Protagonismos de mães negras: alforrias e relações de gênero no Brasil escravista

FONTEPor Raiza Cristina Canuta da Hora, enviado para o Portal Geledés

Era o dia 20 de setembro de 1759 quando Ana Maria, preta da Costa da Mina, escravizada por Elena Soares Garcez, teve sua carta de liberdade registrada em um dos cartórios da Cidade da Bahia, como era chamada Salvador no período. Na ocasião, a proprietária escravista alforriou Ana e suas duas filhas, Maria Joaquina de dois anos e meio e Inácia de dois meses, “crioulinhas”, e afirmou fazê-lo justificando que a mãe “tem servido muito a minha satisfação.” Ana Maria, além de trabalhar satisfatoriamente para sua senhora, precisou pagar 128 mil réis pela liberdade de sua família. 

Carta de Liberdade de Ana Maria natural da Mina e suas duas filhas Maria Joaquina e Ignacia, escravas que foram de Elena Soares Gracez. Livros de Notas do Tabelião, Salvador, 20 de setembro de 1759, fl. 237 Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB).

As cartas de liberdade informam sobre o tipo de emancipação e as ações das partes envolvidas nela. As pesquisas realizadas sobre manumissões – nome também dado às alforrias – apontaram que esse expediente de saída da escravidão pode ser visto como o resultado final de um longo processo de negociação, nascido ao mesmo tempo da aceitação pelo cativo das regras da sociedade escravista e da utilização por ele dessas mesmas regras em seu benefício, como lembra Jucá Sampaio em artigo no livro Tráfico, cativeiro e liberdade. O que mais, além do pagamento, possibilitaria a alforria de uma pessoa? 

Além do pagamento, diversas foram as justificativas apontadas pelos senhores. Localizei menções aos bons serviços dos alforriados em 366 ocorrências (51,5%) das identificadas. Stuart Schwartz, em um capítulo do livro Escravos, roceiros e rebeldes, localizou menção aos bons serviços prestados pelos escravizados ou por seus pais em 47% das cartas investigadas, o que se aproxima bastante de nossa marca. O autor afirma que se tratava de um “pré-requisito” ou “exigência mínima” para a concessão da liberdade, com o que tendo a concordar. 

Não obstante, houve uns raros cativos que conseguiram a alforria justamente por agir de modo insubordinado. Foi o caso de Josefa Antonia, preta de São Tomé, escrava do padre Francisco Xavier Filgueira, que recebeu sua liberdade sem qualquer ônus “por ser desbocada e tratar a todos de casa mal e viver desgostoso”. O vigário estipulou apenas uma condição: “sair fora da minha casa, nunca mais me aparecer diante de mim, nunca me pôr mais pé na casa”. 

Não é difícil imaginar Josefa servindo de má vontade, de modo ríspido, praguejando e proferindo os piores xingamentos aos ouvidos do talvez pudico “homem de Deus”. Atos de insubordinação e mesmo de resistência cotidiana que, nesse caso singular, a levaram à liberdade gratuitamente. Porque o padre optou por alforriá-la em lugar de vendê-la é uma questão difícil de saber. Mas é possível imaginar que o vigário estivesse fugindo do constrangimento de dar explicações sobre o comportamento da cativa para um potencial comprador. Como religioso, ele não deveria mentir. Outra hipótese é que dada a saturação da relação com a cativa, ele optou pela via mais rápida: redigir uma carta de liberdade e se livrar do problema. 

Carta de liberdade de Josefa Antonia de nação São Tome. Livros de Notas do Tabelião número 107, Salvador, 9 de abril de 1766, fl. 296. Fonte: APEB.

Os dados parciais da pesquisa de doutoramento que desenvolvo no PPGH-UFBA, intitulada provisoriamente “Alforrias, relações de gênero e arranjos familiares (Salvador, meados do século XVIII)”, evidenciam também a importância das redes familiares para a conquista da alforria em Salvador, entre os anos de 1751 e 1766. Cerca de 60% dos alforriados que tiveram suas manumissões custeadas por terceiros contaram com parentes consanguíneos, com destaque para as mães, que foram indicadas como responsáveis pelo pagamento mais que o dobro de vezes dos pais. Os laços de parentesco religioso também foram importantes para a obtenção da liberdade. Vinte madrinhas e padrinhos assumiram os custos das alforrias de 25 pessoas, todas crianças, importante destacar. 

