Por que ainda há dificuldade de ver o racismo como produtor de sofrimento?

FONTEPor Cátia Cipriano, André Moreira e Patricia Toni, de Ecoa
Foto: iStock

Por que há tantas dificuldades na relação entre a ciência da psique e as questões raciais? A tese de mestrado “A relação entre Psicologia e Racismo: as heranças da clínica psicológica”, feita por Maiara Benedito, na Universidade de São Paulo, fomenta a busca por respostas para essa pergunta que deveria ser feita com mais frequência.

O estudo aponta que psicólogos não negros podem ter travas para tratar os atravessamentos raciais trazidos por pacientes, mas também destaca que “a formação em psicologia, de forma geral, ainda não dispõe de instrumentos que possibilitem falar de raça, racismo e suas implicações nas práticas profissionais”.

O sofrimento psíquico de quem relata as dores da discriminação racial precisa ser melhor compreendido. As feridas sociais causadas pelo racismo há séculos na sociedade atingem as pessoas negras de diversas formas e todas essas perspectivas devem ser consideradas nas sessões de terapia. Quando ignoradas ou diminuídas, tendem a invisibilizar o problema, quando, na verdade, colocá-lo na centralidade do debate é o melhor caminho para entendê-lo.

A experiência vivida por estudantes de psicologia da Universidade Cruzeiro do Sul, ao realizarem estágio atendendo integrantes da Uneafro Brasil, organização do movimento negro pela educação popular, levanta algumas considerações importantes sobre essa discussão. A atividade proporcionou aos estagiários a oportunidade da escuta de um público diretamente atingido pelo racismo. Isso evidenciou desafios e produziu reflexões sobre pontos urgentes para a psicologia em relação aos cuidados em saúde mental voltados à população negra.

Nesse sentido, relatos colhidos na supervisão do trabalho apontaram o surgimento da percepção de que o sofrimento advindo do racismo não pode simplesmente ser compreendido e equiparado às demais formas de sofrer. É uma ferida específica. O trabalho possibilitou aos envolvidos a dura constatação de que, dependendo do lugar social que ocupam, há um distanciamento em relação à realidade do racismo, com pouca atenção para consequências diretas deste na produção de sofrimento. Algo que fica ainda menosprezado, ou trabalhado de forma superficial durante a formação.

Vale ressaltar que a naturalização do estranhamento de tudo o que não é branco e padrão acontecia até pouco tempo atrás, validado por pessoas que são consideradas especialistas em saúde física e mental. A psicanalista Leona Wolf cita que, nos anos 70, pesquisas de Robert Stoller, grande nome da psiquiatria norte-americana, apontavam pessoas trans como psicóticas, aberrações que não reconheceriam a própria realidade e, por isso, precisariam alterar o próprio corpo para adequá-lo a essa “loucura”. Imaginar que, até hoje, profissionais que beberam dessa fonte podem ter servido ainda mais sofrimento, quando frente a frente a pacientes com essa identidade de gênero, é ter a dimensão de como algumas mudanças são inadiáveis.

Uma leitura mais aguçada da realidade brasileira e refrescos no conhecimento acadêmico são pontos fundamentais para que isso aconteça. Primeiro, porque, para fazer uma incidência significativa na sociedade, é preciso estar ciente de que, se tem algo que atinge 56% de um país, como é o caso de negras e negros no Brasil hoje, de acordo com o IBGE, isso atinge a maioria da população.

Segundo, porque é importante que produções de autoras como Neusa Santos Souza, Cida Bento, Grada Kilomba e Frantz Fanon frequentem a fundamentação teórica de todos os cursos da modalidade, porque é urgente que, quando um jovem negro relatar se sentir perseguido, por exemplo, seja levado em consideração que, a cada 23 minutos morre alguém como ele por aqui.

É necessário, também, ir além no combate ao racismo no ambiente acadêmico. A ausência ou pouco espaço para produção de autoras e autores negros, a pouca presença de docentes e estudantes negros, ou a menor participação dessas pessoas nas discussões em sala de aula refletem um cenário que precisa mudar sua estrutura. Essa virada de chave passa por refletir sobre o papel da psicologia, tanto na busca por compreensão, como na ampliação de outras possibilidades de cuidado. Passa também por, inequivocamente, considerar elementos como fé, ancestralidade e espiritualidade, aspectos identitários fundamentais na produção de espaços de acolhimento e ações terapêuticas.

O apagamento do legado dos povos africanos, indígenas e asiáticos nos estudos do desenvolvimento humano não invalidam que esses saberes não brancos sejam importantes e relevantes como quaisquer saberes. Há um projeto de dizimar a herança cultural e histórica do povo negro e a repetida perseguição que os povos de terreiros sofrem, para citar um exemplo (o número de denúncias de racismo religioso aumentou 141% em 2021, segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos), pode gerar medo e negação daqueles que fazem parte dessas crenças, ao invés da tão necessária reafirmação.

É preciso que a comunidade científica e representantes presentes nas esferas de poder da saúde e da educação se responsabilizem por essa virada. Abrir espaço para que o conhecimento produzido pelas mãos e mentes de quem vive as consequências das opressões de raça e gênero é permitir que se possa entregar à sociedade um caminho, ainda longo, mas mais firme para a saúde mental.

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