O racismo, como bem frisou a escritora moçambicana Paulina Chiziane em sua última passagem pelo Brasil, é um problema que existe em todos os lugares onde há negros. Mas as características da expressão do racismo mudam e se moldam de acordo com as características do lugar em que se está.
Por Joice Berth Do Revista Lingua de Trapo
Nos EUA, por exemplo, o ódio ao negro nunca foi disfarçado. Já no Brasil, o mito da democracia racial se acomodou suavemente à displicência natural do povo brasileiro e ao nosso mundialmente famoso complexo de vira-latas. Isso faz com que as expressões do ódio racial sejam diferenciadas e que os mecanismos que se aplicam na propagação desse ódio sejam sofisticados, a ponto de confundir as próprias vítimas (sim, vítimas, posto que se trata-se de um crime).
As peculiaridades e especificidades do racismo à brasileira criam uma categoria curiosa e intrigante, os subopressores, ou reprodutores compulsórios de práticas racistas. São sub ou apenas reprodutores, porque embora sejam usados como apoio não têm poder estrutural algum, sendo facilmente descartados após uso e abuso cíclico do racista opressor (vide o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta). A sofisticação dos métodos racistas acontece em diferentes momentos e de diferentes formas. Destaco algumas:
Feministas negras gritam desde a década de 70 sobre problemas que atingem a base da pirâmide, que é o lugar onde elas estão situadas devido às opressões de raça e gênero casadas. Não são ouvidas, são perseguidas e boicotadas. Uma mulher negra francesa, ex-consulesa, decreta sem criticidade nenhuma, que o Brasil é o país mais racista do mundo em uma entrevista para um dos veículos de imprensa escrita mais racistas desse país.
E afirma que as cotas raciais são humilhantes, apesar de necessárias. Ora, humilhante para quem? Para negros cotistas? Não. Humilhante porque expõem definitivamente as contradições da democracia racial que o Brasil ostenta e se esforça para manter, portanto, se há que pontuar uma humilhação, não é para os negros cotistas… Uma fala que, embora pareça de grande ajuda, na verdade pesa sobre um assunto que o país não digeriu.
Alunos cotistas são expostos a agressões sistemáticas devido à crença de que se trata de um privilégio ou um favor que tira vaga de outros alunos. O sentido da afirmação pode até ser outro, mas colocado dessa forma, sem contextualizar, serve de alimento para o público que mais crítica e ataca alunos cotistas.
Mas o fato de uma mulher negra, estrangeira, fazer uma fala que corrobora as diversas humilhações que alunos cotistas sofrem em seus ambientes acadêmicos em um veículo símbolo do que há de mais manipulador e contrário à honestidade jornalística e isso ser aceito como verdade, silenciosamente dialoga com o atual alvo da esquerda branca do país: Fernando Holiday, deputado eleito há duas semanas em São Paulo com expressivos 48 mil votos.
O jovem político em questão tem um discurso raivoso e odioso contra o movimento negro e suas importantes conquistas, como as cotas raciais por exemplo. E ainda ataca os homossexuais e os pleitos do movimento LGBT. Ele, um homem negro e assumidamente homossexual. Causa espanto, causa repúdio, causa raiva, sobretudo nas pessoas brancas que se perguntam como pode uma pessoa ser contra si mesma. Nas pessoas negras, em especial nas que lidam com os efeitos nefastos da escravização mal-abolida no Brasil, causa profunda tristeza e a nítida sensação de que o racismo ganhou mais uma batalha, como vem ganhando sempre.
O jovem negro, que obviamente se odeia e odeia os seus semelhantes sociais, é um produto visível e deprimente da estrutura racista institucionalizada. E a prova cabal da profundidade e multiplicidade de atuação do racismo nas mais variadas esferas sociais, independente da inclinação ou ideologia política.
E é possível afirmar com segurança que, dos 54% de negros que existem no Brasil hoje, pelo menos a metade pensa, fala, age e se comporta, se não exatamente, de maneira similar ao jovem e equivocado político. Mas como se dá esse fenômeno? Muito simples… doses cavalares de apagamento e silenciamento de pessoas negras nas mais variadas esferas sociais, aliados à omissão estratégica de pessoas brancas diante do próprio racismo em todos os meios possíveis.
“Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso”
Olhos Coloridos, Macau
A pessoa negra é treinada pelo sistema racista para se odiar e odiar tudo que remeta a sua existência enquanto sujeito negro. Tudo direciona para isso, os meios de comunicação e mídias em geral, a escola, a universidade, a política, a configuração espacial das cidades (periferia seria segregada e excluída se concentrasse a mesma quantidade de pessoas brancas que moram no eixo Vila Mariana, Pinheiros, Vila Madalena? Creio que não), os padrões estéticos, tudo muito bem combinado passando incessantemente a informação de que a pessoa negra não é adequada, não é desejada, não é valorosa, não é importante.