Pesquisando o Rio de Janeiro, Jucá Sampaio constatou que o número de escravizados que tiveram suas manumissões pagas por seus padrinhos é igual ao daqueles cujos pagadores foram as mães. Para o autor, o papel materno parece ter sido “sobretudo o de construir a rede de relações sociais que possibilitasse a liberdade dos infantes, fosse através de seus pais ou de outras formas de relação, como compadrio”, pois, segundo ele, “a libertação das crianças era, para as mães, muito mais uma tarefa de terceiros do que delas”. Para o caso da Bahia, os dados aqui apresentados refutam completamente essa afirmação, uma vez que as mães foram responsáveis não apenas pela maioria das alforrias monetarizadas custeadas por terceiros, como pelos “bons serviços” registrados em dezenas das cartas analisadas. 

Com efeito, no mínimo 29,3% do total tiveram registradas em suas manumissões justificativas como “pelos bons serviços que de sua mãe tenho recebido”, cartas pagas tanto por elas quanto por madrinhas, padrinhos e pais. Desse modo, o papel das mães de crianças escravizadas ia muito além do pagamento de suas alforrias e as de sua prole e do convencimento dos pais e padrinhos para financiá-las. 

A busca das mulheres escravizadas pela alforria de seus filhos foi uma forma significativa pela qual elas puderam exercer a maternidade. O papel das mulheres escravizadas se apresentava, sobretudo, na micropolítica das negociações com os/as proprietários/as escravistas, e isso incluía um elemento fundamental negligenciado pela historiografia: os serviços prestados pelas mães das crianças alforriadas. Stuart Schwartz, em Escravos, roceiro e rebeldes, pontuou que os bons serviços eram pré-requisitos para a alforria, mas não distinguiu, na sua análise, “bons serviços” de “bons serviços prestados pela mãe”. Nenhum dos trabalhos relativos a alforrias consultados até o momento opera com essa distinção, é preciso dizer. O caminho da negociação até a conquista da alforria passava por anos de serviços prestados por essas mães, que deveriam acumular as tarefas do cativeiro com a da maternagem, atentando ao oferecimento do melhor serviço aos senhores sob o risco de comprometer a negociação da alforria da criança. 

Esse foi o caso de Francisco, mulatinho de dois anos de idade. Sua senhora, madre Joana Josefa, religiosa professa no Convento de Santa Clara do Desterro, outorgou a carta de liberdade pelo preço de vinte mil-réis, pagos por Bernarda, sua escrava crioula, afirmando que a mãe de Francisco a “serve com zelo, caridade e prontidão há anos”, desde quando a madre entrara no convento. Bernarda comprou sua alforria e a do bebê quando este ainda se encontrava no seu ventre! Ressaltem-se os termos utilizados pela madre, indicativos das expectativas senhoriais sobre o comportamento dos cativos, nesse caso, ornadas pelos tons da religiosidade católica. É possível que surja a indagação: de que adiantava a liberdade do filho se ele estaria ao lado da mãe, provavelmente servindo à sua proprietária? Destaco que, como libertas, as crianças adquiriam uma perspectiva de futuro diferente. Alcançando mais idade, poderiam trabalhar nas ruas, ganhar, poupar e alforriar a mãe, inclusive.  

 Carta de liberdade de Bernarda cabra e seu filho Francisco mulatinho escravos da Madre Joana Josefa de Jesus religiosa do Convento de Santa Clara do Desterro desta cidade. Livros de Notas do Tabelião número 102, Salvador, 17 de março de 1757, fl. 88. Fonte: APEB.

