Protagonismo negro e lutas jurídicas no Pós-Abolição mineiro

No dia dez de maio de 1903, o jornal Gazeta de Minas, fundado na cidade interiorana de Oliveira, publicou uma nota sobre o vindouro aniversário de quinze anos da Lei Áurea. O artigo comemorativo, entretanto, veio acompanhado de críticas às reverberações da lei. Ou mais exatamente, críticas ao que os ex-escravos e seus descendentes teriam feito dela, na visão dos redatores:

Autoria desconhecida. Gazeta de Minas, 10 de maio de 1903. Fonte: Acervo Digital da Gazeta de Minas.

Para o periódico, que denominou a liberdade adquirida pelos negros como “regalia”, poucos deles souberam fazer uso de sua própria autonomia. “A maior parte abusou dela”, é como descrevem. Voltado para as elites locais, o folhetim reproduzia artigos que traduziam as inquietações e concepções construídas por fazendeiros e autoridades regionais sobre os libertos e seus familiares. Muitas vezes, para as classes abastadas, autonomia e independência negra eram confundidas com vícios e vadiagens. A opção de não permanecer atuando nas antigas lavouras, migrar e construir suas vidas particulares longe dos olhares de dominação de ex-proprietários, entre outros pontos, gerou descontentamentos das elites. Na época, outros jornais mineiros e nacionais também difundiram o mesmo tipo de conteúdo.

Por outro lado, as preocupações imediatas das famílias das libertas, libertos e seus descendentes mostravam outras possibilidades de elaborações e existências. Garantias de sobrevivência, trabalho e afirmação do exercício de liberdade faziam parte dessas demandas. Também em Oliveira, em 1889, o trabalhador negro Wenceslau, com 19 anos de idade, foi acusado de tentar matar seu patrão, João Ribeiro da Silva. Nascido como escravo, foi nessa condição que Wenceslau cresceu e viveu ao lado de sua mãe Martinha e seu pai Vicente, na Fazenda da Lagoa (propriedade pertencente a Ribeiro). Depois da abolição, continuou prestando serviços no local, já como empregado livre. A permanência, todavia, estava longe de significar aceitação dos mesmos modos de tratamento. Wenceslau recusou ordens de efetuar um serviço que não seria de sua responsabilidade, sendo surpreendido pelo patrão, que o ameaçou com um açoite. Para se proteger, o jovem teria direcionado uma foiçada contra Ribeiro, que não o acertou. Ao tentar desviar, o fazendeiro caiu no chão. Imediatamente, João Ribeiro denunciou Wenceslau por tentativa de homicídio. 

Queixa de tentativa de homicídio aberta por João Ribeiro da Silva contra Wenceslau (sem sobrenome informado). 
Fonte: Laboratório de Conservação e Pesquisa Documental da UFSJ. Processo 659, caixa 28, 1889.

Conflitos envolvendo trabalhadores negros e ex-senhores no pós-abolição não eram situações isoladas. Mesmo com a aplicação da lei que extinguia a escravidão, alguns patrões tentavam aplicar práticas da era escravista sobre os ex-escravos. Os empregados, no entanto, agiam para demarcar sua posição de liberdade, recusando tarefas que não lhes competiam ou de outras formas. A atitude de Wenceslau nos leva a compreender que mesmo trabalhando para o ex-proprietário, direitos e limites deveriam embasar a relação entre as partes. Ao fim do processo, o Juiz decidiu arquivar o processo contra Wenceslau, já que não havia provas da tentativa de homicídio ou qualquer agressão que justificasse a queixa.

Em São João del-Rei, cidade próxima a Oliveira, outro caso judicial é elucidativo das relações de poder em terras mineiras. Em 1895, a doméstica Joaquina Maria de Jesus procurou a delegacia do município para registrar uma queixa de calúnia. Ela denunciou Lourenço Sobrinho, seu patrão, de tê-la caluniado pelo roubo de dois mil réis. O acusado era sobrinho de Vigário Sabatello, ex-senhor de Joaquina nos tempos de cativeiro. Com a morte do vigário – com quem Joaquina ressaltou ter tido boas relações – Joaquina teria ido morar e trabalhar para Lourenço. Além de afirmar perante a Justiça que a alegação de roubo que sofrera era falsa, a prestadora de serviços domésticos também informou que o período em que viveu com Lourenço foi marcado por maus tratos. 

