Promising Young Woman e a Blindagem dos Engravatados

FONTEPor Natália Bocanera Monteiro Latorre, enviado ao Portal Geledés
Carey Mulligan em Promising Young Woman. (Foto: Divulgação/IMDb)

Dificilmente, e é uma tristeza imensa reconhecer esse fato, haverá uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de assédio sexual na vida. Seja ao pegar uma condução, seja ao beber um pouco mais em uma festa, seja de forma escancarada ou sutil, mulher nunca tem paz. O medo do assédio é um sentimento que homem algum vai compreender.

Nesse contexto, Promising Young Woman é um filme que resume de forma riquíssima a tragédia e a ruína que um assédio sexual e um estupro pode ocasionar na vida de uma mulher, tragédia essa que a sociedade faz questão de ignorar e esquecer.

O título em português é muito impróprio e uma péssima escolha. Foi uma escolha muito infeliz dos estúdios que distribuem o longa no Brasil, reforçando o estereótipo da mulher vingativa e louca, em total oposição à intenção de Emerald Fennel, diretora e roteirista do longa. A partir da tradução do título, o espectador já terá uma imagem (errada) formada da protagonista.

Dito isso, Promising Young Woman é um filme necessariamente chocante, e que usa de artifícios de humor, uma trilha sonora pop e suspense para tornar a temática mais digerível, principalmente, para uma sociedade que continua se recusando a enxergar o assédio sexual e a cultura de estupro como um problema.

O roteiro circunda a vida de Cassandra, a protagonista vivida por Carey Mulligan (uma de minhas atrizes favoritas, que mostra a que veio desde “A Educação”, sua primeira indicação ao Oscar), que sofre os traumas e vê a destruição da vida de uma amiga (e dela mesma) após um estupro coletivo e violento ocorrido enquanto cursava a faculdade de medicina, que não consegue retomar. Aluna brilhante e promissora que era, abandona o curso de medicina para trabalhar numa cafeteria. A motivação de sua vida é colocar à prova que todo homem é assediador e capaz de praticar atos sexuais contra a mulher sem seu consentimento (ou conhecimento).

Partindo de tal premissa, ela semana e religiosamente vai à alguma casa noturna, finge-se de bêbada, e aguarda a abordagem masculina que, outrossim, religiosamente acontece, sendo levada para locais reservados supostamente sem sua plena consciência. E ali, testa sua tese: homens, quase que de forma unânime, buscam embebedá-la ainda mais para nela extravasarem suas necessidades sexuais. E antes que tais atos se consumem, ela se revela totalmente lúcida, descobrindo em tais figuras masculinas um medo e um horror até então inexistente, ao serem afrontados.

É interessante como o longa faz questão de mostrar a protagonista e seu entorno, seja nos seus figurinos, seja na composição do cenário ou no tratamento que recebe de seus pais, como muita doçura e inocência. A casa em que reside com seus pais é, inclusive, um antro de bibelôs, e a cafeteria em que trabalha reforça os constantes tons pastéis e delicados ao seu redor.

Entretanto, doçura e inocência são características que, se um dia existiram na personalidade da protagonista, foram apagadas e estancadas pelo trauma e seus danos psicológicos. E a atuação brilhante de Carey Mulligan traz um olhar indecifrável, descrente e sem brilho à Cassandra.

O brilho no olhar de Cassandra mostra suas fagulhas rapidamente, quando essa, há muito sem conseguir envolver-se emocional ou amorosamente com qualquer pessoa pelas óbvias consequências do trauma, deixa-se envolver por Ryan, médico pediatra e antigo conhecido da faculdade de medicina.

E é impressionante como é fácil constatar que o homem, em qualquer lugar do mundo, parece ser dotado de uma característica animalesca inata de assumir a fragilidade, a submissão e a leitura da mulher como mero objeto sexual. E o filme deixa claro que tal característica é comum a todos: desde o homem pertencente ao mundo corporativo, diariamente bem apessoado de terno e gravata, ao trabalhador da obra, cujos atos de assédio parecem ser mais condenados pela sociedade do que aos praticados por homens elitizados.

Em qualquer lugar do mundo, portanto, as armas do assediador são sempre as mesmas: aborda a mulher, geralmente junto de outros de sua espécie, em tom jocoso, apelativo, dominador e sexual. E à mulher que refuta, o sentimento do assediador se altera para vergonha e necessidade de dominação: a mulher que antes era objetificada, torna-se feia, não aceita brincadeiras, é vagabunda e louca.

“Eu sou um cara legal”, é a frase dita pela maioria deles quando a nossa protagonista, Cassandra, mostra-se lúcida e consciente (e, portanto, ameaçadora) aos homens que aborda. Aliás, o longa reforça muito que o homem revestido de “cara legal”, o homem elitizado, educado, engravatado, brilhante, pertencente ao mundo corporativo, ou mesmo o médico ou estudante de medicina, aquele que dedica sua vida à salvar e cuidar de pessoas, beatificado pela sociedade, são, de fato e de forma ainda mais assustadora, revestidos do mesmo caráter animalesco, com o diferencial de serem socialmente protegidos e imunes a qualquer consequência (afinal, é mesmo uma lástima social penalizar meninos tão bons como um estudante de medicina por um estupro cometido justamente por ser apenas um menino).

Assistir ao longa traz mesmo ao espectador essa sensação de que o mundo de fato não tem jeito, e de que as injustiças sociais são mesmo incorrigíveis. Mas Cassandra faz garantir que todo o trauma sofrido por ela e sua amiga Nina não permaneçam impunes. Numa sociedade mundial que busca proteger bons meninos, assediadores e estupradores engravatados e de jaleco branco, resta à protagonista fazer remendos com as próprias mãos, não como vingança, mas de fato como merecida justiça, o que, abastecido por seu amor pela amiga Nina, compôs o único combustível motivador de sua vida.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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