Nos últimos anos, o termo “justiça climática” tem sido usado em muitos espaços. Acredito que é fundamental expandir esse diálogo e articulação para garantir que os direitos humanos básicos sejam respeitados no planeta. Muitos estudiosos e organizações sérias desenvolvem perspectivas urgentes sobre o tema. No entanto, tenho observado que diversas organizações predominantemente brancas utilizam o termo para se alinhar ao assunto do momento, mas evitam discutir um tópico historicamente excluído dos debates ambientais no Brasil: O RACISMO.
Há um claro receio em abordar temas como racismo, racismo ambiental e citar que são as pessoas negras, especialmente mulheres negras e indígenas, as mais afetadas pela crise climática. Qual a razão desse medo, cara pálida?
Segundo Benjamin Chavis, o racismo ambiental ocorre quando as consequências das degradações ambientais se concentram em bairros e territórios periféricos, onde vivem famílias mais pobres, predominantemente negras, indígenas e quilombolas. Esses locais sofrem com altos índices de poluição do ar e das águas e enfrentam maior risco de inundações e deslizamentos, expondo sua população vulnerável a desastres e piores condições de saúde. Além disso, a população negra frequentemente é excluída da elaboração de políticas e da liderança em movimentos ecológicos, e as leis são aplicadas de forma discriminatória em territórios racializados.
As mudanças climáticas e a extrema desigualdade são dois dos maiores desafios do mundo atual, interconectados de forma que uma alimenta a outra. Essa dinâmica beneficia um pequeno grupo de bilionários, enquanto a maioria da população global sofre as consequências da destruição ambiental, enfrentando eventos extremos, caos social e econômico.
No Brasil, a distribuição desigual dos riscos segue um modelo de urbanização historicamente estruturado para ser excludente e racialmente definido. Fatores como renda, nível de escolaridade, raça/cor da pele, gênero e local de residência determinam quem são as populações mais vulneráveis e impactadas.
O estudo “Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental“, do Instituto Pólis, publicado em julho de 2022, revela que nas cidades, a população de baixa renda e negra está mais exposta a inundações e deslizamentos. Em Belém, as 125 áreas de risco mapeadas estão associadas ao perigo de inundação ou erosão, não coincidindo com os bairros de maior poder aquisitivo, como Nazaré e Batista Campos, onde a proporção de população branca é maior. Nas áreas de risco, a população negra representa 75% do total, com uma renda média 32% menor que a média geral da cidade. Além disso, 21% das moradias nessas áreas são chefiadas por mulheres de baixa renda (até 1 salário mínimo), segundo dados do IBGE.
Em Recife, os riscos ambientais estão vinculados tanto a perigos hidrológicos, de inundação dos rios, quanto a perigos geológicos, de deslizamentos de terra em áreas de maior declividade. O risco de deslizamento se concentra nas áreas de menor renda de Caxanguá, de Ibura e dos morros da Zona Norte. Ao todo, são 677 áreas com risco geológico. A renda média é de R$1,1 mil por domicílio, a proporção de pessoas negras é de 68% e a taxa de domicílios chefiados por mulheres de baixa renda é de quase 27%.
Nas áreas de mangue, o risco de inundação afeta majoritariamente bairros como Afogados, Jardim São Paulo, Iburas e Areias, com a população negra representando 59% do total, 22%das residências são chefiadas por mulheres que ganham até 1 S.M. e a renda média domiciliar sendo R$ 2,1 mil.
O Censo Demográfico de 2022 revelou que 49 milhões de brasileiros ainda não têm acesso adequado ao esgotamento sanitário, e 4,8 milhões não possuem água encanada. Esses problemas afetam desproporcionalmente pessoas pretas, pardas e indígenas, evidenciando as profundas desigualdades no acesso a serviços básicos.
Cerca de 92% das pessoas amarelas e 83,5% das pessoas brancas têm acesso a uma rede de esgoto, coleta de lixo e abastecimento de água adequados em casa. Em comparação, apenas 75% das pessoas pretas dispõem desses mesmos serviços. Entre os pardos, o índice é ainda menor, com 69% tendo acesso a saneamento básico adequado. Para os indígenas, a situação é mais crítica, com apenas 30% tendo acesso a esses serviços essenciais.
Ondas de calor mataram mais de 48 mil pessoas no Brasil entre 2000 e 2018, superando em mais de vinte vezes o número de mortes por deslizamentos de terra no período. Além disso, os eventos de aumento abrupto nas temperaturas – mais intensos e frequentes por causa das mudanças climáticas – aprofundam desigualdades socioeconômicas e vitimam mais idosos, mulheres, pretos, pardos e pessoas menos escolarizadas.
