Que Exu Ilumine o Brasil

FONTEPor Paulinho , no TPT Brasil
MB Media/Getty Images

O futebol sempre esteve presente dentro da minha casa. Bem antes de eu estar prestes a realizar o sonho de disputar uma Olimpíada, representando o povo brasileiro e as cores do meu país. Na verdade, bem antes de eu nascer.

Quando minha mãe estava grávida do meu irmão mais velho, ela combinou com meu pai que ele se chamaria Paulo Henrique. Afinal, meu pai se chama Paulo Henrique, e ela gostava do nome.

Então, o Paulo Henrique pai vai até o cartório e registra o Paulo Henrique filho, certo? Que nada. Minha mãe pega a certidão de nascimento e quase cai pra trás ao ver o nome:

ROMÁRIO!

Cara, aí brincou com o perigo… Ela é vascaína fanática! Como o Romário tinha jogado no Flamengo, esse nome não estava nem de longe entre os seus preferidos para batizar um filho. Ela ficou bolada, passou um mês sem falar com meu pai por causa disso.

Mas ele teve a chance de se redimir um ano depois. Quando ela engravidou de mim, resolveu dar o troco. Só de birra, decidiu que eu me chamaria EDMUNDO, em homenagem a um dos maiores ídolos do Vasco. 

No ano em que eu nasci, Romário e Edmundo jogavam juntos no clube. Daria uma bela dupla de irmãos, certo? Vai vendo…

Volta meu pai do cartório e ela já foi logo perguntando:

— Cadê a certidão do Edmundo?

Edmundo? Que Edmundo?

PAULO HENRIQUE! Com um filho de atraso, meu pai finalmente passou o nome dele adiante. Mais um mês sem conversar com minha mãe… Hahaha!

Lá na Vila da Penha, onde sou nascido e criado, o pessoal soube da história e só me chamava de Edmundo. Na minha infância, a gente ficou conhecido no bairro como Romário e Edmundo. Desde moleques, nosso programa favorito era acompanhar meu pai nos campinhos de pelada. 

E foi numa quadra da Vila da Penha que começamos a jogar bola à vera. A partir dali, o futsal virou minha base. Ganhei muito recurso, drible em espaço curto, raciocínio rápido… Aprendi praticamente tudo no salão.

Foto: Cortesia de Paulinho

Aos 8 anos, passei num teste no futsal do Vasco. Como já tava no fim do ano, eles me mandaram para o Madureira e pediram pra eu voltar em janeiro. 

Mas quem disse que eu ia querer sair do Madureira?

Em pouco tempo, formamos uma família naquele time. Eu simplesmente não queria mais ir embora de lá. Toda temporada era o mesmo burburinho. Os quatro clubes grandes do Rio tentavam me levar de qualquer jeito. Mesmo sabendo que tinham mais estrutura, eu recusei vários convites dos quatro entre 2008 e 2011. 

Durante esse período de futsal, conforme você ganha idade, as pessoas vão dizendo: tem que jogar no campo, tem que jogar no campo. Mas eu só queria jogar no Madureira.

Pelo Madureira, eu jogava bola felizão.

Com muito custo, me convenceram a ir jogar campo pelo Vasco. Só que eu coloquei uma condição. Continuaria no futsal do Madureira – sim, pode parecer difícil de entender, mas eu amava esse time. 

Criamos uma conexão perfeita entre jogadores, pais e o pessoal do clube. Família Madureira. Era assim que a gente se referia ao nosso grupo. Jogávamos de igual pra igual com qualquer equipe. Os adversários nos respeitavam. Mas aí os pais do Vasco, que me conheciam do campo, começaram a perturbar meu pai dizendo que eu também precisava jogar pelo futsal deles. 

Uma vez fui campeão pelo Vasco e, no dia seguinte, teria uma semifinal pelo Madureira. Contra o Vasco! Hahaha.

Essa situação foi a gota d’água para o meu pai:

“Te prepara, moleque, que hoje é seu último jogo no Madureira”, ele disse.

Muita coisa passou pela minha cabeça. Eu adorava o ambiente no Madureira, realmente adorava o clube. Mas percebi que já não dava mais para conciliar dois times diferentes. Mesmo assim, eu estava decidido a deixar minha vida no último jogo pela equipe. 

Ganhamos de 4 a 3 do Vasco no tempo normal. Eu fiz quatro gols. Embora a gente tenha perdido na prorrogação, zoei muito os garotos do Vasco que eram meus colegas no campo, como o Miranda e o Laranjeira. Esse foi meu jogo mais marcante no futsal. O jogo do adeus à Família Madureira.

Aos 11 anos, estreei pelo Vasco no salão marcando gol do título em pleno Maracanãzinho. Se eu senti a pressão? Vishhh, pressão foi enfrentar o meu irmão.

Ele jogava pelo Mello Tênis Clube, um time lá da nossa área, na Vila. E o Vasco caiu na mesma chave deles no campeonato. Ou seja, pela primeira vez, teríamos Romário x Edmundo na família. Foi o grande evento do bairro.

