Projeto mapeia presença feminina na literatura periférica

Organizada num site, pesquisa Margens, da jornalista Jéssica Balbino, reúne informações sobre a produção de mulheres da literatura marginal nacional. Machismo e maternidade estão entre os temas tratados. “É uma literatura bem plural e rica.”

Por Tatiana Merlino Do Ponte

“Quantas mulheres temos na literatura marginal?”, questionou-se a jornalista Jéssica Balbino após uma reunião com sua orientadora de mestrado, quando decidiu que iria pesquisar a participação feminina na literatura periférica, até há poucos anos hegemonizada por homens. “As mulheres sempre estiveram presentes, mas foram apagadas, silenciadas, criticadas com frases como ‘as poesias das mulheres são todas iguais, só falam de machismo’, entre outras coisas”.

O projeto da jornalista, ela também de origem periférica, resultou no Margens,  página na internet que mapeia autoras da literatura marginal no país. “Ele nasce da necessidade de registrar, documentar e amplificar essas vozes, que surgem, principalmente, nos saraus espalhados pelo país e, por vezes, nos espaços digitais. O objetivo é reunir as informações sobre o tema e sobre quem são essas mulheres em um sítio digital. A ideia é trazer áudio, vídeo, texto e performance sobre essa literatura protagonizada pelas mulheres”, explica Jéssica.

De maio de 2014, quando o site foi colocado no ar, até hoje, a pesquisa reuniu informações de 425 mulheres, com dados como localidade, saraus que frequentam e publicações próprias ou das quais participaram.

O aumento da participação feminina no cenário, ocorrida nos últimos cinco anos, foi um dos motivos que estimulou a pesquisadora a fazer o mapeamento. “Saíram 2 volumes de antologias pela Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop, com mais de 100 autoras, saiu a coletânea ‘Pretextos de Mulheres Negras’, com 22 autoras, saiu a ‘Louva Deusas’, a ‘Herdeiras de Aqualtune’, enfim, foram várias publicações organizadas por coletivos femininos, com maior presença das mulheres. O que mostra que estamos tendo mudanças no cenário.”

As autoras tratam de temas como maternidade, relações abusivas, amor, questões políticas, autorrepresentação social. “É uma literatura bem plural. E rica. Mas claro que as mulheres escrevem sob o ponto de vista feminino, que, neste momento, é bem de levante, bem de posicionamento, de empoderamento, então, temos muitos textos sobre a relação com o corpo, com a etnia, com representação e pertencimento.”

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O que é o Margens e qual seu objetivo?

O Margens é uma reportagem 360 graus que está sendo construída gradativamente, sobre as mulheres da literatura marginal/periférica no Brasil. Ele nasce da necessidade de registrar, documentar e amplificar essas vozes, que surgem, principalmente, nos saraus espalhados pelo país e, por vezes, nos espaços digitais. O objetivo é reunir as informações sobre o tema e sobre quem são essas mulheres em um sítio digital. A ideia é trazer áudio, vídeo, texto e performance sobre essa literatura protagonizada pelas mulheres.

Ele abrange também um mapeamento inédito sobre elas. Foi disponibilizado virtualmente um questionário para que as mulheres que se autorreconhecem como poetas e/ou escritoras pudessem responder. Esses dados estão sendo tabulados e alguns já compõem o mapa que pode ser acessado no site. Então, além da reportagem propriamente, tornou-se um registro etnográfico.

Ele faz parte do seu projeto de mestrado. Poderia falar sobre ele?

Sim. Em 2014 eu entrei no mestrado em Divulgação Científica e Cultural na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Eu sou a primeira pessoa da minha família com curso superior, e, agora, no mestrado. Então, foi uma felicidade enorme poder chegar à academia, porque é importante destacar: não sou uma acadêmica falando da periferia ou da literatura marginal. Sou uma periférica e cria da literatura marginal na academia. E, uma vez na Unicamp, eu quis não apenas pesquisar, mas expandir isso, criar uma ponte entre a academia e o público, as pessoas que participam.

