Há cerca de cinco meses, Kátia Ramos Moreira Leite, médica patologista, foi procurada por um assessor da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que dividiu com ela a situação alarmante de deficiência no rastreamento de saúde ginecológica das mulheres indígenas na região Norte do país. Mesmo havendo postos de saúde nos bairros e nas aldeias, as coletas de exames precisavam ir para laboratórios afastados das regiões, e muitos resultados nunca voltavam ou demoravam demais.
Na região Norte, a incidência de câncer de colo de útero é a maior do Brasil. Dados do Inca (Instituto Nacional de Câncer) estimam que enquanto nas outras regiões a incidência, em média, é de 17 casos para cada 100 mil mulheres, lá, esse índice é de 24 casos para cada 100 mil mulheres. O atendimento, como apontou o pedido do assessor da Sesai, é majoritariamente centrado nas maiores cidades.
Leite ouviu o pedido do assessor e aceitou, em nome da SBP (Sociedade Brasileira de Patologia), da qual é presidente, ajudá-los a montar um mutirão para análise dessas citologias vaginais. O processo está atualmente sendo realizado, e o material colhido é enviado para a sede da SBP, em São Paulo. Depois, as amostras são divididas para os 11 laboratórios espalhados no Brasil que aceitaram realizar os exames gratuitamente.
“O principal causador da doença é o contágio sexual pelo vírus do HPV. O diagnóstico é essencial. Como desde a lesão percursora até o desenvolvimento do câncer levam vários anos, é possível interromper esse processo. Mas se meninas iniciam atividade sexual sem proteção muito cedo e não fazem exames, aos 20 já podem ter carcinoma estabelecido”, explica a patologista.
O câncer de colo de útero é um dos tumores mais comuns entre as mulheres. A doença ocorre predominantemente em mulheres não brancas e com baixa escolaridade —cerca de 62% dos casos—, expondo a chaga da falta de acesso à informação e aos serviços de saúde em grupos mais vulneráveis da população.
“Além do mal que isso causa individualmente, também sobrecarrega o SUS com necessidade de tratamentos como quimioterapia e radioterapia. Não podemos deixar que isso aconteça”, diz a médica, explicando que a vacina contra o HPV é a maneira mais eficaz de se proteger contra o vírus.
“Se as mulheres conseguem descobrir a lesão, o que já é difícil, precisam ir até a capital, deixar o trabalho… Quando muitas vezes ela é chefe da rede da família. Por isso a importância de levar alternativas até elas, e sem dúvida o rastreio oportuno proporciona que as mulheres em volta daquela família conheçam a questão”, aponta Monique Freire Santana, médica patologista e pesquisadora da Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas.
O objetivo do projeto é beneficiar 10 mil mulheres, número que pode ser excedido se houver uma demanda maior do que o esperado. “Antigamente, a gente não tinha a segurança de fazer um exame preventivo. Demorava até dois anos para sair um resultado. Agora, está chegando em 30 dias e estamos pedindo para que todas as mulheres indígenas façam a coleta”, diz Daniele Silva de Oliveira, indígena da etnia Mura e moradora da comunidade indígena Vista Alegre, em Roraima.
A coleta é feita por agentes de saúde das unidades primárias, e a SBP está criando um material para melhorar o treinamento desses profissionais. “Havia defeitos em muitas das coletas, o que prejudica um pouco da análise”, comenta a patologista.
Junto do Sesai e com a participação de uma ginecologista do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), o objetivo é criar um curso online ensinando as melhores práticas para a coleta.
O patologista Fábio Távora, diretor médico do Laboratório Argos, em Fortaleza, um dos participantes do projeto, avalia que o exame ajuda também a criar uma cultura de cuidados nas comunidades. “Oferecer esse teste gera uma ida ao sistema de saúde, transforma isso em coisa rotineira, e receber os resultados gera mais confiança nesse processo.”
E se o resultado apontar lesões?
Caso lesões sejam encontradas nos exames, o protocolo é prosseguir com biópsia para que o tipo de tumor seja identificado, e se necessário, encaminhar as pacientes para tratamento.
O intuito, explica a presidente da SBP, é contar com a ajuda do HC de São Paulo também para fazer o tratamento, além de levar equipes pequenas e itinerantes até as comunidades para fazer esse atendimento. “A área é enorme e muitas vezes as populações ficam bastante isoladas. Mesmo de barco, às vezes são dias e o custo é grande.”
Além disso, Leite afirma que junto da Sesai, há o planejamento para novas ações na área de saúde. “Uma delas é a doação de equipamentos mais modernos. Outra é a montagem de pequenos laboratórios para fazer pelo menos os exames mais primários nessas unidades de atendimento”, conta.