Entre as dificuldades que devem enfrentar para formação da chamada frente ampla democrática contra o bolsonarismo, os partidos de esquerda devem incluir nas suas preocupações o tema da representatividade.
Não dá para continuar esse debate em um círculo fechado em torno de homens, brancos, heterossexuais, representantes de uma elite econômica e política, que há anos se revezam à frente de entidades partidárias.
Não tem mais como fugir dessa questão, tão bem colocada pelo rapper Mano Brown na entrevista feita com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), em seu podcast Mano a Mano.
A consequência de ignorar essa demanda por representação é o cenário de derrota vislumbrado por Mano Brown ao subir no palco em um ato de apoio ao então candidato à Presidência da República Fernando Haddad (PT) em 2018 no centro do Rio.
“Os nossos não estavam lá”, constatou o artista.
Os nossos aos quais Brown se referia são os que mais sofrem as mazelas do atual governo contra o qual a frente quer se impor como alternativa.
Principais vítimas da pandemia e de Bolsonaro
São os negros e, sobretudo, as mulheres negras, as principais vítimas da pandemia do coronavírus e da crise econômica, acirradas por batalhas ideológicos do bolsonarismo.
São maioria nas filas para obtenção do mirrado auxílio emergencial ou de doações de alimentos para amenizar a fome. Também são os que estão nas relações precarizadas do trabalho informal e na mira das balas que assassinam em massa, incluindo as atiradas de armas institucionais.
Os partidos precisam estar atentos ao fato que, além de não estarem no palco, com voz nos microfones, os “nossos” de Brown estão deixando de se conformar em estarem apenas na plateia, segurando bandeiras.
Em entrevista em março à Folha de S.Paulo, a socióloga Vilma Reis, ativista do movimento de mulheres negras, expressou essa exigência dos movimentos feministas e antirracistas em se verem representados nas direções partidárias e nas chapas eleitorais.
Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda na hora que quer
Vilma Reis, socióloga
Filiada ao PT desde 2007, Vilma disputou a indicação do partido para ser candidata à Prefeitura de Salvador, em um movimento denominado Agora é ela.
Ela foi preterida pelo PT de Salvador, que escolheu uma major da Polícia Militar da Bahia como candidata, sendo mais uma vez derrotado nas urnas (o PT nunca governou Salvador).
Críticas de quem fortalece os partidos de esquerda
Mas o movimento Agora é Ela foi vitorioso em pautar, inclusive nacionalmente, a urgência da divisão do poder de decisão nas entidades partidárias entre mulheres, negros e comunidades LGBTQIA+.
“Não vamos entregar o papel de representação (…) Falharam no papel de nos dirigir e representar nossos interesses”, defendeu Vilma Reis, seguindo a máxima do “nada sobre nós, sem nós”, amplamente difundida nos movimentos das periferias brasileiras.
Parte da esquerda se incomodou com as provocações feitas por Mano Brown, especialmente a constatação óbvia da hegemonia branca entre as lideranças partidárias.
Essa discussão foi abordada pela coluna no artigo “Lula mostra equívoco sobre discurso racial em entrevista a Mano Brown”, que também recebeu muitas manifestações de militantes, alguns insatisfeitos com a cobrança por representatividade.
São críticas justas de quem vem construindo e fortalecendo tanto a luta contra o racismo no Brasil, como os partidos de esquerda da nossa democracia. Não há aqui oportunistas aventureiros na causa, nem demolidores das lutas sociais democráticas travadas pelo campo progressista.
Esse debate precisa ser feito de forma honesta, com reconhecimento dos espaços conquistados na experiência de governos de esquerda no Brasil, aliado à necessidade de correções e avanços.
É tão certa a consciência de que com os partidos de esquerda as possibilidades de diálogos já foram historicamente criadas, que lideranças dos movimentos negros continuam apostando em filiações no PT, PSOL, PCdoB ou PSB.
Pautas próximas ao cotidiano das periferias
Uma cobrança por representatividade não pode ser motivo para igualar militantes históricos a extremistas de direita em suas campanhas de demolição da esquerda.
Não há simetria possível e nunca houve uma escolha difícil.
Ao contrário, são as pautas dos movimentos negros que mais aproximam os partidos de esquerda das suas distinções históricas, como as preocupações por justiça social e igualdade de direitos, promovidos por políticas públicas de Estado.
Quem empurra a esquerda para a esquerda no Brasil somos nós, a esquerda negra. Porque a pauta do movimento negro sempre foi uma pauta emancipatória, progressista, posicionada nas agendas mais avançadas no Brasil e no mundo.”
Vilma Reis, em entrevista a AzMina publicada no UOL
São os movimentos negros que estão nos cotidianos das favelas e periferias, enfrentando as violações de direitos, seja pelo trabalho digno atacado pelas relações coloniais; pelo acesso à cidade e à moradia; na luta pelas terras das comunidades tradicionais; pela liberdade religiosa contra a perseguição fundamentalista; e contra a pior tragédia brasileira: defendendo a juventude dos riscos de ser eliminada pela pretensa guerra às drogas e ao lado das mães negras que choram seus filhos assassinados pelo racismo.
Não dialogar com esse movimento em condições de igualdade é fugir ao compromisso de alterar de fato as estruturas sociais que ainda impedem o desenvolvimento justo e igualitário do país.