciar problemas que já vinham se agravando: desemprego e fome; cobertura errática da assistência social, mortes desproporcionais sancionadas pelo sistema público de saúde e desarticulação da educação pública; violência policial nas periferias e vulnerabilização de territórios quilombolas; ampliação da população em situação de rua e publicização de mais homicídios e agressões em espaços públicos motivados pela cor da pele. 

Por outro lado, na esteira do assassinato de George Floyd e da organização da Coalizão Negra por Direitos, mais frações da sociedade brasileira têm se engajado em ações antirracistas, vinculando o enfrentamento ao racismo à defesa da democracia. Com a proximidade das eleições para a Presidência da República, a pergunta que se coloca é: o quanto esse novo sentido sobre a questão racial brasileira poderá influenciar as políticas públicas nos próximos quatro anos? No presente texto, busca-se levantar algumas hipóteses sobre o assunto, assumindo a premissa de que a Presidência seja ocupada por uma coalizão de centro – porque se a atual continuar, jogue esse texto fora.

Contexto

A política pública de igualdade racial sob a gestão Bolsonaro assume três movimentos deletérios identificados pelo IPEA: (i) redução das capacidades institucionais (encolhimento de orçamento, pessoal, políticas e programas; esvaziamento de conselhos; inexecução de conferências; omissão de informações antes públicas, etc.); (ii) negação do caráter sistêmico do racismo e afirmação da democracia racial; (iii) desmantelamento via negligência, em que os tomadores de decisão esvaziam o sentido da política abdicando de processos decisórios assertivos, ao invés bancar o desmonte público (IPEA, 2021: p. 356-357). Tais aspectos se relacionam com as renovações conservadoras da interpretação da questão racial no país – que, ressalte-se, não se restringe ao imaginário da coalizão no poder.

As renovações conservadoras sobre a interpretação da questão racial

Como reação à ampliação dos protestos antirracistas nas ruas e nas redes, mais à intensa produção intelectual na área, é possível identificar no espaço público hoje pelo menos quatro discursos de renovação sobre o que significa questão racial no Brasil, à direita e à esquerda do espectro político. Abaixo, seguem assertivas estilizadas sobre os discursos mapeados, coletadas de 2021 até o presente, a partir da manifestação de dirigentes e intelectuais que, em seus posicionamentos públicos, sintetizaram tais ideias.

Quadro I. Discursos de renovação conservadora sobre a questão racial no Brasil

DiscursosDescrição
Centro-direitaMilitância mimimiAfirmação da unidade nacional e da meritocracia. Negação do pardo como negro. Afirmação de que negros de esquerda são vitimistas, coitadistas e rancorosos. Afirmação da África como corresponsável pela escravização colonial. Reforço do mito da Princesa Isabel como libertadora de escravizados e de Zumbi como escravagista. Negação das estratégias coletivas de fortalecimento da população negra e da recuperação dos laços históricos com o continente africano. Defesa do fim do Dia da Consciência Negra. Afirmação de que não há motivação racial nos crimes cometidos no país. ONGs antirracistas entendidas como fachada de arrecadação de recursos, numa perspectiva “globalista”. 
Negros também são racistasAfirmação de que existe o racismo de negros contra brancos, da mesma forma que existe o racismo de brancos contra negros. Isso se expressaria, por exemplo, no desejo anunciado publicamente de assassinar brancos, de exigir o fim do Estado de Israel, e nos meios já disponíveis para exercer tal racismo nas instituições. No Brasil, isso apareceria como discurso da esquerda e em militantes como pastores evangélicos que almejam o poder. A ação se basearia no neorracismo identitário, que promoveria a política da afirmação da diferença segundo o ressentimento a estigmatizações passadas, ao invés da busca pela igualdade.
Centro-esquerdaO racismo é estruturalAqui não se trata do conceito de racismo estrutural, mas da sua apropriação banalizada no debate público: como ele explica tudo, reduz-se a complexidade da realidade, dificultando elaboração de respostas que o enderecem adequadamente. Assim, instituições e indivíduos se desresponsabilizam de seu papel na reprodução das discriminações – ações, mecanismos, processos – tendo como álibi o racismo estrutural. O problema continua complexo, grave e urgente, mas a resposta para tudo passa a ser incrivelmente simples, sem transformações de monta, esvaziando o combate ao racismo. Ao mesmo tempo, mantém-se o pacto narcísico da branquitude e restringem-se os comportamentos esperados de pessoas negras. À espera de uma revolução, todos ficam como estão.
Militância identitáriaAtribuição do rótulo de identitarismo à questão racial. Afirmação de que o protesto racial identitário é uma ação importada dos Estados Unidos, onde o racismo se manifesta de forma diferente. Responsabilização de militantes identitários pela carnavalização de pautas essenciais, ascensão do bolsonarismo e do afastamento do povo das lutas, por conta da secundarização da luta de classes e da linguagem distante da realidade. Afirmação da superexploração do trabalho como fundamento da desigualdade.

