Na semana passada, publiquei um vídeo no INFOTEATRO (@infoteatro_) sobre o álbum AmarElo, de Emicida, e a respeito do documentário AmarElo – É Tudo Para Ontem, lançado em 2020 pela Netflix, em parceria com o Laboratório Fantasma. O documentário provocou em mim profunda reflexão e, desde então, venho reformulando meus conceitos. A partir dessas obras artísticas pude rever muitas questões relacionadas ao racismo, à história do samba e do próprio rap, e sobre a necessidade de pensar na função da arte para a transformação evolutiva da nossa sociedade. Não deixe de assistir, pois ainda está disponível.
Além dessas questões, o documentário provocou em mim outro questionamento: onde estão os negros no teatro brasileiro? Qual é a posição que ocupam no teatro nacional? Emicida foi genial ao abarcar também essa vertente do nosso racismo estrutural, pois, no documentário, ele comenta sobre a história de Abdias do Nascimento – um dos pioneiros em trazer essa discussão para a esfera das artes dramáticas –, e, consequentemente, aborda a criação e desenvolvimento do TEN (Teatro Experimental do Negro), em 1944. Imagine-se o escândalo que esse gesto cultural provou na sociedade da época…
Assim, neste espaço aberto por Vogue Gente para falar de teatro, é preciso lembrar quem foi Abdias do Nascimento e como o TEN foi – e continua a ser – importante para o nosso teatro. E, a partir deste pontapé inicial, instigar todos nós a pesquisar e conhecer cada vez mais sobre os movimentos teatrais negros no país.
De forma bem geral – apenas para iniciarmos a discussão –, precisamos ter em mente que o teatro no Brasil, desde os seus primórdios, foi pautado por ideias e estilo eurocêntricos, em que a cena seguia o padrão europeu ou, mais propriamente, uma estética branca. Assim, as matrizes culturais africanas e indígenas foram quase deixadas de lado, quando seria mais natural que se servissem dessa rica fonte. https://09c4366754c9080e9e732962313349e2.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Mas, em meados dos anos 1940 começaram a surgir iniciativas para a recuperação das raízes culturais brasileiras no teatro nacional. Nesse período, surgem movimentos como o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, de Abdias do Nascimento, o Teatro Folclórico Brasileiro, em 1949, de Haroldo Costa, o Teatro Popular Brasileiro, em 1950, de Solano Trindade, e o Teatro Profissional do Negro, em 1970, de Ubirajara Fidalgo.
Cabe ressaltar que, desde o século XVIII, já existiam outros grupos e manifestações artísticas negras, mas que não tiveram visibilidade e, portanto, foram consumidas pelo tempo. Neste sentido, Abdias retoma uma luta que vinha desde os primeiros escravizados que chegaram ao Brasil.
Tratando mais especificamente do TEN, o movimento foi fundado no Rio de Janeiro, por Abdias – ator, artista plástico, poeta, escritor, dramaturgo, professor universitário e político –, tendo como proposta a valorização social do negro a partir da arte.
A inspiração para a sua criação surgiu de indagações sobre o ínfimo número de atrizes e atores negros no teatro, assim como sendo incipiente a abordagem de temas ligados à história negra nos textos criados e encenados, de autoria nativa. Pelo contrário, até os nossos dias, os negros ainda ocupam, na maior parte das vezes, papéis secundários, subalternos, em reforço a esse estereótipo, digamos, branqueado.
Assim, o TEN foi um dos precursores em promover o protagonismo negro no nosso teatro. Foi a partir dele que surgiram artistas importantes como a grande Ruth de Souza (1921–2019). A atriz entrou para o TEN em 1945, iniciando sua trajetória na arte de representar, logo depois atuando na televisão também, o que garantiu que muitos pudessem se mirar no seu exemplo. Foi a primeira atriz brasileira a ser indicada a um prêmio internacional de cinema, na categoria de Melhor Atriz. A indicação veio de sua interpretação em Sinhá Moça, no Festival de Veneza, em 1954.
Voltando à história do TEN, em 1961, as dificuldades financeiras culminaram no fechamento de suas portas. No entanto, essa história nunca terminou completamente. Desde então, iniciou-se um grande percurso para a inserção dos negros no teatro brasileiro e nas artes dramáticas de forma geral. O questionamento sobre a ausência do negro no teatro do Brasil – país miscigenado, de maioria negra – ainda hoje deve ser prioridade para o fortalecimento de nossa cultura e sociedade. Como diz Emicida no documentário: “Abdias usou a arte para engrandecer nossa cultura, para além do mero entretenimento, mas também como uma ferramenta política muito potente.”
Quem sabe o pouco público de teatro no Brasil não se deva à falta de representação do povo, que por ser na sua maioria negro, não se enxerga nessa forma de arte. Ou, por outra, a desigualdade social, originada em grande parte no racismo, afasta a nossa gente dos espetáculos teatrais.
Portanto, não tenho a pretensão de encerrar o assunto, antes, muito pelo contrário. Essa importante discussão deve permear a nossa visão sobre a arte teatral e, certamente, ainda há muito por fazer. Cabe a nós seguir questionando: por que o teatro brasileiro ainda é predominantemente branco? É nosso dever falar sobre isso.
A seguir, algumas dicas para quem queira saber mais a esse respeito. No Instagram há perfis de alguns dos principais grupos negros de teatro contemporâneo: Capulanas Cia de Arte Negra, Cia Os Crespos, Grupo Clariô de Teatro.
A hashtag #ocupaçãoabdiasdonascimento também traz um material incrível sobre esse universo. Ainda, para aprimorarmos o conhecimento, sugiro as obras: O negro e o teatro brasileiro, de Miriam Garcia Mendes (Editora Hucitec); Teatros negros – Estéticas na cena teatral brasileira, de Cristiane Sobral (Editora Mi Pariô Revolução, v. 1, Coleção Quadro Negro); e A personagem negra no teatro brasileiro, também de Miriam Garcia Mendes (Editora Ática).
Existe, também, muito material no YouTube sobre Abdias do Nascimento e sobre o TEN. E, por último, ainda sugiro que sigam Emicida nas redes sociais, entre os maiores artistas do nosso tempo.