Estudo de janeiro de 2024 conduzido por cientistas brasileiros e portugueses da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade de Lisboa, destacou que essas ondas de calor exacerbam as desigualdades socioeconômicas, especialmente em áreas urbanas.
A equipe de pesquisa foi liderada por Djacinto Monteiro dos Santos, do Departamento de Meteorologia da UFRJ. Segundo o estudo, em Belém, Recife, Brasília, Goiânia, São Paulo e Rio de Janeiro, para ambos os sexos, o índice de pessoas pretas e pardas foi de 1,33–2,30, contra 1,16–1,44 para pessoas brancas. Em nenhuma das regiões analisadas, o aumento na mortalidade de pessoas brancas supera o de pessoas pretas e pardas.
“As ondas de calor foram responsáveis por mais de 48.000 mortes em áreas urbanas no Brasil. Mulheres, pessoas pretas e pardas, idosos e aqueles com um nível mais baixo de educação são os mais afetados, reforçando como as mudanças climáticas induzidas pelo ser humano têm exacerbado as desigualdades socioeconômicas no país”, apontaram os cientistas, que reforçaram a necessidade de políticas públicas para fortalecimento dos serviços de saúde, incluindo a preparação específica para ondas de calor voltada particularmente para os grupos vulneráveis.
A Associação de Pesquisa Iyaleta, sediada em Salvador, investiga as mudanças climáticas e as desigualdades raciais, de gênero, sociais e territoriais. Há mais de 2 anos, os pesquisadores aprofundam os estudos em áreas urbanas situadas dentro do perímetro da Amazônia Legal. Em 2022, produziram cadernos trazendo análises sobre os eventos climáticos em Porto Velho e em Cuiabá.
Os pesquisadores observaram que, em ambas as cidades, a segregação racial urbana e a desigualdade influenciam significativamente como as mudanças climáticas impactam as populações negras e indígenas. Em Cuiabá, capital de Mato Grosso, a segregação racial está refletida na implementação do plano diretor municipal. Esse plano não considera adequadamente os direitos fundamentais da população negra nem aborda as preocupações com os efeitos das mudanças climáticas.
“Em relação ao saneamento básico, as mulheres negras (79%) e homens negros (78%) residentes na área urbana de Cuiabá, apresentam a menor proporção de acesso ao esgotamento sanitário adequado (rede de esgoto geral e uso de fossa séptica) se comparada às das pessoas brancas (mulheres – 86% e homens –86%)”, registra o estudo.
SERÁ QUE ESTÁ FALTANDO REFERÊNCIAS, DADOS?
Podemos listar outras organizações negras que há décadas trabalham com a agenda ambiental enfrentando o racismo ambiental no Brasil, como Geledés – Instituto da Mulher Negra, Criola, Cedenpa, Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos – CONAQ, Instituto Omó Nanã, Ocupação Cultural Jeholu, Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e diversas organizações da Coalizão Negra Por Direitos.
Ou organizações e articulações que fazem um trabalho fundamental nos territórios para garantia de vida e direitos, como Caranguejo Tabaiares, Associação Gris Espaço Solidário, Casa Fluminense, Instituto Mapinguari, Coletivo Ibura Mais Cultura, Coletivo Utopia Negra Amapaense, Rede Por Adaptação Antirracista e o Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC).
As organizações predominantemente brancas invisibilizam constantemente as organizações negras e periféricas, nas discussões nacionais ou internacionais. A agenda racial não é agenda de sociedade, ela é localizada, não interessa para a branquitude. Acompanhar de perto o trabalho do movimento negro em negociações internacionais me fez perceber isso de forma mais constante. O racismo velado e a cara feia quando a discussão de raça é levantada nas salas.
Negar o racismo ambiental também é negar a crise climática. Esse negacionismo carregado de racismo, ignora as organizações negras e periféricas, não indica estudos produzidos por pesquisadores negros, fala de desigualdade de forma genérica para captar visibilidade e recursos. Foram os movimentos socioambientais, negros e indígenas que abriram caminho com pé na porta para que a agenda social fosse integrada com a agenda ambiental dentro das discussões e articulações por políticas públicas pela vida e pelo território.
Não há justiça climática sem justiça racial, meus caros. Tenham mais vergonha ao fazer discursos.
Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).