Fonte: Camargo (2022, 2021); Risério (2022); Vida (2021a, 2021b); Cantalice (2022).

A despeito das diferenças no espectro político, o que esses discursos têm em comum é a desqualificação da centralidade da situação da população negra na desigualdade brasileira. Ao classificarem a questão racial como uma pauta política menos importante, revelam uma característica singular do racismo brasileiro, apontada por gerações de intelectuais negros: sua negação.

Por outro lado…

… brotam novidades no espaço público que reforçam que o alcance da equidade na sociedade brasileira depende do enfrentamento da questão racial, tendo pessoas negras como protagonistas dos processos de mudança. Por exemplo, a Coalizão Negra por Direitos, frente que reúne dezenas de organizações de movimentos negros de todo o país, acaba de completar três anos enfatizando que é impossível ao país prosseguir desconsiderando a garantia de direitos da maioria de seus cidadãos, ao mesmo tempo em que intensifica suas ações diretas – a exemplo da campanha nacional de arrecadação de recursos e alimentos para o enfrentamento da fome. Simultaneamente, tem se acentuado a busca por espaço político de mulheres negras pela via eleitoral. Organizações como Mulheres Negras Decidem, Instituto Marielle Franco, A Tenda das Candidatas e a própria Articulação de Mulheres Negras (AMNB) têm atuado na formulação de agendas políticas com e para mulheres negras, fortalecendo candidaturas e a defesa de mandatos, além de disputar as narrativas sobre o status e os rumos da democracia brasileira. 

No campo empresarial, a agenda ESG (ambiental, social e governança, em tradução livre) – que pode ser definida como um conjunto de boas práticas voltada para esses temas – têm incorporado algumas medidas de equidade em favor da população negra, como ações afirmativas em processos seletivos, criação de grupos de afinidade, realização de ações educativas antidiscriminatórias, formação de lideranças etc. As medidas têm contribuído para criar um ambiente público mais favorável à pauta racial, mas isso ainda se restringe a grandes empresas – multinacionais, em especial –, têm pouco impacto nas cadeias de subcontratação, e não transcorrem sem resistências, de modo que sua contribuição para transformações mais amplas no mercado de trabalho e no desenvolvimento socioeconômico da população negra ainda estão por se fazer conhecidas.

Nesse espaço também têm se avolumado ações destinadas a ampliar a presença de pessoas negras como proprietários, executivos e profissionais qualificados – além de outras minorias políticas –, criando um ecossistema favorável aos negócios segundo a premissa de que a diversidade é lucrativa. É o que se vê no Movimento Black Money ou em iniciativas como a Black Rock Startups e a RM Consulting, por exemplo.

Finalmente, também há que se sublinhar o papel relevante da Educafro neste campo, impetrando ações judiciais de danos coletivos contra empresas para que as políticas de diversidade e equidade, com ênfase na população negra, se concretizem.

Quais as possibilidades, portanto?

Dadas as ações afirmativas no processo eleitoral, há que se considerar a ampliação da presença negra nos cargos eletivos segundo três registros: (i) aquele de base neopentecostal, com recepção seletiva das demandas da população negra já nos exercícios dos mandatos, (posta certa visão de inconveniência sobre a discussão da questão racial no país); (ii) aquele explicitamente antirracista; e (iii) aquele baseado no escárnio às demandas e conquistas históricas dos movimentos negros organizados. 

Nesse cenário, é preciso evitar a descaracterização de demandas explícitas por reparação em agendas de combate à pobreza e à desigualdade ou mesmo seu apagamento, uma vez que se orientam por princípios diferentes (ainda que se entrelacem). Uma agenda diz respeito ao reconhecimento da colonização, do tráfico negreiro e da escravização, assim como suas consequências na contemporaneidade, mais a garantia da cidadania negra segundo aperfeiçoamento dos mecanismos de justiça; outra diz respeito à redistribuição da renda e da riqueza. 

Assim, será necessário consolidar uma frente política antirracista, formada por negros e brancos, movida por consensos práticos no Congresso e no Poder Executivo, apoiada por iniciativas da sociedade civil, para que resultados expressivos sejam alcançados no menor prazo possível. Por exemplo: democratizar o processo de tomada de decisão, garantindo a renovação aperfeiçoada das cotas no serviço público federal, junto à nomeação proporcional de negros e mulheres nos cargos comissionados em todas as áreas de políticas públicas – e não apenas nas políticas sociais. Dito de outra forma: sem enumerar, pactuar e executar medidas de transformação onde for possível, especialmente em áreas onde não são necessárias medidas legislativas abrangentes, a luta contra o autoritarismo crescente na sociedade brasileira e o conserto do desmonte dos últimos anos podem eclipsar a visão de que raça e gênero são fundamentos da desigualdade no país, reiterando-as apenas como recortes de política pública, entre outros.