Das 1.026 cartas de alforrias coletadas, relativas aos anos de 1751 a 1766, 711 (69,2%) trouxeram alguma justificativa para o ato. Dessas, 366 (51,5%) referiam-se aos bons serviços prestados pelos próprios alforriados ou por suas mães. Os dados revelam que as cartas de liberdade justificadas pelos bons serviços da mãe representavam um quarto das manumissões que mencionam bons serviços prestados, um índice alto. Isso é revelador da centralidade das mulheres nas estratégias familiares de conquista das alforrias. Tal centralidade se torna ainda mais patente quando se verifica que 42,3% das cartas outorgadas pelos serviços maternos foram concedidas gratuitamente. 

O trabalho desempenhado por essas mulheres não apenas tornava possível negociar a alforria dos filhos, como conseguia tal feito de modo a não implicar um ônus extra ao trabalho diário, o que tinha repercussões práticas nada desprezíveis para a realidade delas e de suas famílias. Não pagar para alforriar sua descendência poderia significar guardar pecúlio para alforriar a si própria, inclusive, ou adquirir mercadorias para trabalhar ao ganho e acumular rendimentos para o mesmo fim, entre muitas outras possibilidades. 

Observar tal aspecto é determinante para se entender a experiência das mulheres escravizadas, especialmente das mães, no contexto da escravidão urbana colonial, tema específico, inclusive, de um artigo de minha autoria intitulado “Escravidão, cor, gênero e mobilidade social: a trajetória de Antonia Gomes na Cidade da Bahia setecentista”

Nesse cenário, desperta atenção especial o caso do pardinho Manoel, que teve sua manumissão registrada no dia 14 de julho de 1765, escravo de Joana, cujo sobrenome não foi possível identificar no documento rasurado, filho de Simoa, crioula liberta. A alforria foi paga, mas os danos na fonte impossibilitam saber o valor. O que mais importa aqui é a forma como a senhora justificou a carta: “pelo haver criado como filho, atendendo aos bons serviços que de sua mãe tenho recebido ainda depois de liberta até o presente”. O documento revela uma das estratégias acionadas por mães de crianças cativas, no caso, alforriar-se, mas continuar servindo à senhora para nutrir a micropolítica das negociações e então viabilizar a alforria do seu rebento. Desse modo, a fonte reforça minha argumentação sobre o peso dos serviços das mães na conquista da liberdade das crianças escravizadas. 

Tais elementos evidenciam a dimensão produtiva e reprodutiva do trabalho das mulheres escravizadas, que se dava de modo concomitante e incessante. Denuncia também o acúmulo de jornadas a que as mulheres sempre foram submetidas na sociedade patriarcal brasileira, que engloba o trabalho na rua e o doméstico, com o sobrepeso das atividades impostas pela cultura do cuidado, que secularmente impõe às mulheres as tarefas reprodutivas e maternais com os bebês, crianças, doentes e idosos, bem como com o asseio dos ambientes, preparo de alimentos e a gestão dos lares. A invisibilização desse tema (o acúmulo de jornadas) na historiografia revela o caráter patriarcal nesta presente, que não destacou a sobrecarga de trabalho feminino na escravidão, em especial das mães. A elas cabia o maior esforço na empreitada da conquista da liberdade dos filhos – tinham que negociar cotidianamente com os proprietários, cuidar dos rebentos (seus e dos senhores, não raro), zelando, neste último caso, por alguém que representava uma propriedade para o senhor; conseguir os valores para pagamento da carta ou consegui-los de pais, padrinhos ou outros benfeitores ou credores, além de prestar bons serviços aos senhores, condição determinante para o sucesso da empreitada.  

Diante do exposto, evidenciam-se alguns modos como a experiência da escravização das mulheres foi diferente da dos homens. Além disso, opera-se a visibilização de experiências de maternidade negra, tantas vezes negada na História, e a afirmação da centralidade das mães escravas no esforço de conquista da liberdade legal para as novas gerações de escravizados nascidos na América portuguesa.  

Assista ao vídeo da historiadora Raiza Cristina Canuta da Hora no Cultne.TV sobre este artigo: 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas). EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais). (EM13CHS102); Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais). 


Raiza Cristina Canuta da Hora

Doutoranda, mestra, licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); professora substituta de História da África na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e professora substituta de História no Instituto Federal da Bahia (IFBA); E-mail: raizacanuta@outlook.com; Instagram: @rai_canuta. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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