Após a acusação de furto, Joaquina saiu da casa de Lourenço e foi morar com José Afonso do Nascimento. Não temos maiores informações sobre esse personagem, e nem sobre a sua relação com a doméstica. Mas Lourenço de que José era seu inimigo, e que por isso acolhera Joaquina. O fato é que a trabalhadora negra demonstrou insatisfação, perante os agentes da lei, sobre os boatos que circulavam pela cidade, e usou a justiça para tentar defender a sua reputação.

Tendo a acusação sido verdadeira ou não, o que importa aqui são as simbologias do caso. O processo datava de 1895, sete anos após a promulgação da abolição no país. Mesmo assim, os depoimentos de Joaquina e outros envolvidos sugerem que os tratamentos por ela recebidos ainda aludiam hierarquias da época da escravidão.

Como bem tratou Sidney Chalhoub, é possível localizar casos ocorridos ainda na escravidão, envolvendo disputas das famílias senhoriais contra forros. Em algumas situações, o (a) proprietário (a) do escravo ou da escrava cedia a carta de alforria no leito de morte, mas seus herdeiros tentavam invalidar a ação. Práticas como essa levaram homens e mulheres negras aos tribunais em busca de justiça e legitimação da liberdade. Não sabemos ao certo se Joaquina de Jesus havia conquistado formalmente o direito de ser livre com a morte de Vigário Sabatello. Mas como mencionamos, os depoimentos indicam a presença de um ambiente conflitivo entre a empregada e seu patrão, marcado pelos excessos de Lourenço. 

Não estamos com isso anulando as escolhas ou ações de Joaquina. Também não sabemos quais reais situações conflitivas entre ela e Lourenço ocorriam no cotidiano. O que chama atenção no caso, além das complexidades no que diz respeito às relações de trabalho, é o significado moral da denúncia levantada pela doméstica. Um boato negativo implicava no ferimento à honra pessoal e à imagem do indivíduo. Por isso, ainda que com as relações de poder existentes, Joaquina não pestanejou em procurar os órgãos judiciais para requerer seus direitos. Assim como necessidades materiais, a reputação era um ponto importante na vida de homens e mulheres negras empenhadas em reconstruir a vida em liberdade. Após o depoimento de testemunhas e várias intervenções do advogado do réu, o juiz anulou o caso.

Seria difícil esperar que na maior Província escravista do país, ex-senhores e seus familiares aceitassem as novas formas de autonomia negra com tranquilidade. Porém, trabalhadores e trabalhadoras negras, espalhadas por diversas regiões de Minas, não assistiram passivos às tentativas de imposições. Fosse nos tribunais ou nas ocasiões cotidianas, a afirmação desses sujeitos se fazia presente. 

Os discursos elitistas reproduzidos na imprensa revelavam as preocupações de autoridades e das classes abastadas locais com a população negra. Mas enquanto isso, ex-escravos, ex-escravas e suas famílias firmavam modos de vida que incluíam melhores condições de trabalho, laços familiares e preservação da própria imagem. Com certeza, essas ações foram decisivas para que gerações posteriores seguissem caminhos menos árduos. 

Assim como as histórias de Wenceslau e Joaquina, outras trajetórias são preciosas para a reconstituição dos primeiros anos do pós-abolição em Minas Gerais. A região onde viveram coronéis de sobrenomes até hoje conhecidos, embrenhados pela posição de prestígio e demarcação de poderes locais, também presenciou a existência de pessoas negras firmadas com o compromisso da própria sobrevivência e de seus iguais. Muito se produziu nos últimos anos sobre os percalços em cativeiro de nossos antepassados mineiros, mas ainda caminhamos para que as histórias de liberdade também tenham seu merecido lugar de destaque. Afinal de contas, de diversas formas e possibilidades são feitas as Minas Negras Gerais.

Assista ao vídeo da historiadora Cleudiza Fernandes de Souza no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula     

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados).

Ensino Médio: EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).


Cleudiza Fernandes de Souza

Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ), Mestra em História pela Universidade Federal de São  João del-Rei (UFSJ).  Pesquisadora do GT Emancipações e Pós-abolição em Minas Gerais. E-mail:cleosouzalh@gmail.com 

Instagram: @cleosouzalh

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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