Psicologia de 1,99 para nos controlar

FONTEPor Christian Ribeiro e Fabiane Albuquerque, enviado para o Portal Geledés
(Getty Images / Lucas S.Paiva/Guia do Estudante)

Caiu no linguajar comum o uso da psicologia. Houve, com o advento da modernidade, uma difusão da ciência e de uma certa racionalidade na vida quotidiana e isso inclui frases feitas tiradas da psicanálise ou de grandes nomes como Freud. Por exemplo, “Freud explica”, é usado para se referir às questões que deveriam ser analisadas sob a luz do conhecimento dito científico e reforçando que ele, como autoridade, é o único capaz de fazer isso. Acontece que há pouco tempo, as figuras que produziam conhecimento e se colocavam como “universais” nunca foram questionadas, tampouco os sujeitos que produzem ciência e que exercem a profissão baseados em saberes científicos.  

Mas os tempos são outros, e ainda bem. Quando li o estudo da filósofa francesa Lucy Irigaray, no seu livro “Speculum, l’altra Donna” (Speculum, a outra mulher), foi como se meus olhos se abrissem para ver coisas que, até então, eram para mim nebulosas, e eu pude simplesmente respirar. Sim, negros e negras não respiram como os brancos, sugam o ar que ainda lhes restam das profundezas dos pulmões para se manterem vivos. A autora diz que Freud ouviu tantos abusos de suas pacientes, cometidos por seus próprios pais ou homens da família que preferiu criar uma teoria para culpar essas mulheres pelo abuso, ou seja, aquela do Complexo de Édipo em que a menina tenta seduzir o pai na infância. Como pudemos aceitar isso por séculos? E eu sei que virão os defensores de Freud dizer “não foi bem assim, não”!  E a autora do livro “Couro Imperial”, Anne McClintock, do Zimbábue, também revela o lugar dos sujeitos universais da psicanálise, por exemplo, a obsessão de Freud pela figura da babá e pelas mulheres das classes trabalhadoras. Como a psicologia e a psicanálise é contaminada pela posição de poder dos seus fundadores! E não me assusta o fato de que, hoje, ela seja usada também como forma de poder e dominação sobre os sujeitos oprimidos, quando na boca dos sujeitos hegemônicos, sem contar nas mãos.

E mais, a psicologia caiu no uso popular e é usada para  oprimir. Há alguns dias, uma prima minha, mulher negra, repassou-me uma mensagem que me deixou chocada. Essa prima foi assediada por um homem casado e diante da gravidade da situação, resolveu contar o ocorrido a todos, inclusive à esposa do assediador. Mas para a surpresa dela, essa enviou-lhe uma mensagem com os seguintes dizeres “sua louca, você precisa de tratamento”. É a psicologia sendo invocada para deslegitimar alguém. Quantas mulheres já não ouviram dos seus maridos, namorados, companheiros “Você está louca!!. É tanta gente dando diagnóstico ultimamente! O problema é que esses diagnósticos veem de pessoas sem nenhuma base, sem conhecimento ou especialização no assunto, mas veem também dos próprios profissionais. Como já ouvi de psicólogos, diga-se de passagem, brancos, “Mas você está com raiva”,  “Precisa agir com menos ódio” ou “é preciso se amar e se aceitar”. Como se problemas estruturais se resolvessem somente com receita de amor próprio. Então, quando se inverte o diagnóstico, e se começa a analisá-los, saem pela tangente. A psicologia tornou-se uma arma nas mãos dos sujeitos hegemônicos para exercer poder e dominação. Nunca vi um negro sugerindo terapia a um branco no meio de uma discussão, pedindo para trabalhar a raiva ou tomar remédio ou mulheres negras  chamar mulheres brancas de “agressivas” etc. Tampouco vejo mulheres chamando homens de “mal amados”, “histéricos” e “loucos”. É poder, minha gente! É poder! 

A branquitude só entra nas discussões para nos ensinar algo, jamais para aprender e ainda assim, dando “carteirada”, ou seja, diagnóstico. E em geral, essa sempre apresenta  um modelo pronto sobre como devemos nos comportar, qual deveria ser o tom de voz perfeito para nos dirigirmos a eles e elas, as palavras certas e o jeito certo de pensar. É tanta psicologia barata de manual de loja de conveniência de aeroporto que eu não sei o que fazer com tanta porcaria. (Sobre essa última palavra que usei vão me chamar de agressiva).  

E tivemos prova disso recentemente, quando uma mulher branca, de classe média, humilhou um fiscal no Rio e se justificou da seguinte maneira: 

(…) “Minha frase ficou descontextualizada! Sei que tenho tom de voz alto, tenho sangue italiano, e às vezes se torna agressivo no calor da emoção. Mas em momento algum, eu desacatei ou quis diminuir o rapaz”, disse Nívea, que acabou demitida após o episódio. (…)

Ninguém a chamou de “ branca raivosa” ou mandou que fizesse terapia. O máximo que disseram foi “arrogante” ou “ela se acha melhor que os outros”. Pense se, nós negros e negras, usássemos os mesmos argumentos nesse mesmo contexto: “Ah! eu sou de descendência africana e às vezes minha voz se torna agressiva no calor da emoção”. Não, não funciona assim conosco! Aqueles que nos leem são os brancos e quem nos definem também são eles.

