Por que ainda precisamos falar sobre cotas

"Acessar a Universidade quebra o ciclo da pobreza. E, há pouco mais de uma década, pensar em ter um diploma universitário nas mãos era quase como pensar em ir para a Lua"

FONTEPor Letícia Vidica, da CNN
(Foto: RyanJLane/Getty Images)

“…e se tornou o (a) primeiro/primeira da sua família a entrar na Universidade, a ter um diploma universitário”.

Você já deve ter lido ou ouvido essa frase por aí algumas vezes. E, caso entrar na faculdade tenha sido um processo natural, hereditário e ancestral da sua família, talvez ela não faça tanto sentido assim para você. Mas para muita gente deste país, isso muda toda uma trajetória.

Acessar a Universidade quebra o ciclo da pobreza. E, há pouco mais de uma década, pensar em ter um diploma universitário nas mãos era quase como pensar em ir para a Lua – um sonho distante e quase impossível para muita gente preta, parda, periférica, pobre, quilombola, indígena e estudantes de escola pública

…eis que então surgem as cotas e isso muda tudo. Elas se tornaram a chave para que essas pessoas acessem os bancos da universidade, consigam ter um diploma na mão e a possibilidade de sonhar com um futuro diferente daquele que a sociedade já tinha traçado para elas.

Hoje, estudantes pretos e pardos são mais de 50% dos matriculados nas instituições federais.

Nem sempre foi assim, já que, durante muito tempo, as heranças do Brasil escravocrata não permitiam que pessoas pretas tivessem esse direito que sempre foi apenas um privilégio de pessoas brancas, com maior poder aquisitivo e pertencentes das classes sociais mais altas desse país.

Depois de mais de três séculos de escravidão no Brasil, a primeira Constituição de 1824, por exemplo, determinava que “a instrução primária é gratuita para todos os cidadãos”.

O xis da questão é que escravos não eram considerados cidadãos. Em 1837, uma lei também dizia com todas as letras que escola não era lugar de negros: “São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.

E, falando de lei, a primeira legislação brasileira que previa cotas não foi para os negros. A chamada Lei do Boi, de 1968, previa vagas nas escolas técnicas e universidades para filhos de donos de terras, de fazendeiros!

Na teoria, é lindo dizer que a educação é a base de tudo. Concordo que ela seja. Mas a educação também é a base de muitas desigualdades

Tente você estudar a vida toda numa escola com ensino ruim e defasado, ou ter que andar quilômetros para acessar a escola ou ter a violência e a criminalidade presentes no seu ambiente escolar. Ou não ter dinheiro suficiente para chegar até escola ou para se alimentar bem dentro de casa. Ou ter que abdicar dos estudos para ajudar sua família. Entre essas e outras dificuldades, como concorrer a uma vaga na universidade em pé de igualdade? E nem vamos pensar ou falar de esforço porque meritocracia é ilusão em terras brasileiras.

Por isso, mesmo que atrasada, as cotas são a maior reparação histórica deste país.

É a tentativa de trazer mais equidade ao ensino superior, aumentar a presença de negros, pobres, indígenas nas universidades. É a tentativa de reduzir o abismo entre escolas públicas e particulares, de assegurar mais igualdade de oportunidades aos negros na vida social, econômica, política e cultural do Brasil. É a tentativa de permitir uma ascensão social aos negros e, de fato, trazer mais representatividade em posições de poder.

Com a política de cotas, o filho da faxineira virou médico. A filha do porteiro virou advogada. A neta da cozinheira estuda Ciências Sociais. A filha da babá sonha em ser engenheira. E o filho do patrão pode em breve trabalhar na empresa administrada pelo neto do seu antigo motorista

Com tudo isso, concordo com o nosso sambista e mestre Candeia de que os negros precisam seguir cantando um samba na Universidade e, aí então, jamais voltarão ao barracão.

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