Ao mesmo tempo que a pseudorrepresentatividade, sempre estabelecida pela presença de uma única pessoa negra e essa pessoa é sempre próxima do padrão brancocentrado (pele mais clara, cabelo menos crespo, traços mais “finos” e uma óbvia reprodução da figura do capitão do mato ou da negra que servia a casa grande), ou seja, cria-se a mensagem subliminar de que, quando o branco entreabre as portas dos privilégios, só um único negro pode passar e que esse negro não seja assim… tão negro.
Os efeitos disso são as insistentes competições entre pessoas negras, que, com o tempo, se tornaram naturalizadas, mas a desestruturação das famílias negras está fundamentada nesse viés, o do auto-ódio e autorrejeição. E essas competições também são usadas como token, exaltando de maneira negativa, que os negros não se gostam, competem entre si e por isso não são civilizados ou prósperos.
Uma pessoa branca é só uma pessoa. Uma pessoa negra tem de responder por todos os outros indivíduos negros, em um movimento covarde de anulação da subjetividade e da individualidade do sujeito social autônomo que essa pessoa representa
O próprio uso da imagem política de um homem negro que endossa todas as críticas pautadas no racismo velado da ideologia direitista é uma estratégia racista, pois atua sob essa lógica da pseudorepresentatividade.
É o token na sua mais inescrupulosa atuação, usando a alienação de um jovem negro diante de sua condição social para, a um só tempo, dizer que não é racista e implantar sem esforços e explicações coerentes medidas que lesam toda a população negra, majoritariamente pobre. “Não somos racistas por aqui, ok? Até elegemos um negro que se esforçou e por isso está aqui!” eles dizem.
Mas essa tática não é novidade. Centenas de pessoas brancas fazem isso diariamente de diversas formas, como por exemplo quando apontamos racismo e ela se defende dizendo que até tem parente/amigo/namorado/marido/filho negro. É a mesma coisa.
E não é uma espécie de token a esquerda nacional focar na crítica de uma figura construída por uma sociedade racista, em vez de se posicionar e atuar contra a cultura que construiu esse e mais tantos outros negros que pensam e agem movidos pelo auto-ódio e autorrejeição como ele?
Alguns justificam as críticas, afirmando que estão falando do caráter do jovem, mas chamá-lo de mordomo da casa grande ou ainda fazer alusão à senzala que vota no senhor de engenho não me parece muito condizente com questões de caráter e, ainda que fosse, por que apenas o caráter de um dos poucos negros eleitos deve ser esmiuçado como se fosse único?
A sutileza com que as questões raciais são tratadas no Brasil, num misto de covardia com cinismo, estabelece valores diferenciados para as pessoas negras e suas ações. O movimento negro nacional é acusado de segregacionista por insistir na importância de discutir a questão racial com a urgência que merece ao mesmo tempo que exalta a atuação dos Black Panthers e a figura de Malcom X, Mandela e Luther King, que já falavam sobre isso.
Nosso racismo é recheado de hipocrisia e coberto com o nosso complexo de vira-latas. Tudo regado a conveniência e atitudes mercenárias, que embranquecem negros ricos o quanto podem e aplaudem negros estrangeiros sem pensar se aquele discurso é falho ou não, pois a intenção é sempre a de deslegitimar o negro brasileiro e reforçar o mito da democracia racial, à medida que se afirma não ter “preconceito”, pois até gosta desse ou daquele negro (que convém por algum motivo). Mas a sutileza atua mais uma vez porque esse mesmo negro será apedrejado, caso não atenda mais às expectativas ou ao cenário de paz entre as raças.
Dá para entender tudo, sem esforço algum, quando você passa por um processo de imersão em pensadores negros como Fanon e Lélia Gonzáles e contextualiza esse pensamento ao longo da história e trajetória dos negros no Brasil e na América em geral. Só não dá para entender como a esquerda nacional não enxerga que se iguala à direita no que ela tem de mais repugnante, o racismo, ao tratar a questão racial como algo sem importância e manter o foco na luta de classes defendendo um discurso que não faz sentido para nossa realidade, porque é incompleto, por não considerar os mecanismos que confinam a pessoa negra na classe oprimida enquanto a pessoa branca transita no que não é seu “lugar natural”, ascendendo sem ser chamada de vendida ou traidora da raça:
“Os sociólogos preferem ser imparciais
E dizem ser financeiro o nosso dilema
Mas se analisarmos bem mais você descobre
Que negro e branco pobre se parecem
Mas não são iguais”
Racistas Otários, Racionais Mc’s
Não dá para entender por que pessoas brancas se espantam com os efeitos da estrutura que elas mesmas criaram e alimentam cotidianamente. A pessoa que aplaude a miss e faz questão de dizer que ela tem orgulho da raça por não alisar o cabelo é a mesma que vai barrar no RH de uma empresa outra moça negra com as mesmas características.