Foto: Cortesia de Paulinho

Meu pai era cabeleireiro, tinha um salão bastante famoso na região. O que ele fez? Chamou todos os amigos e a clientela para o jogo. Não contente, ele mandou pintar uma faixa daquelas de pendurar em poste, enorme, dizendo que nos amava e que iria torcer pelos dois filhos.

Para o meu irmão, aquilo não era só uma partida de futebol. Era uma guerra. Ele é o mais competitivo da família. Nós fomos juntos para o jogo, um do lado do outro no banco de trás do carro. Acredita que, quando eu fui puxar papo, ele não quis falar comigo?

— Ih, qual foi?

— Agora não, tô concentrado no jogo.

Pois é, nesse nível de concentração

Ele não quis conversa só porque a gente ia jogar contra. Hahaha!

De repente, meu irmão era o meu rival.

Azar o dele, né? Nós ganhamos e eu marquei duas vezes. No fim da partida, meus pais estavam emocionados, choraram pra caramba, e meu irmão veio me cumprimentar pela vitória. Foi só um jogo.

Cultuar essa filosofia de vida me traz muita energia boa, muito axé.

– Paulinho

Mas, enquanto eu joguei na base do Vasco, nunca era só um jogo quando minha família estava na arquibancada. Além de cabeleireiro, meu pai também era músico. Ele catava os instrumentos, botava dentro da mala e ia pro estádio. Era o chefe da torcida. Minha mãe ficava lá na frente, gritando o tempo todo no alambrado, xingando o juiz e arrumando confusão com a torcida adversária. Cada jogo era uma loucura.

No começo, eu tinha até um pouco de vergonha. Depois me acostumei. Dia de jogo do Vasco, o pessoal já escutava de longe: “Lá vem a torcida do Paulinho”.

Tudo aconteceu muito rápido na minha vida. Eu já jogava no sub-20, mas ainda tinha 16 anos quando o Milton Mendes chegou para comandar o time principal do Vasco. Ele organizou um coletivo de profissional contra sub-20. Com 10 minutos de jogo, ele me troca de time e eu marco um gol de cabeça pelos profissionais.

De noite, apita a mensagem no Whatsapp:

Apresentação no treino do profissional amanhã, às 8h.

Opa, tô dentro!

Contra o Vitória, me tornei o jogador mais jovem a atuar profissionalmente pelo Vasco. O primeiro da geração 2000 a disputar o Brasileirão. Entrei no finalzinho, dei uma assistência e ganhei moral com o grupo. No entanto, para mim, tão jovem, foi um choque estar naquele ambiente. 

Num dia eu tava treinando na base. No outro, entrando em campo em jogo da TV para o país inteiro. Precisei amadurecer nessa convivência com atletas consagrados. Eu tinha idade para ser filho de alguns deles, como Nenê, Luís Fabiano, Breno, Paulão… Com o tempo, fui ficando mais à vontade no meio deles. Mas é fácil notar a diferença entre um recém-chegado da base e um profissional.

Acabava o treino, os jogadores pegavam suas coisas, ia cada um pro seu carro. E eu ficava lá plantado no estacionamento, carregando minha mochilinha.

“Ô, juvena, quer carona?”. A rapaziada tirava onda com a minha cara, porque eu estava ali esperando meu pai me buscar. Nem carteira de motorista eu tinha, que dirá um carro.

De qualquer modo, eu já me dava por satisfeito de fazer parte do grupo principal. Queria estar preparado caso chegasse uma oportunidade. Só não esperava que ela viesse tão depressa. 

Tava de resenha com o Paulo Victor na sala de musculação e o Euriquinho, filho do Eurico Miranda, vira pra gente e manda essa:

“Ó, fica ligado! Acho que vocês vão jogar de titular amanhã.” Falou assim mesmo, na lata.

Primeira vez como titular, camisa 7 do Vasco, contra o Atlético Mineiro de Fred e Robinho, os caras que eu escolhia no videogame. Foi uma viagem no tempo. Mais um choque.

Mas o goleiro Martín Silva me ajudou a controlar a ansiedade. Ele sentou comigo no vestiário antes do jogo e disse pra eu jogar solto. Até hoje, eu me lembro exatamente das palavras dele. 

“Vai pra cima dos laterais! Não tenha medo dos zagueiros. Aproveita o momento. Se a gente perder, a responsabilidade é toda nossa, dos mais velhos, não sua.”

Pô, essa conversa me tirou um peso das costas. Entrei em campo tranquilo para mostrar o que eu sabia.

Pedro Vilela/Getty Images

Marcar dois gols na estreia como titular? Nem nos meus melhores sonhos eu poderia imaginar. Na hora, parece que nada acontece. Não vi nem a bola entrando no segundo gol, pra dizer a verdade. Só no dia seguinte, quando eu cheguei no aeroporto e vi aquele monte de repórter querendo falar comigo, toda minha família no saguão pra me receber, é que a ficha caiu.

Caraca, mermão!! Fiz dois gols em cima do Atlético no Independência. Jogo de Campeonato Brasileiro. Pelo profissional!

Fui capa de todos os jornais. E meu pai comprou todos, posso te garantir. Hehehe!