E, como jornalista, comunicadora, fiquei pensando no que eu poderia fazer para isso. Aí estava descobrindo esse formato de reportagem 360, que envolve várias linguagens e todas que eu gosto e pensei: ter um site para reportar isso, aos poucos, dar destaque para as produções, noticiar, seria um caminho, e aí, sem recursos, com a cara e a coragem, montei tudo sozinha. Sozinha mesmo. Na raça.

O programa de mestrado que eu faço trabalha muito com essa questão da divulgação científica e cultural e eu fiquei pensando como seria levar isso, de fato, para a prática, para além das publicações acadêmicas. O mapeamento já citado foi o primeiro passo, que veio sendo complementado por outros, como a criação do site para hospedá-lo, alguns vídeos, reportagens e entrevistas.

Paralelo a isso, como ninguém nunca pesquisou a presença feminina na literatura marginal/periférica a fundo antes, ele se tornou inédito, o que despertou a atenção de produtores culturais, editores. Aí surgiu um convite do Sesc Campinas para fazer eventos durante quatro quartas-feiras lá e foi muito importante. Fizemos oficinas, bate-papo e sarau com as vozes da literatura marginal e foi enriquecedor demais, porque foi uma chance maior do que a que eu pensava poder ter. Foi muito rico. Sou muito grata por poder viver isso enquanto pesquiso.

Por que escolheu tratar da literatura periférica?

Eu sempre fui ligada ao hip-hop, desde adolescente. Ao mesmo tempo, conheci também a literatura marginal/periférica e foi quando decidi ser jornalista. Pensei: quero escrever. E aí, fui desenhando toda minha vida. Entrei na faculdade, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre hip-hop e nunca mais parei de pesquisar, mesmo que empiricamente, frequentar saraus, juntar material. Sempre fui apaixonada pelo tema, pelo universo, pela vivência. É muito minha vida. Então, sempre tive a certeza de que queria pesquisar a literatura feita na periferia no mestrado. A ideia não era fazer mestrado. Era fazer mestrado sobre isso.

Por que, ao estudar a literatura periférica, escolheu o recorte de gênero?

As questões de gênero começaram a entrar na minha vida quando comecei a frequentar os encontros do coletivo Hip-Hop Mulher e a Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop. Comecei a observar mais sobre isso, ler mais, e depois que foram publicadas as antologias Perifeminas, organizadas pela Frente, eu vi que havia uma lacuna muito grande na participação das mulheres, mas, inicialmente, meu tema não era esse, era sobre como os escritores da literatura periférica faziam retratos do cotidiano. Porém, na primeira conversa com a minha orientadora, eu comentei sobre o aumento recente de publicações femininas. Ela adorou e me perguntou: por que você não pesquisa isso? E aí selou. Fiquei muito feliz, porque também tinha essa vontade já, mas nunca havia pensado a fundo, e, quando ela deu a ideia, eu pensei: é isso. E era exatamente o que faltava. Foi no momento certo, porque existia essa necessidade.

Lembro que naquele mesmo dia saí da reunião pensando: quantas mulheres temos na literatura marginal? E lembrei de um artigo que li, que trazia um comparativo no número de antologias, então, segui essa metodologia no início, pra contar o quão era diferente a participação das mulheres da dos homens nas antologias lançadas nos saraus. O levantamento que tenho até agora mostra que nos últimos 15 anos a participação feminina é 22% inferior se comparada a dos homens e aí, na dissertação, ouvindo essas mulheres, eu tento entender porquê isso acontece.

Qual é o recorte temporal da pesquisa?

Começo em 2001, com a publicação da revista “Literatura Marginal”, feita pelo Ferréz em conjunto com a Caros Amigos e venho até 2016!

Quais são as especificidades da literatura periférica feminina ao se comparar com a masculina? Quais são os temas mais tratados?