A pessoa que critica a ocorrência pavorosa de negros que caem nos discursos enrustidos ou explícitos que convencem centenas de pessoas negras de que elas não são importantes é a mesma que não enxerga problema algum quando entra em um ambiente elitizado totalmente branco, como uma universidade ou a diretoria de uma empresa. As pessoas espantadas com o discurso do jovem negro alienado que reproduz clichês racistas não se assustam com o assassinato de 5 jovens negros sob disparos de 111 tiros e o uso desse caso como matéria-prima da arte de um suposto humorista esquerdista (branco, claro!)?
Sem dúvida alguma, é prejudicial a existência de oprimidos trabalhando a serviço da perpetuação de discursos que os vitimam, atuando como subopressores e servindo de exemplo para outros oprimidos que não atingiram a consciência racial necessária para erradicar o quadro perverso da opressão instaurada. Essa é uma luta do movimento negro, dizimar a cegueira mental que torna o negro um alvo fácil do mau uso de opressores. Mas é muito mais prejudicial o esforço descarado que pessoas brancas, opressoras natas, fazem para manter esse estado de coisas em um processo contínuo e histórico de exclusão, segregação, apagamento, silenciamento, epistemicídio, e incentivo ao auto-ódio.
Ao contrário do que fala em entrevista a ex-consulesa da França, não é humilhante para o negro cotista depender de uma medida afirmativa para equacionar os estragos que o racismo faz nas vidas negras. A culpabilização expressa por uma mulher negra é um dos efeitos colaterais das ações racistas nos meios de comunicação, pois esses sempre passam a mensagem de que a pessoa negra que questiona sua subalternidade é vitimista.
São as sutilezas do racismo à brasileira que uma pessoa negra não consegue captar, sobretudo quando não teve contato com os diagnósticos feitos por pensadores e estudiosos das questões raciais no país. E um estrangeiro, em um primeiro momento, não tem esse contato, porque o apagamento de intelectuais negros é outra sutileza do racismo à brasileira (quantos anos demorou para “Mulheres, Raça e Classe” de Angela Davis ser traduzido no Brasil e por que John Green vira best-seller da noite pro dia?).
Os espaços que dão a uma mulher negra estrangeira em um veículo de comunicação racista são outra nuance tão perversa quanto sutil, pois sabem que o discurso vai em algum momento ser descontextualizado ao gosto do veículo que é historicamente inimigo da luta antirracismo no Brasil. Esse mesmo espaço não vai dar voz a intelectuais do movimento negro que, através dos estudos e análises científicas, ampliaram sua consciência racial a ponto de captar esse “refinamento” e apontar entre outras coisas o racismo do próprio veículo.
Esses mesmos espaços, priorizam pessoas negras que fogem o quanto for possível da imagem majoritária do negro nacional, pois é europeia e tem a pele mais clara e condição socioeconômica infinitamente superior (por isso está em um veículo de “informação” que é essencialmente neoliberal e meritocrático)
E é esse refinamento e sutileza, que produz jovens alienados como o deputado negro atacado pela esquerda, enquanto trabalha de maneira eficiente o discurso falho de uma mulher negra estrangeira usando a um só tempo o complexo de vira-latas e o racismo, considerando que esse complexo remete à era colonial, onde tudo que era negro ou mestiço já era considerado inferior. Esse refinamento convence os mais desatentos, de que Brasil não é assim, tão racista.
Por isso, senhoras e senhores, quando o assunto são as opressões raciais, há mais elementos e entremeios do que supõe a vã filosofia da esquerda obsoleta que se nega a desconstruir seus parâmetros racistas, que funcionam como ponto de confluência com os discursos reacionários da direita. Vão ter que descer do pedestal e absorver o conhecimento e saberes produzidos por pessoas negras que dedicaram suas vidas à militância por uma sociedade sem racismo, da qual ainda estamos muito longe.
Vão ter que se questionar e se desconstruir de todo e qualquer foco possível de ação racista naturalizada, passando pelo campo da afetividade, do mercado de trabalho, da infância e até da identidade enquanto sujeito brasileiro, filho da mestiçagem em maior ou menor grau. Vão ter que se aprofundar na questão até o ponto que começar a sentir vergonha e não ódio ao se deparar com oprimidos convertidos em subopressores, usados como marionete de discurso racista da direita, sabendo que agiu diretamente e indiretamente na formação da identidade distorcida dessas pessoas.
E isso leva tempo e exige o mínimo de disposição e humildade.