Por que há mais negros na TV alemã do que na brasileira

A cineasta Sabrina Fidalgo (Foto: Fabian Alvarez / Divulgação)

Sabrina Fidalgo é uma jovem roteirista e cineasta, autora do curta mais premiado fora do Brasil no ano de 2018. “Rainha” conta a história de uma jovem que sonha em ser rainha de bateria de uma escola de samba. Seus pais, Alzira e Ubirajara Fidalgo, fundaram, nos anos 70, o Teatro Profissional do Negro. Como todo negro, sempre desconfiou da tese do amálgama, defendida por intelectuais brancos  no Brasil. A que diz  que somos para o mundo um exemplo de convívio entre raças. De quem vê de cima da pirâmide, pode ser. Este Quadro-negro serve para equalizar narrativas, mostrar  o ponto de vista de que quem carrega nas costas os que estão no topo dessa pirâmide. 

Por Dodô Azevedo, da Folha de S.Paulo 

A cineasta Sabrina Fidalgo (Foto: Fabian Alvarez / Divulgação/Folha )

Por que há mais negros na TV alemã do que na brasileira

Por Sabrina Fidalgo, cineasta.

No dia 20 de outubro do ano 2000, embarquei sozinha num avião rumo a Munique, Alemanha, naquela que seria uma das maiores aventuras da minha vida. Contava, então, 20 anos e era uma jovem menina negra, nascida e criada na zona sul do Rio de Janeiro, cheia de sonhos e fantasias na cabeça. Era a minha primeira vez na Alemanha e a primeira na Europa. Todos os meus amigos, conhecidos, familiares e afins me alertavam, preocupadíssimos, sobre a suposta “xenofobia” alemã.

Era praticamente uma unanimidade entre os meus que a Alemanha era um país “racista” e cheio de “racistas”. A dissonância se dava no fato de que tal afirmação vinha de pessoas que, até então, sequer haviam tido uma única experiência real no país da Weißwürste e muito menos colocado seus pés lá. Ainda assim, franziam o cenho, balançavam a cabeça, reviravam os olhinhos e contorciam a boca afirmando com toda a veemência do mundo que aquele sim era um dos países mais racistas do mundo.

Naquela época, a intelligenza tropical ainda acreditava que o Brasil era a “maior democracia racial da face da Terra”. Ninguém titubearia em fazer tal afirmação outrora. Mas é claro que eu já sabia “um pouco” que não era bem assim… mas é a Alemanha? Ah, a Alemanha, sim, essa era racista! “Sabrina é louca de ir para um país desses!”, esbravejavam alguns.

Pois bem, ao chegar no tal “um dos lugares mais perigosos do mundo para ser uma jovem estrangeira e negra”, começei a perceber “coisas bem estranhas”… Para começar, eu ligava a TV e só via preto. Que susto! Como assim tantos pretos numa TV? Nunca vi isso! E na TV alemã? Não é possível, afinal de contas, eu estava no maior país “racista” e com o maior número de “racistas” segundo fontes fidedignas da minha terra natal. Pânico! Desespero! Não era possível.

Não entendia quando, por exemplo, ligava a TV no horário matutino e dava de cara com uma mulher negra muito dona de si comandando um programa diário que era a maior audiência do canal germânico mais popular. O nome dela é Arabella Kiesbauer e o tal programa levava seu primeiro nome. Ela era uma mistura de Hebe com Marcia Goldschmidt, que recebia celebridades e pessoas comuns que choramingavam seus dramas de primeiro mundo ao vivo.

Eu zapeava para outros canais e lá estava Daisy Dee, uma holandesa originaria da ilha de Curaçao, Caribe, que praticamente monopolizava o canal alemão VIVA (assim mesmo, em maiúsculas), concorrente da MTV. Daisy era VJ e comandava, pelo menos, uns cinco programas naquele canal, além de cantar e estampar as capas de todos os CDs com as trilhas sonoras sazonais de cada programa que ela apresentava, cujos comerciais inundavam não somente o próprio canal VIVA como outros da extensa grade de canais de TV aberta e fechada. Ah, sim! Daisy é uma negra retinta. E falava fluente alemão, mesmo sendo “holandesa”.  Zap para a MTV. De dez VJs, sete eram afrodescendentes.

