Por que a religiosidade de origem africana volta a fascinar?

A espiritualidade rica em africanidade nos devolve anseios de reconciliação e respeito pelos mortos que continuam vivos

Por Juan Arias Do El País

O teólogo da libertação Leonardo Boff, vítima do dogmatismo do Vaticano, que o condenou ao silêncio, me contou que, quando morava no Rio de Janeiro, costumava ir todas as manhãs ao parque da Tijuca, e fazia sua meditação abraçado a uma árvore para receber dela sua força espiritual. Era fascinado pela religiosidade africana, tão próxima da vida natural.

Foi também ele que, quando aterrissei no Brasil, me explicou que eu deveria me despojar de minha rigidez europeia para entender que um brasileiro pode ir a uma missa católica pela manhã, à tarde a uma sessão espírita e à noite frequentar um terreiro de umbanda.

Tudo isso porque a espiritualidade brasileira foi moldada em grande parte pelas religiões africanas abertas à pluralidade, trazidas pelos quatro milhões de escravos que chegaram a este país para o trabalho forçado.

O Brasil não seria, de fato, o mesmo hoje sem o que recebeu de novo e original da mãe África no campo religioso, cultural, da sensualidade e até mesmo gastronômico.

E, entre suas riquezas espirituais, os africanos propiciaram aos brasileiros o sentido do sincretismo religioso e o interesse por experimentar os diferentes acordes do mistério.

Fiquei impressionado com a declaração feita à minha colega Carla Jiménez por uma mãe de santo alemã, Gabriela Hilgers, segundo a qual “os brasileiros são espiritualmente mais desenvolvidos do que os alemães”. E poderia ter dito mais que os “europeus”

Sem dúvida, o Brasil é menos desenvolvido tecnologicamente do que a Alemanha, mas o que os alemães sentem falta é dessa dimensão espiritual incorporada na natureza, desprovida de dogmas, medos, punições e rigores calvinistas.

A religiosidade africana é o lugar onde os deuses também são carnais, com suas luzes e sombras, que colocam, acima de tudo, o culto à felicidade, ao amor — também à sensualidade — e ao prazer de sofrer e desfrutar juntos da festa.

É a espiritualidade que cria um cenário no qual a vida não é uma “noite mal dormida em uma pousada ruim”, evocada por Cervantes em Dom Quixote, mas que vale a pena apreciar.

Para a religiosidade africana, amalgamada no Brasil com elementos do cristianismo e das crenças indígenas, a vida tem os encantos, belezas e sensações da natureza onde os mortos não foram para sempre, mas continuam vivos, ao nosso lado, protegendo-nos e guiando-nos. Como escreveu o poeta senegalês, Birago Diop:

Aqueles que morreram não estão longe,

estão na sombra espessa.

Os mortos não estão embaixo da terra;

estão na árvore que retumba.

E estão no bosque que geme.

Estão no incêndio que se acalma,

estão na grama que chora,

estão nas rochas que gritam,

estão no bosque, no lar.

Os mortos não estão mortos.

A religiosidade africana se alimenta da observação e contemplação da natureza como uma grande mestra de vida. Está totalmente permeada pelo conceito de “renascimento” e de “ressurreição”.

Portanto, nunca é uma religião estática, de rótulos, imutável, e sim viva e mutante como o vento ou as águas de um rio.

Em nosso mundo ocidental, a força da religiosidade, para se modernizar, foi racionalizada. E, em vez de gerar sentimentos acolhedores, de ajuda e abraço aos outros, dando-lhes um sentido de dignidade não ligado a dinheiro ou ao poder, desperta, não raro, as tentações do rancor, brigas e lágrimas entre irmãos.

Por outro lado, a espiritualidade rica em africanidade nos devolve anseios de reconciliação e respeito pelos mortos que continuam vivos.

Nosso mundo moderno tem profanado a natureza, a qual pode ser destruída sem remorso, depois de tê-la despojado de sua antiga sacralidade.

A religiosidade africana nos revela, ao contrário, que atualmente não existiria o extermínio do meio ambiente se todos respeitassem e se sentissem como uma peça inseparável e indispensável do universo.

Elaborada e enriquecida pelos brasileiros e da qual a umbanda se alimenta, a espiritualidade africana começa a fascinar também fora do Brasil, talvez porque ela cante a vida e o amor e exorcize a morte.

É uma religião de vivos que não renuncia à busca da felicidade, gostem ou não os severos deuses europeus.

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