Em segundo lugar, há que se considerar o arrefecimento do discurso antirracista no período pós-eleitoral (antes, até) sob a leitura de que torna a governabilidade instável. Por exemplo: o agronegócio é o único setor da economia brasileira que cresce em produtividade, fato que se reverbera no aumento de sua bancada no Congresso. De outro lado, povos e comunidades tradicionais, meeiros e posseiros em regiões de fronteira agrícola (e mineral) têm sido expulsos, ameaçados e mortos em nome de proprietários de terra. Ora, sem titulação e assistência técnica não será possível garantir uma vida com dignidade a essas populações. De outro lado, que governabilidade é possível sem apoio do agro? Nessa disjuntiva, entrevê-se a hipótese de que a pauta quilombola e de reforma agrária só avance em regiões de baixa produtividade, carentes de serviços públicos. Onde existir conflito aberto, com suporte de movimentos negros, a resolução do problema poderá ser adiada, escamoteada e descaracterizada, em favor de latifundiários, inclusive com suporte do Poder Judiciário. Extrapolando para outros registros: áreas sensíveis para os movimentos negros como segurança pública e direitos sexuais e reprodutivos, em razão das bancadas da bala e evangélica, podem padecer do mesmo problema. Nesse sentido, será importantíssimo nomear explicitamente o que é inegociável na arena política, para que as pautas dos movimentos negros não virem moedas de troca nas primeiras dificuldades.

Finalmente, agendas e compromissos internacionais relevantes – como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o Orçamento Sensível à Gênero – podem servir de atalhos para a inscrição de metas por raça e gênero nas políticas públicas universais, respaldadas pelo sistema de planejamento e orçamento federal, dando sentido prático ao conceito de interseccionalidade – afinal, a fórmula Secretaria Especial ou Ministério-Conselho-Programa-Fundo com recursos voluntários já se mostrou insuficiente para dar conta de pautas transversais; imagine agora com o cobertor curto. Essa possibilidade só existe porque há certo amadurecimento da burocracia profissional quanto à importância das temáticas racial e de gênero nas políticas públicas, qual se respalda pelos protestos; por evidências científicas que qualificam a desigualdade brasileira; e pela manutenção, ainda que atomizada, de iniciativas dedicadas à equidade de gênero e raça no serviço público e nas empresas – a despeito da retirada de cena das Secretarias de Mulheres e da Igualdade Racial deste tipo de ação. Caso isso se isso se concretize, a resistência não será pouca, afinal, a despeito das intensas mudanças no arcabouço fiscal, ele tem pouco se orientado para atender as necessidades dos mais vulneráveis com precisão.

Em suma,

nas atuais condições, entrevejo tempos difíceis para o avanço da pauta racial. O retrocesso de poucos anos juntou-se a uma dívida histórica acumulada. A despeito do impacto do desaparecimento de Marielle Franco na crença sobre a representação política como uma saída possível para a questão racial, os movimentos negros têm reunido forças para seguir adiante, visando “produzir vida” para a maioria da sociedade brasileira, como Bianca Santana afirma. Cientes das dificuldades e se apropriando dessa pulsão criativa, é que poderemos ir além dos limites que se desenham. Assim, ocupar as ruas com a pauta antirracista e eleger mais mulheres e negros alinhados à defesa de direitos constitucionais e contra o quadro desumano de regressão social vigente é fundamental.

¹ Fellow da Década Afrodescendente das Nações Unidas, Mestra em Desenvolvimento Econômico (Unicamp), Especialista em Planejamento e Orçamento (Enap), Administradora (UFBA).

² Agradeço aos comentários de Cecília Bizerra, Juliana Cézar Nunes, Roberta Eugênio e Ismália Afonso para o aperfeiçoamento do texto, isentando-as de quaisquer responsabilidades sobre ele.

Referências

IPEA. Políticas sociais: acompanhamento e análise nº 28. Brasília: IPEA, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/210826_boletim_bps_28_igualdade_racial.pdf 

Camargo, Sérgio. Twitter: @CamargoDireita. Brasília: 2022, 2021.

Risério, Antônio. Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo. São Paulo: Folha de São Paulo, 15 jan 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/racismo-de-negros-contra-brancos-ganha-forca-com-identitarismo.shtml 

Cantalice, Alberto. Twitter: @albertocantalic. Rio de Janeiro: 3 fev 2022. Disponível em https://twitter.com/albertocantalic/status/1477816796174503940?t=6Ve8oBL7doNcoYCUQ3kvWw&s=19 

Vida, Samuel. Racismo estrutural virou álibi para justificar práticas individuais e institucionais, diz professor. São Paulo: Folha de São Paulo, 4 fev 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/racismo-estrutural-virou-alibi-para-justificar-praticas-individuais-e-institucionais-diz-professor.shtml (2021a)

___________. “Racismo estrutural e hiperconceitualização”. Salvador: Ocupa CEAO, 6 mai 2021. Disponível em: https://youtu.be/DQ0CXsr7JTw (2021b)


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