Joguei menos de um ano pelo time principal antes de me transferir para o Bayer Leverkusen. Apesar do pouco tempo como profissional, passei metade da minha vida ali dentro. Tem muitos atletas que vão jogar lá e não sabem o que é o Vasco. Não sabem da história, muito menos por que a torcida é tão apaixonada, mesmo com o time enfrentando dificuldades.

Na época de seleção de base, a galera pegava no meu pé porque o clube estava na segunda divisão. E eu comprava briga, sempre. Não aceito que ninguém fale mal do Vasco na minha frente. A história do clube é muito bonita, precisa ser respeitada.

O Colégio do Vasco da Gama, então, merece um capítulo à parte. É onde a gente aprende o que faz dessa instituição tão especial. O Vasco é o clube que cresceu por acolher a diversidade e aceitar as diferenças. Eu me identifico plenamente com esses valores.

Thiago Ribeiro/Agif/Gazeta Press

Minha família tem ligação forte com o candomblé e a umbanda. Minha avó, minha mãe, minha tia… É algo que passa de geração para geração. Tenho muito orgulho da minha religião.

Se bem que… Religião, não. 

Prefiro chamar de filosofia de vida. Uma coisa bem pessoal, que toca o meu coração. Sou eu comigo mesmo, entende? Cultuar essa filosofia me traz muita energia boa, muito axé. Como assentado e praticante, vou ao meu pai de santo sempre que estou no Brasil e peço proteção aos orixás, principalmente ao meu Pai Oxóssi e à minha Mãe Iemanjá. 

Exu é o caminho. Procuro saudá-lo antes de cada obrigação, de cada partida.

Laroyé!

Por tudo que nosso país já sofreu, temos não só o preconceito com religiões de matriz africana, mas também de outras naturezas, como de raça, gênero e orientação sexual.

Como uma pessoa que tem voz, eu não posso me dar o direito de permanecer calado. De não me posicionar diante de preconceitos e negligências.

– Paulinho

Hoje, milhares de pessoas me seguem nas redes sociais. Algumas delas me têm como exemplo. Enfim, sou uma pessoa que tem voz.

Justamente por isso, quero que essa corrente de luta contra a discriminação siga se alongando. Não interessa a crença. Cada um pode manifestar sua fé do jeito que bem entender. O que defendo, como uma pessoa que tem voz, é que eu não posso me dar o direito de permanecer calado. De não me posicionar diante de preconceitos e negligências.

Se sou crítico do atual Governo, é porque eu confio na ciência. Todo mundo enxerga o que se passa durante esse um ano e meio de pandemia, todo o descaso com a saúde. Mesmo vivendo em outro continente, tenho pessoas queridas que moram no Brasil. Elas precisam de segurança, de amparo, de vacinas.

Jörg Schüler/Getty Images

Depois que me mudei para a Alemanha, eu descobri que o nosso país ainda pode melhorar em inúmeros aspectos. 

“Ah, tá com a vida ganha…”

Isso é o que muitos dizem sempre que eu manifesto alguma opinião sobre política. 

Não importa se sou um jogador de futebol que atua no exterior. Nada a ver com dinheiro ou patriotismo. Eu faço parte da sociedade. Continuo sendo um cidadão brasileiro, que se emociona ao ouvir o hino nacional.

O esporte me ensinou que, se a gente se unir, nos fortalecemos. Sei da responsabilidade que é representar uma nação gigante. Me sinto muito honrado, desde que cheguei na seleção de base, aos 14 anos. Eu passei por todas as categorias, sei do que estou falando. Posso me considerar um veterano com a amarelinha.

Olho para o escudo e vejo cinco estrelas. São cinco Copas do Mundo. É uma camisa pesada. Quem nunca experimentou o sentimento de vesti-la, jamais poderá imaginar o que significa disputar uma Olimpíada. 

MARTIN BERNETTI/Getty Images

Pra você ter ideia, antes da convocação, eu estava treinando no Rio para manter a forma física durante as férias. Minha família se juntou novamente (dessa vez meu pai não levou os instrumentos) apenas para poder compartilhar a emoção da notícia mais feliz que já recebi.

Paulinho, Bayer Leverkusen.

Foi uma festa quando escutamos meu nome na lista dos convocados para os Jogos de Tóquio. Adivinha de quem foi o primeiro abraço me parabenizando? Dele mesmo: Romário. Meu irmão não virou jogador, mas se tornou meu maior incentivador. É o cara que analisa as partidas comigo, puxa minha orelha, a pessoa que mais pega no meu pé. 

Dentro de casa, a dupla Romário e Edmundo nunca se desfez.

Rezo todos os dias para que Exu ilumine o Brasil e os nossos caminhos. Que os orixás nos deem forças pra buscar essa medalha de ouro. O brilho dela seria um alento para o povo brasileiro após tantos meses de caos no país.

A cada novo desafio, eu acredito ainda mais que nada acontece por acaso. Se estou aqui, é porque fui bem guiado pela minha família, pela Família Madureira, pela formação que tive no Vasco, pela receptividade que encontrei na Seleção… Pela filosofia de vida que eu escolhi seguir.

Nunca foi sorte, sempre foi Exu.

Axé!

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