Por que precisamos de mais mulheres negras no debate de clima no Brasil?

Arquivo Pessoal

Recentemente, estive no novo escritório do Geledés e tive uma ótima conversa com a Maria Sylvia de Oliveira, Coordenadora de Promoção de Igualdade de Gênero e Raça, da importância de falarmos cada vez mais com mulheres negras sobre os desafios e oportunidades da agenda climática buscando novas soluções nos saberes ancestrais.

Visita de Marina Marçal em Geledés Instituto da Mulher Negra/ Arquivo Pessoal

Estamos vivendo um momento essencial contra a crise climática, em que precisamos garantir que os esforços empregados sejam compatíveis com o senso de urgência que essa década, tão crucial, nos impõe, para que não atinjamos o chamado “ponto de não retorno” em que qualquer esforço se tornaria insuficiente. É por isso que temos ouvido cada vez mais dos movimentos jovens que precisamos de mais ação e menos discurso. Não a toa que a Conferência do Clima que se aproxima, a COP27, tem sido chamada de a “COP da implementação”.

A conferência se realiza este ano na cidade de Sharm el Sheik, no Egito. Essa COP além de exigir um maior senso de ações práticas, também nos dá a oportunidade de refletir ainda mais sobre o que podemos fazer para reduzir não só a emissão de gases de efeito estufa de forma mais ambiciosa no mundo, mas reduzir também as desigualdades existentes.
A realização no continente africano é simbólica para que possamos compreender a dimensão dos impactos do colonialismo, do sequestro e escravização de pessoas negras vindas de África e a situação de vulnerabilidade em que está a maior parte da população negra por toda a Diáspora Africana, incluindo o Brasil.


São essas pessoas que estão subjulgadas às piores oportunidades de trabalho digno, menores índices de acesso à educação e saúde, mas também empurradas para viverem em locais de degradação ambiental. Vivenciam mais o ônus do que o bônus do “desenvolvimento” ocasionando o chamado racismo ambiental, em total desrespeito ao direito legal de viver em um meio ambiente equilibrado e que sofrem, assim, o maior efeito das mudanças climáticas exatamente por conta desses problemas estruturais e históricos pré-existentes não enfrentados.


Pensando nessa perspectiva, é possível afirmar que não há como obtermos um avanço significativo para a crise ecológica global sem falar em medidas específicas a serem tomadas para lidar com as sequelas do racismo estrutural, em particular, os legados raciais históricos e contemporâneos do colonialismo e da escravidão.


No Brasil, o perfil das famílias de baixa renda é majoritariamente composto por mulheres negras, que ocupam o cargo de chefes de família e possuem dois ou mais filhos. Com frequência, estas famílias residem em áreas consideradas de risco e com baixo índice de saneamento básico.


No entanto, são essas mesmas mulheres negras que estão por gerações, construindo soluções locais ancestrais para lidar com os desafios que enfrentam diariamente há séculos e que só vêm se acentuando com o aumento da temperatura global.

Muito já se reconhece da contribuição das “parentas”, as mulheres indígenas, mas é necessário que não invisibilizemos o cuidado secular das mulheres negras na preservação do meio ambiente e a colaboração direta delas para que o planeta não continue aquecendo destacando esse papel seja na Diáspora Africana, seja na América Latina ou seria Améfrica Ladina como nos provoca Lélia Gonzalez.


Por isso, a participação das mulheres negras precisa ser vista como fundamental para o avanço do debate climático no Brasil e no mundo. Elas estão na linha de frente na proteção de suas casas e comunidades, contendo os desastres ambientais mais corriqueiros, como enchentes, longos períodos de seca, queimadas e deslizamentos de terra.


Outro ponto que vale ressaltar trata do fato de que as mulheres são as maiores responsáveis pela produção de alimentos no mundo, no entanto, as menores detentoras de terras como mostra relatório da ONU Mulheres de 2021. No Brasil isso não é diferente, sendo as mulheres negras a maioria no âmbito rural, de acordo com dados da última Pnad.
São as mulheres que também apresentam maior preocupação com as questões ambientais, inclusive na hora de exercerem o voto. Porém, são uma ínfima parcela dentro dos núcleos de participação nas conferências climáticas, como apontou recentemente o Alma Preta, menor ainda no acompanhamento de negociações climáticas e participação nos espaços de tomada de decisões ligadas à construção de políticas climáticas. O que é algo chocante a ser analisado em um país em que mais de 56% da população se identifica como negra e a maioria do país é composto por mulheres.

Se o processo de escuta das mulheres negras não for oportunizado em uma COP que privilegia as trocas com o Sul Global, me pergunto, parafraseando novamente Lélia Gonzalez quando é que vão deixar o “subalterno” falar e quando vão ouvir as mulheres negras como potência, como multiplicadoras de soluções ancestrais, já que pensar nelas como maiores impactadas não tem sido suficiente para aumentar a representatividade no debate climático.


Após 27 COPs é possível que avancemos na busca por soluções climáticas se os espaços formais de debate e tomada de decisão continuarem sendo compostos por uma maioria e, por vezes, quase exclusivo, de homens brancos?


Incluir apenas mulheres brancas nesse debate ou ouvi-las em nome da representação de outros grupos sociais é suficiente para que possamos construir novas ações que lidem com a pluralidade dos desafios climáticos no Brasil?


No último mês estive no encontro do CB27, em que foi relatado um projeto em execução de horta comunitária com plantas medicinais na cidade de Salvador. Sem analisar maiores dados da escala de impacto do projeto, me pergunto se a ideia não se origina exatamente pelos aspectos socioculturais, demograficos e raciais de uma cidade com a história de Salvador.


Grande parte da população se queixa de que os atuais governantes não levam em consideração as especificidades de cada território, desconsiderando assim o conhecimento da população local sobre as diferentes questões climáticas existentes em cada região. Negando o fato de que cada território tem suas próprias particularidades e com isso diferentes políticas públicas e soluções a serem construídas. As demandas que ocorrem nas comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, por exemplo, não necessariamente serão iguais às das grandes periferias e favelas urbanas.


Por essas razões, acredito que a inserção de mulheres negras no debate sobre construção de políticas públicas para lidar com a mudança climática no Brasil deve ser considerada uma demanda urgente e merece ser vista como uma questão além da representatividade, mas de um processo de escuta ativa, sem intermediários, que produza novas soluções.


É preciso que as políticas climáticas dialoguem com as especificidades locais ouvindo quem resiste nos territórios e reconhecendo as interseccionalidades, diante da intensificação da crise climática e dos problemas sociais e raciais que o Brasil necessita reconhecer e enfrentar.

*Marina Marçal, mulher negra, advogada, coordenadora de política climática no Instituto Clima e Sociedade, doutoranda em sociologia e direito pela Universidade Federal Fluminense, com período como pesquisadora visitante em Columbia Law School (Nova York) no programa de meio ambiente e energia.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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