Profissionais de saúde sempre emprestaram suas vozes para a defesa de temas controversos

imagem: Freepik

Vozes renovadas

no O Globo

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Na virada do ano, médicos americanos e a poderosa National Rifle Association (NRA, associação que defende o livre acesso às armas) trocaram agressivas mensagens. O tuíte da NRA — “alguém deve dizer aos arrogantes médicos antiarmas para permanecerem nas suas ‘pistas’”— foi respondido com histórias e fotos de uniformes e centros cirúrgicos ensanguentados. “Minha ‘pista’ é uma gestante ferida em um momento de raiva de seu parceiro. Ela sobreviveu porque o bebê bloqueou a bala. Você já teve que realizar um parto de um bebê destruído?” (Stephanie Bonne). “Você nunca teve que limpar o sangue do seu sapato antes de contar à mãe de um menino de 17 anos que ela não irá abraçar seu filho novamente. Essa é minha ‘pista’. Venha trabalhar comigo um dia e veja o impacto da violência das armas em nosso país” (Ellie Wallace). A neurocirurgiã Mahua Dey divulgou uma foto de uma bala retirada do cérebro de uma criança de seis meses, com a legenda: “NRA, vocês construíram minha ‘pista’”.

Profissionais de saúde sempre emprestaram suas vozes para a defesa de temas controversos. Recomendações normativas sobre proibição de uso do tabaco, controle do álcool, substituição do leite em pó por amamentação materna, engenharia de trânsito e segurança de carros restringiram interesses econômicos e contribuíram para a redução de morbidade e mortalidade por causas evitáveis em diversos países. Atualmente, um dos mais prementes e polêmicos temas para a saúde pública é a regulamentação de armas de fogo. O debate internacional inclui desde a pertinência da audição de vozes de não especialistas em Justiça criminal sobre mortes por arma de fogo até dúvidas sobre se armas são apenas vetores ou causas da violência. Nossa pista é similar à dos colegas americanos.

Quem já se viu diante da tarefa de dar a notícia da morte por assassinato para familiares das vítimas não esquece. Por mais que se tente ser racional, parte da dor da revolta fica com o mensageiro. O atendimento a Marcus Vinicius da Silva, atingido no Complexo da Maré no trajeto de casa para a escola; Arthur Cosme de Melo, baleado dentro barriga da mãe; e a morte de Milton Expedito do Nascimento (Dinho), jovem negro, radialista, alvejado em São Paulo na véspera do Natal, mobilizaram redes de apoio de profissionais de saúde. Vivemos no Brasil, país campeão mundial das mortes por arma de fogo (cerca de 70% do total de homicídios), que manteve o título, mesmo com a ligeira diminuição da criminalidade, e importantes políticos eleitos são favoráveis à desregulamentação do porte de armas.

Mas não existem porta-vozes uníssonos da população. Médicos e profissionais da área são considerados guardiões da saúde pública. Silêncio e omissão não são valores neutros. Estamos na segunda década do século XXI e atrasados na capacidade de resposta e engajamento pessoal e de entidades profissionais aos desafios contemporâneos da saúde.

É responsabilidade de estudantes e profissionais da área o envolvimento com debates sobre causas e riscos de doenças e mortes. A ampla disponibilidade de informações acelerou a comunicação imediata e as pressões sociais por clareza e coerência. Em 2019 será necessário reavaliar honestamente o comprometimento de médicos e demais profissionais da área e suas entidades com o que aflige, fere, sequela e mata crianças e adultos.

O luxo da indiferença ficará obsoleto. A comunicação digital rápida pressiona por posicionamentos coerentes e claros. Calcular interesses particulares que não levem em conta o mal-estar público ainda atrai. Mesmo assim, os mais destacados profissionais da área já marcam suas atividades pela fusão entre identidade individual e participação social. Vale a pena gastar esforços e tempo com debates sobre o Estatuto do Desarmamento, racismo e desigualdades para renovar vozes que afirmem o direito de dissidência e a importância das pessoas e de suas vidas.

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