Por que todos amam Djamila?

Em 2017, ela lançou um livro, apresentou um programa de TV, virou professora de um grupo de atrizes globais e angariou dezenas de milhares de seguidores nas redes sociais. Seu discurso? O combate à violência contra a mulher negra. Ao ler este texto, você entenderá por que não pode passar mais nem um dia sem saber o que pensa e pelo que luta Djamila Ribeiro

no Revista Marie Claire

Reprodução/ Revista Gol

Este foi um ano de mudanças e de cura”, diz a filósofa Djamila Ribeiro, 37 anos, sentada na cadeira de um salão de beleza na Zona Oeste de São Paulo, cidade que a santista adotou definitivamente no início de 2017, enquanto refaz as longas tranças que já se tornaram sua marca registrada. Ela se refere, basicamente, ao fim de um relacionamento de 13 anos, no ano passado, que lhe rendeu uma filha, Thulane, de 12 anos. “Depois de um casamento tão longo, você precisa descobrir quem é sozinha”, completa, sobre a nova fase. “E a vida acontece em paralelo a esse processo.” Em 2017, a vida de Djamila correu em velocidade alucinante. Militante do feminismo negro, tornou-se a principal voz do movimento na televisão, nas universidades e, principalmente, nas redes sociais. Só no Facebook, são 108 mil seguidores. No Instagram, 55 mil.

No mês passado, Djamila lançou o primeiro livro, O Que É Lugar de Fala?, parte da coleção Feminismos Plurais – organizada por ela –, da editora Letramentos. “A ideia é mostrar que o movimento não é único e levar esse debate a pessoas que não estão acostumadas com o tema”, explica. O ano de 2017 foi também aquele em que ela apresentou um programa de televisão, o Entrevista, no Canal Futura; em que deu três cursos na Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo; em que foi finalista do prêmio Trip Transformadores; e em que também se tornou a mentora intelectual (junto com a filósofa Márcia Tiburi) de um grupo de atrizes, diretoras e roteiristas da TV Globo interessadas em estudar as bases do feminismo. “É um debate duro, mas necessário. O Brasil é um dos países que mais matam mulheres. E, quando falamos sobre feminicídio, precisamos desnaturalizar o crime e parar de culpar a vítima”, diz, sobre os temas que aborda em suas aulas quinzenais, na casa da atriz Camila Pitanga, no Rio de Janeiro.

Formada em filosofia e com mestrado na mesma área pela Universidade Federal de São Paulo, Djamila nasceu em Santos, no primeiro dia de agosto de 1980. A escolha do nome, que em swahili, língua falada no leste da África, significa “beleza”, foi feita pelo pai, um estivador ativista do movimento negro e um dos fundadores do Partido Comunista na cidade. Com ele, discutiu o que é ser negro no Brasil ainda na infância, participou de manifestações e frequentou a União Cultural Brasil­­-­União Soviética, onde aprendeu a jogar xadrez. Caçula de quatro irmãos, foi a que mais seguiu os passos do pai, Joaquim José Ribeiro dos Santos. “Os quatro filhos absorveram os ensinamentos, mas eu e minha irmã [a terceira] somos mais militantes que os meninos”, conta. A mãe, a dona de casa Erani, não tem um papel menor na formação da filósofa, ela faz questão de enfatizar. “Foi empregada doméstica. Parou de trabalhar e abriu mão dos sonhos para cuidar dos filhos. Era uma mulher forte, que não aceitava desaforo e sempre me dizia para andar de cabeça erguida. Aprendi muito com ela. Contava que, certa vez, um patrão tentou agarrá-la enquanto cozinhava. Disse que, se ele fizesse algo, jogaria óleo quente nele. Depois, pediu demissão.”

Djamila perdeu pai e mãe no intervalo de um ano. Em 1996, quando tinha 16 anos, dona Erani foi diagnosticada com um câncer no rim. Faleceu em 2001. No ano seguinte, seu Joaquim recebeu a notícia de que tinha mieloma múltiplo, uma espécie de câncer de medula que não tem cura. “Ele ficou seis meses internado no hospital e eu ficava lá todos os dias. Das 7 da manhã às 7 da noite.” Nesse período, conta, estava mergulhada nos estudos do movimento feminista, na Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos. Foi o que a ajudou a enfrentar o luto. “Foi onde descobri que podia pedir ajuda. Nós, negras, somos ensinadas a ser fortes. Quando li uma coletânea organizada pela Jurema Werneck, havia um texto sobre uma mulher que tinha tido muitas perdas. Nele descobri que podia ser frágil, humana. Percebi que não tinha que carregar tudo sozinha e fui fazer terapia.”

Nos anos que se seguiram, Djamila estudou jornalismo até engravidar de Thulane, aos 24 anos, quando abandonou a faculdade para se dedicar à família. Frustrada com a rotina doméstica, quase entrou em depressão. “Fiquei desorientada porque nunca fui a mulher que sonhou em casar e ter filhos. Por mais que amasse ser mãe, não me via fazendo só aquilo.” A vida mudou depois que sonhou com os pais, no dia 5 de dezembro de 2006. “Eles me diziam para cuidar do espírito, porque aparecia uma solução para a minha dor. Quando acordei, senti que precisava dar um rumo à vida.” Foi procurar trabalho e conseguiu um de secretária em uma empresa portuária. Na internet, descobriu que a Unifesp havia montado um curso de filosofia em Guarulhos. Sem contar os planos para ninguém, nem para o marido, inscreveu-se no vestibular. Sob protestos dele e do resto da família, deixou Thulane, então com 3 anos, na escolinha em período integral para fazer a faculdade em outra cidade. “Ia e voltava de Guarulhos para Santos todos os dias.” Cada trecho da viagem de ônibus e metrô durava três horas.