Eu andava pelas ruas e via outdoors imensos com pessoas negras protagonizando campanhas. Nos quiosques onde se vendiam jornais e revistas era enorme a diversidade das capas de revistas que pareciam idolatrar e endeusar Naomi Campbell, Destiny’s Child e J.lo.

Eu procurava, procurava e, realmente, não conseguia encontrar o tal “racismo” da Alemanha sobre o qual fui tão veementemente alertada antes de sair do Brasil. Óbvio que, sete anos mais tarde, encontrei-o, pois, quem procura, acha. Afinal, não existe uma única nação nesse mundo que esteja totalmente imune deste mal.

Fato é que esse episódio me fez (re)pensar esse tal “ranking mundial do racismo”. Afinal, eu venho de uma país que é considerado “o mais miscigenado” do mundo, certo? Não. Errado, erradíssimo. O Brasil é o país mais racista do mundo e muito, muito pior do que a Alemanha do início dos anos 2000 e a de agora.

Estamos no segundo semestre de 2019 e vemos, pela primeira vez na história (!!!), uma mulher negra retinta se tornar a âncora do principal telejornal vespertino da televisão brasileira. Em menos de um mês no ar, Maju Coutinho, teve seu nome divulgado na imprensa em dezenas de matérias de cunho negativo publicadas em grandes veículos de comunicação, ora dando nota de que a emissora em questão para a qual trabalha estaria “apreensiva com o seu penteado afro” ora listando a quantidade de erros que a mesma cometera desde que começou sua nova função no famoso telejornal. “Nervosismo de Maju Coutinho no Jornal Hoje acende alerta na Globo” brada a manchete da matéria publicada em 10/10/2019 no canal “Noticias da TV” do portal UOL. O texto se dá o trabalho de, entre outras coisas, elencar, um a um, cada erro cometido pela jornalista. Dentre as “criticas” está o fato da âncora ter “gesticulado” demais. Pausa.

Zap para a GloboNews, o canal de notícias da Globosat. Vejo várias âncoras gesticulando e cometendo erros. Gaguejos, erros de leitura de teleprompter e afins. Âncoras com muito mais tempo de casa e experiência do que Maju Coutinho na bancada do “Jornal Hoje”. Nunca vi uma matéria sequer viralizar por conta de tais erros desses profissionais. Existe um abismo invisível (ou nem tão invisível assim) que os separam da “novata” Maju; eles são todos brancos brasileiros.

O racismo estrutural é nocivo de forma tal que, quando se “permite” a uma mulher negra retinta como Maju furar o bloqueio do “pseudo-eugenismo” brasileiro em plena segunda década do século 21, isso se dá por meio de uma alta régua de exigência que beira a desumanidade. Não basta Maju ser uma ótima profissional, competente, linda e carismática. Ela precisa ser sobre-humana. Sobre-humanos não existem. Logo, o altíssimo e irreal padrão de excelência exigido de pessoas negras acaba minando por terra qualquer possibilidade de existência dessas mesmas pessoas em lugares de poder.

E é sobre isso que se trata o racismo; da total exclusão, negação, aniquilação, silenciamento e apagamento de pessoas não-brancas de qualquer ambiente de poder, de modo que, as mesmas, continuem reproduzindo o comportamento de subalternidade, submissão e inferioridade social que à elas foi destinado no projeto colonial de nação desde o início dos tempos da primeira invasão lusitana em território brasileiro há mais de cinco séculos atrás.

Enquanto o mundo inteiro acelera a passos firmes rumo a aclamada diversidade e inclusão, mesmo que tal fenômeno social ocorra num momento de contrafluxo para um possível apogeu de uma onda de ultra-direita global, o Brasil, longe disso, caminha a passos de tartaruga, ficando, como sempre na dianteira do atraso. Uma maquiagem aqui, outra maquiagem ali e, numa rápida piscadela, temos a impressão de que, de fato, as coisas estão avançando por aqui. Ledo engano. Que um olhar um pouco mais apurado logo identifica.

No Brasil, há muito o que olhar, apurar e identificar.

Não é mais tempo de piscadelas.

Sabrina Fidalgo, 40, é cineasta, roteirista, atriz e produtora dos filmes “Rainha” (2016) e “Alfazema” (2019).

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