Quando a violência de gênero promoveu mudanças na legislação brasileira

Como a mobilização social nas redes e nas ruas frente a casos de assédio e feminicídio forçaram a Justiça a dar uma resposta para a sociedade

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FONTEMarie Claire, por Larissa Saram
Como a mobilização social nas redes e nas ruas frente a casos de assédio e feminicídio forçaram a Justiça a dar uma resposta para a sociedade (Foto: Getty Images)

“Não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus. E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você.” Essa foi uma das falas que Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado do empresário André de Camargo Aranha, direcionou à modelo e influenciadora Mariana Ferrer durante julgamento do processo em que ela acusava André de estupro.

De acordo com Mariana, o fato aconteceu em dezembro de 2018, em uma casa noturna de Florianópolis. Imagens da audiência mostram o advogado exibindo fotos postadas no Instagram em que Mariana aparece com roupas curtas ou de biquíni. Isso para questionar a denúncia de crime sexual. Cenas machistas que beiravam o absurdo e, por isso, mobilizaram a opinião pública por justiça.

A pressão social resultou na lei 14.245/2021, mais conhecida como​​​​ lei Mariana Ferrer. Sancionada no dia 22 de novembro deste ano, exige que promotores e advogados zelem pela integridade física e psicológica de vítimas e testemunhas, além de protegê-las de constrangimento em audiências de crimes contra a dignidade sexual.

O texto inclui ainda que não serão permitidos uso de linguagem informal ou exibição de material ofensivo e altera o Código Penal ao aumentar a pena do crime de coação no curso do processo. O ato é definido como o uso de violência ou grave ameaça contra os envolvidos em processo judicial para favorecer interesse próprio ou alheio, e recebe punição de um a quatro anos de reclusão, além de multa. Essa pena fica sujeita ao acréscimo de um terço em casos de crimes sexuais.
Assim como a lei Mariana Ferrer, outros crimes de gênero no Brasil provocaram tanta indignação que forçaram a justiça a dar uma resposta para a sociedade.

Esse movimento começou com a emergência do debate feminista principalmente nos anos 1970 e desde então vem contribuindo para uma evolução legislativa significativa. “Não tenho a menor dúvida de que a mobilização nas redes sociais, na imprensa e nas ruas é essencial e traz resultado. Faz parte de viver num Estado democrático e precisamos sempre lembrar que os congressistas que fazem as leis são eleitos para representar os interesses do povo. Então, é sim necessário que eles sejam constantemente pressionados para garantir a expansão e manutenção dos direitos das mulheres”, afirma a advogada e fundadora da Gema Consultoria em Equidade, Isabela Del Monde.

Para ela, as leis devem ser pensadas num sistema, de forma que uma dialogue com a outra. “O mais importante não é tanto a criação de novas leis, mas a maneira como elas impulsionam a criação de políticas públicas que fomentem equipamentos de apoio, esses sim responsáveis por garantir a prevenção de novas violências.”

 Para a Delegada de Polícia de São Paulo, especialista na atuação preventiva de violência de gênero e violência doméstica e familiar e idealizadora do programa “Homem Sim Consciente Também”, Renata Lima de Andrade Cruppi, a forma mais efetiva de enfrentar crimes contra mulheres e meninas, dentro ou fora do ambiente doméstico e familiar, é com conhecimento. “A criação de novas leis inspira e fortalece o debate. É difícil falar de uma violência de gênero e não entrar na Lei Maria da Penha, ou o contrário, por exemplo”.

A seguir, os casos emblemáticos que impulsionaram a criação de aparatos e leis que punem a violência contra mulher:

ÂNGELA, ELOÍSA E MARIA REGINA
Desde o podcast “Praia dos Ossos”, muito se falou sobre o caso Doca Street, assassino confesso de sua então namorada, a socialite mineira Angela Diniz. No processo, a vítima foi retratada como promíscua, libertina e as teses da legítima defesa da honra e crime passional foram usadas para que Doca conseguisse sair praticamente impune no primeiro julgamento, em 1979.

Chocadas com a maneira como a justiça e a imprensa conduziram a história, as feministas começaram um movimento que, no ano seguinte, ganhou ainda mais força com a notícia das mortes de Eloísa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha, duas mulheres de classe média alta de Belo Horizonte, assassinadas pelos respectivos maridos num intervalo de menos de 20 dias.

Esses dois casos são menos lembrados hoje, mas na época geraram um ato em frente à escadaria da Igreja São José, que fica na região central da cidade, e que reuniu cerca de 400 mulheres para denunciar a violência de gênero. Foi também lançado o manuscrito “Quem Ama Não Mata”, encaminhado depois para as autoridades.

A mobilização resultou num segundo julgamento de Doca, que foi condenado a 15 anos de prisão por homicídio em 1981. Além disso, a ampliação de discussões públicas sobre a violência contra a mulher teve parte importante na criação, quatro anos depois, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher, inaugurada em São Paulo. Hoje, as DDMs, como são chamadas, são instrumentos essenciais no atendimento e acolhimento de mulheres vítimas não só de violência doméstica, como também de assédio e importunação sexual.