Formou-se em 2012 e, no ano seguinte, matriculou-se no mestrado, focando os estudos nas obras da francesa Simone de Beauvoir e da americana Judith Butler. Nessa época, passou a escrever no Blogueiras Negras, portal que discute assuntos caros às feministas negras na internet. Em 2014, deu uma entrevista a respeito para o jornalista Pedro Bial, que comandava, então, o programa Na Moral, e ganhou visibilidade. “Foi um ponto de virada na minha vida”, diz. Virou colunista do site de uma revista semanal e, finalmente, uma influencer digital. Com uma linguagem clara e acessível, seus textos começaram a viralizar na internet. “O tema é duro e difícil e precisa ser comunicado. Só usa a linguagem como instrumento de poder quem não quer sair da bolha”, explica, sobre sua estratégia de militância que lhe rendeu o apelido de filósofa pop. Foi, ainda, secretária-adjunta de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo.

Com um discurso objetivo e acessível, passou a dar palestras e aulas para explicar por que discorda da ideia de que há meritocracia no sistema educacional brasileiro e defende as cotas nas universidades. “Uma pessoa branca que sempre estudou em escolas boas, comeu bem e tem acesso a idiomas não passa num vestibular como o da USP porque ela é especial, mas porque teve condições para isso. Insistir num discurso meritocrático é escamotear o racismo e o privilégio do grupo branco. Não é uma questão de capacidade, mas de acesso às oportunidades”, diz.

Também é com didatismo que debate o fato de que o feminicídio aumentou entre as mulheres negras (54,2% entre 2003 e 2013), ao passo que diminuiu entre as brancas (queda de 9,8% no mesmo período). “Falta um olhar étnico racial na hora de pensar uma política de combate à violência contra a mulher. As mulheres que combinam opressões ficam em um lugar mais vulnerável. Se a gente não traz os dados sobre isso, não cria políticas públicas para elas.” Mais recentemente, passou a discorrer sobre as reclamações de quem se incomoda com o embate travado pelas minorias nas redes. “É uma reação esperada de quem quer continuar sendo voz única. Quem perde hegemonia diz que somos agressivas, quando na verdade violento é o sistema que nos silencia. É um caminho que não tem volta. As pessoas terão de se acostumar”, diz a filósofa, mostrando que é incansável na luta por um mundo mais justo. Sorte a nossa!

Ela por elas

“É muito importante ter uma filósofa como a Djamila, que é pop, acessível, contemporânea. Ela tem um espaço muito importante neste país para as mulheres, sejam elas negras ou não. Apesar de ser acadêmica, sabe se comunicar de modo esperto e muito generoso. É multiplicadora e entende que pode falar da academia ao popular. Isso é brilhante! Hoje a construção da minha identidade está em cima de mulheres que não li a vida inteira mas que sempre estiveram aí, e a Djamila faz parte dessa turma que me inspira. Além disso, ela também indica outras pessoas e difunde ideias.”— Taís Araújo, atriz

“Conheci a Djamila quando tinha acabado de entrar na faculdade, nos grupos de feminismo negro na internet, e ela foi meu grande exemplo de representatividade. Eu era uma das poucas alunas negras da faculdade e me sentia muito mal por isso, achava que estava no lugar errado. A Djamila já estava ocupando esses espaços. Nós, mulheres negras, temos muito essa dúvida de saber que vai dar certo. Ela sempre me passou segurança. É um grande ícone e nos mostra que, sim, a gente pode. Conhecê-la pessoalmente, em 2014, foi a realização de um sonho.”— Stephanie Ribeiro, arquiteta

“Ser aluna da Djamila mudou minha vida. Por mais que já abominasse o racismo, nunca havia refletido profundamente sobre as questões: ‘Onde estaria se fosse negra?’, ‘Teria eu, com a mesma capacidade mas com pele mais escura, conquistado o que fiz na vida?’. Djamila bota as mulheres brancas na luta, mas, com a elegância de uma bailarina, deixa claro o nosso lugar de fala, que é o ponto de vista do privilegiado. Uma posição que inicialmente me causou um desconforto imenso, mas que depois foi o pedal para uma expansão inédita na minha consciência e o afeto com a questão negra. Só tenho a agradecer a essa mulher maravilhosa.”— Tainá Müller, atriz

“Djamila é realeza. Admiro sua coragem e sabedoria. Tenho tido a sorte de acompanhar sua caminhada agora mais de perto. Com ela me aprofundei sobre o feminismo negro. Sobre o papel que nós, mulheres negras e privilegiadas, devemos ter em nossa sociedade, desconstruindo estigmas, mas acima de tudo dando a mão para quem precisa.”— Camila Pitanga, atriz

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