Além da falta de equidade nas antologias, saraus e tudo mais, percebo que em boa parte dos casos as mulheres atuam junto na organização dos saraus, muitas vezes fazendo bem mais que os homens, mas são eles que são os “apresentadores”, os “mestres de cerimônias”. Elas são só as pessoas que atuam pra que isso aconteça. Dobram mesa e cadeira, anotam os nomes de quem vai declamar, penduram a decoração, recepcionam os convidados, cuidam das vendas de livros, enfim, fazem tudo acontecer, mas não aparecem. E isso é bem complexo.

Mas, quanto às especificidades, vejo que as mulheres falam muito sobre os abusos que sofrem, denúncias sobre machismo, sobre maternidade, sobre o universo que vivem, sobre a partilha com outras mulheres, sobre amor, sobre o próprio corpo, mas, também, sobre problemas sociais e política. É uma literatura plural, bem plural. E rica. Mas, claro que as mulheres escrevem sob o ponto de vista feminino, que, neste momento, é bem de levante, bem de posicionamento, de empoderamento, então, temos muitos textos sobre a relação com o corpo, com a etnia, com representação e pertencimento. Fala-se sobre amor, viagens, experiências também.

Como o mapeamento é feito? Quais são as informações que pedem?

O mapeamento foi todo feito online. Deixei o formulário disponível no site (www.margens.com.br), com ele aberto. A ideia era que as mulheres pudessem se automapear, pra estimular esse protagonismo, essa voz própria, deixando livre. Foram feitas perguntas como nome, idade, local em que vivem, etnia, profissão/ocupação, como elas classificam a literatura (marginal/periférica/divergente/outra), se possuem publicações, quais são as publicações, se frequentam saraus e quais são, se possuem blogs, fanpages etc.

 O que você  considera como mulher autora, a que produz, a que publica?

Considerei as mulheres que produzem e que se autointitulam poetas/escritoras.

Quantas mulheres foram mapeadas? 

Foram 425.

Desde quando você pesquisa o tema e quando o site foi criado?

Pesquiso desde abril de 2014 e o site foi criado em maio de 2015.

A presença masculina no cenário literário periférico é bem maior do que a feminina? 

É muito maior. As mulheres sempre estiveram presentes, mas sempre foram apagadas, silenciadas, criticadas com frases como “as poesias das mulheres são todas iguais, só falam de machismo”, entre outras coisas.

Para se ter uma ideia, das três edições da “Literatura Marginal” feita pela Caros Amigos, entre 56 escritores, apenas 9 são mulheres. É muito discrepante. Entre os escritores/autores convidados para lançar nos saraus também. Além disso, de 61 coletâneas, apenas 15 tem a participação feminina superior à participação masculina, o que equivale a 24,5 % do total.

Por outro lado, nos últimos cinco anos houve um aumento considerável no número de publicações femininas. Saíram 2 volumes de antologias pela Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop, com mais de 100 autores somando as duas, saiu a coletânea “Pretextos de Mulheres Negras”, com 22 autoras, saiu a “Louva Deusas”, a “Herdeiras de Aqualtune”, enfim, foram várias publicações organizadas por coletivos femininos, com maior presença das mulheres. O que mostra que estamos tendo mudanças no cenário.

Qual o resultado (até agora) da pesquisa em relação às regiões do país?

Eu fiz um cruzamento de dados com a relação do analfabetismo e nota-se que onde ele é menor (no Sudeste), a porcentagem de autoras é maior e quase metade está concentrada em São Paulo. No mapeamento, identifiquei que no Sudeste temos 67,5% das autoras, sendo que 45,5% estão em São Paulo, 10,5% no Rio de Janeiro e 9,17% em Minas Gerais.

 A literatura marginal feminina pode ser classificada como feminista?

Há quem discorde, que refute o termo, mas eu não vejo uma coisa desvinculada da outra. As mulheres estão o tempo todo lutando. O tempo todo, fala-se sobre problemas ligados às mulheres, como machismo, racismo, falta de representação, de representatividade, enfim. Eu não consigo desvincular, até porque, a literatura marginal/periférica é bem política, bem provocativa, e todas as mulheres tem essa veia muito forte.

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