Não é dito, aliás nunca é dito, porém fica subentendido que, para nós, não existe “licença ancestral” para justificar nossas ações corriqueiras, mas apenas como exemplo de nossa pseudo degenerescência emocional e psicológica, afinal de contas, você não conhece o “samba do italiano – ou francês, ou espanhol, ou português – doido”, nem a “alemã, italiana, a francesa ou lusitana maluca, mas você conhece o “samba do crioulo doido”, você conhece a (o) “negra (o) maluca (o). Todas as reações de pessoas negras, quando realizadas fora dos contextos e referenciais de comportamento burgueses são comumente interpretadas como exemplos de patologias psicológicas. Em outras palavras, nossas dores e revoltas são loucuras perigosas, sendo por isso, de maneira intencional ou não, relacionadas à necessidade de serem controladas e tratadas.

O que explica o fato de que em todas as situações ou processos de relações sociais envolvendo a construção de narrativas negras, e suas inúmeras potencialidades contestatórias, quando envolvem questionamentos aos padrões estruturais e institucionalizados de nossa sociedade, somos sistematicamente desacreditados (as) em nossas potências transformadoras. É como se a simples possibilidade de questionarmos os padrões dominantes fosse um atestado da necessidade de nos reeducarmos para não mais ousar nos relacionar e interagir  com o mundo enquanto potenciais agentes transformadores de nossa própria realidade-mundo.

Sabe aquela história do “negro que não sabe o seu lugar”, “do negro insolente”, “do negro revoltado”, “do negro ingrato”, “da negra maluca”, expressões cotidianas que são recorrentes ao nosso ideário civilizatório? São como referenciais de normatividade social que nos revelam o quanto a sociedade brasileira é perversa em seu racismo e machismo dissimulado, mas, cotidianamente, ativo no desconstruir da noção de humanidade daqueles (as) a quem classifica e rotula enquanto os “outros”. Inferindo-nos, através de uma hierarquização de saberes – que numa sociedade como a nossa possui uma inequívoca característica de viés racial” (GONZALES, 1984) – como devemos nos sentir e lidar com a nossa dor e revolta, interiorizando e assumindo, assim,  como nossas, as culpas e consequências das violências as quais somos submetidos no decorrer da vida, buscando sempre estar de acordo com os padrões sociais e culturais hegemônicos, com o intuito de não colocar as bases da sociedade em xeque.

Em tempos de “vida negras importam”, que se evidencie que não somos doentes e nem a doença de uma sociedade historicamente esquizofrênica e desfigurada, que se faz de surda ante as batucadas da vida. Gostamos de samba, mas não de andar em eterna corda bamba. Não temos culpa se a branquitude não entende o toque do tambor e que o mundo sempre gira quando ele toca; que as falsas aparências de nossa normalidade social se desfiguram e não resistem ante aos batuques de amores, revoltas, desejos e esperanças que não nos deixam desaparecer em nossas resistências afro-diaspóricas em míticas terras de democracia racial e harmonia social. 

Os que nos leva a perguntar, em tempos de “vidas negras importam”, não entendem ou fingem não entender os batuques, as revoltas? Sendo assim é doido o crioulo que faz o samba ou o branco que não ouve o samba, que não sabe da vida sambar? Seria na realidade o samba do crioulo doido a máscara para esconder, para camuflar a existência do “samba do branco surdo” e sua eterna busca por ser aquilo que não é?

E ainda sobre a “psicologia de 1,99”, em conversa com uma psicóloga branca, ouvi-lhe discorrer, tranquilamente, que “o PIOR é o negro que não se aceita”. Diante dessa afirmativa, se essa profissional receber um negro ou negra vítima de racismo, certamente, arruinará com a vida dele ou dela. O pior, novamente somos nós, não aqueles que cometem racismo. E essa onda de autoajuda é tão banalizada, que até profissionais tem usado de forma generalizada e sem crítica, sem se situar na história, assim como as suas epistemologias de referência. É o coach se aliando à essa psicologia de 1,99 que não sabemos mais onde começa um e termina o outro. 

Nesse caso nem Freud explica, pelo menos não sem agogô e tamborim…

 

GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje., 1984. 

 

IRIGARAY L. Speculum of the other woman, Cornel University Press, 1985.

 

MCCLINTOCK, A. (2016). Couro imperial Raça, travestismo e o culto da domesticidade. Cadernos Pagu, (20), 7-85. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644595

 

MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro, Conquista, 1977. (Temas brasileiros, v.21).

 

Arquivo Pessoal

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento social negro no Brasil.

 

Arquivo Pessoal

Fabiane Albuquerque, doutora em sociologia pela Unicamp.

 

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Diálogo entre uma sociόloga brasileira negra e um jornalista italiano branco


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