Psicóloga Negra à Flor da Pele

FONTEPor Luísa Parreira Santos, enviado para o Portal Geledés
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Eu, mulher negra, professora universitária, coordenadora da Comissão de Orientação em Psicologia e Relações Étnico Raciais do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais subsede Triângulo. Trabalho como psicóloga clínica há três anos e cerca de 65% dos meus pacientes são pessoas negras. A maioria dos meus pacientes me procura dizendo “eu quero fazer terapia com uma psicóloga negra” e gostaria de tecer uma breve reflexão sobre os atravessamentos epidérmicos desse lugar.  A primeira pessoa que atendi em meu consultório certa vez colocou o braço próximo ao meu para comparar nossos tons de pele, num movimento de identificação e aproximação tão marcante que nunca pude esquecer. Foi bastante simbólico abrir minha carreira profissional com este gesto. 

Fanon (2008) em Pele Negra, Máscaras Brancas, pretende que a obra seja um espelho onde o negro possa se desalienar e se reencontrar. Na psicoterapia meu trabalho é ajudar a pessoa a se despir da máscara branca, se despir disso que o mundo diz que ela precisa fazer e ser para existir. É um processo angustiante porque nós, os condenados da terra, não sabemos o que tem por baixo dessa máscara e por vezes também não queremos descobrir. Faz muita diferença ver na psicóloga o espelho de uma existência possível. 

Vejo constantemente o alívio e a tranquilidade que essas pessoas tem ao poder falar abertamente dos racismos sofridos e das discriminações cotidianas sem medo de serem interpeladas ou interditadas por uma voz de acusação: você está exagerando, racismo não existe mais, você está se vitimizando, pense pelo lado positivo. Comigo, elas podem ter a garantia de não serem silenciadas. A máscara que amordaçou a boca de nossos ancestrais aqui é despedaçada. Fanon (2020) afirma que o encontro profissional-paciente deve ser, especialmente no campo da psiquiatria, um encontro de duas liberdades. Qualquer movimento da minha parte que obstrua ou impeça a liberdade dos meus pacientes será iatrogênico, adoecedor e colonial. 

É interessante pensar como a identificação acontece. Parte da sua força vem da certeza que meu corpo é lido da mesma maneira que o corpo delas, então certamente temos feridas semelhantes e irei compreender melhor suas experiências. A dor que elas expressam encontra ressonância nas minhas próprias dores e essa é a dimensão política de um sofrimento que não é individual, é coletivo e ancestral. Preciso ser congruente e autêntica em minha postura profissional e isso só é possível porque tenho ciência das minhas dores, escuto-as e cuido delas nos lugares apropriados. No tocante poema “Vozes-mulheres”, Conceição Evaristo demonstra como as vozes caladas e engasgadas por séculos encontram na geração mais jovem um grito de liberdade. Quando nos aquilombamos no setting terapêutico não são apenas as nossas vozes que ressoam, pois os infinitos sonhos de liberdade, autodeterminação e vida de nosso povo reverberam através de nós. 

Fazer as perguntas certas, conduzir a conversa para novos caminhos e colocar em ação aspectos que estavam silenciados na história pessoal me exige atenção especial ao caráter político do sofrimento humano. Ser negro é estar ao mesmo tempo alienado de si e à flor da pele (Fanon, 2020). Ao final de minhas comunicações, aulas ou palestras costumo ouvir que meu trabalho é muito importante porque meus pacientes negros encontram em mim uma voz. Eu recuso radicalmente essa colocação. Meus pacientes já tem voz, o que eles encontram em mim é a escuta. 

Referências

Fanon, Frantz. Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. São Paulo: Ubu Editora, 2020. 

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. 

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