MARIA DA PENHA
Uma das mais avançadas do mundo, a lei 11.340 foi sancionada em 2006 e batizada com o nome da cearense que durante quase 20 anos lutou por justiça depois de ter tomado um tiro enquanto dormia e, quatro meses depois, ser eletrocutada.

Marco Antonio Heredia Viveros, marido e autor dos crimes, passou por dois julgamentos e, apesar de condenado, permaneceu em liberdade. Em 1998, quinze anos após sofrer as violências, Maria da Penha acionou o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) que denunciaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).

Em 2001, o Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica. Com o apoio de um consórcio de ONGs feministas foi elaborado, então, um projeto de prevenção e combate à violência doméstica e familiar que incluiu a criação da lei Maria da Penha. Inovadora, ela não apenas pune o agressor como também abarca políticas públicas nos âmbitos de violência sexual, psicológica patrimonial e moral que contribuem como parte dos direitos humanos das mullheres.

Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que dobra as penas de crimes contra a honra praticados contra mulheres em situação de violência familiar, como calúnia, difamação e injúria. O texto também propõe que o autor desses tipos de violência, ainda que se retrate antes da condenação, não ficará isento da pena. Além disso, todas as infrações no contexto de violência doméstica deverão ser apuradas mesmo com a ausência de queixa da vítima. A proposta será enviada ao Senado.

JOANNA
Uma recordista da natação, a atleta olímpica Joanna Maranhão revelou em 2008 que tinha sofrido abusos sexuais de um treinador quando tinha apenas 9 anos. A divulgação da denúncia e as entrevistas que Joanna deu sobre o assunto impulsionaram os diálogos e, como consequência, a criação da lei 12.650/15, que leva o seu nome. 

O novo texto alterou os prazos de prescrição dos crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes. Desde 2015, a contagem de tempo só começa na data em que a vítima fizer 18 anos, caso o Ministério Público não tenha aberto antes ação penal contra o agressor. Até então, a prescrição era calculada a partir da prática do abuso, quando muitas vezes a criança não tem entendimento de que está sendo violentada. O prazo para denúncia também aumentou para 20 anos.

“A Lei Joanna Maranhão trouxe um avanço no exercício dos direitos de crianças e adolescentes, os quais se viam numa situação delicada: se o responsável não tivesse uma atitude ativa, ficaria sem resposta aquela violência. Agora, havendo inércia, na entrada da fase adulta, conseguirá buscar um respaldo legal. E ainda: familiares que antes passavam impunes, hoje têm menos chances de serem responsabilizados”, afirma a delegada Renata Cruppi.

CAROLINA
Em maio de 2012 o assunto era um só: o vazamento online de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann. Ao todo, 36 imagens foram postadas na internet, sem autorização, depois que a atriz se recusou a ceder à extorsão e pagar R$10mil a hackers.

Em dezembro do mesmo ano, foi sancionada a lei 12.737, chamada lei “Carolina Dieckmann”, que tornou crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obtenção de dados particulares. “Apesar de ser uma lei que se aplica em qualquer situação e não só na divulgação de imagens íntimas, ela surgiu por conta da violação da sexualidade de uma mulher”, explica Isabela Del Monde.

Infrações desse tipo passaram a ser punidas com multa e detenção de seis meses a dois anos. No caso de haver divulgação, comercialização ou envio das informações sensíveis obtidas na invasão, como comunicações privadas, segredos industriais e dados sigilosos, a pena aumenta em um a dois terços.

ANÔNIMA(S)
Ela não foi a primeira e, infelizmente, nem a última vítima de importunação sexual no transporte público. Mas sua denúncia foi essencial para que o assunto do assédio na rua ganhasse repercussão, gerasse uma pressão no sistema judiciário e, principalmente, uma mudança importante na lei.

Numa tarde de terça-feira, em agosto de 2017, uma empregada doméstica que preferiu não revelar sua identidade estava dentro do ônibus, a caminho do trabalho, quando percebeu que um homem havia ejaculado em seu pescoço. Em choque, ela tentou sair imediatamente do coletivo, mas foi impedida pelo agressor. Motorista e cobrador foram avisados e a polícia foi chamada.

O assediador foi preso em flagrante, porém o juiz entendeu que o abuso se tratava de importunação ofensiva ao pudor, uma infração menor, e o soltou. Na semana seguinte, ele atacou outra vítima, que também teve seu nome protegido, e foi preso novamente. Acabou indiciado por estupro – crime grave, com pena de seis a 30 anos de prisão.

A resposta inadequada da justiça nos casos de assédio em espaços públicos ilustrada por esse caso de São Paulo gerou um enorme debate nacional, que resultou na criação da lei 13.718/2018. A partir dela passou a ser crime “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, com pena condizente ao delito, de 1 a 5 anos de prisão.

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