Que Oxum nos dê olhos de ver Vênus. É ano novo no Céu.

FONTELeandra Silva é Oloya¹, enviado para o Portal Geledés
Foto: Dani Opulesco

São Paulo, 20 de março de 2021
BRASIL. ANO 521 P.E. (Pós- escravidão). Diáspora.

Prólogo.

Pela íris dos teus olhos, sua mais antiga ancestral mira a Lua. Hoje é dia de lembrar. Saudações aos Oris que estão acordados.

Atravessando a mais escura das noites, a contagem dos mortos, o cansaço da alma, a batalha íntima, o absurdo, o surreal, o tremer da carne, a des- ilusão, o dia raiou. E eis que no raiar do dia, às 6h37, o Sol se levanta no grau zero de Áries. Equinócio. Equinox, como no sopro saturnino de Coltrane. No grau zero do fogo cardinal, o Sol abraça Vênus a 29º de Peixes. “A imagem e o gesto, lutar por amor”*. Lua em Gêmeos, que para dar conta do corre, ascende a memória de dias esquecidos, em que nossos ancestrais atravessaram o Atlântico, as senzalas, a peste branca, o assalto a mão armada ao baú de nossos sonhos e aspirações. Lua dos mais brilhantes Oris, engenhosos e solucionáticos, que abriram caminho para o futuro, onde agora, você me lê. Futuro concebido, acreditado, e sustentado no osso. 

Há um céu ancestral lido pelo olho de quem, no breu do convés de um navio negreiro, levantou a cabeça para olhar o firmamento, e munido de alta tecnologia ancestral, se Ori-entou pelas estrelas. Hoje é ano novo porque o Sol deu a volta ao mundo. Um marco. Mas todo dia é dia de nascer. É dia de lembrar.  Convoque seu clã, sua falange, benze o caminho com seu verbo mais sincero. Não, não haverá previsões, meus amores. Apenas uma crônica sobre esse tempo. Uma singela oferenda à Lua, Ya mi Òṣùpá. A mãe do Céu. A lágrima, o leite materno, as vísceras. A memória. A avó. A anciã. O Clã.

Haverá tempo para voltar aqui e dizer por que, e o quanto a astrologia, arte da cura, ciência dos ciclos da vida e da natureza tem bases africanas. Mas hoje, basta dizer que “trago no peito uma estrela brilhante”. Navegou o oceano de uma Lua exaltada, que transborda compromisso de amor aos ancestrais. Os Dogon viram a constelação de Sirius a olho nu. E os Iorubás conceberam o culto à Lua, Ya mi Òṣùpá. O honorável Cheikh Anta Diop, já nos disse sobre o Egito, e a esfinge silenciosa grita: decifre-se ou devore-se. Nem por isso faremos sincretismos rasos, infantilóides. O ano acontece dentro de ciclos infinitamente maiores, e tem regência de Vênus.  Cores e valores na ordem do dia. E é preciso dizer:  Vênus, Afrodite, não é Oxum. Aqui vale a precedência ancestral.  África é berço. Oxum, a matriz, me deu olhos de ver Vênus. São saberes e forças que nascidos da mesma fonte, se separaram como braços de um rio. Segundo o fluxo, volto ao assunto. Hoje, eu sou apenas uma mensageira, cronista de um céu ancestral, posto que minha memória  ascendeu e não falha.

Máscara ritualística do Festival Geledé.

É Tempo de que?

 

“Extra

Resta uma ilusão

Extra

Abra-se cadabra-se a prisão”

Gilberto Gil

Esse é um Tempo adulto. Exige osso, pé no chão e disposição para fazer futuro, lucidez e compromisso com o que realmente importa.  Viveremos para ver a morte do guru. Professores, sacerdotes, juízes, figuras de autoridade em cheque. Transformação radical das instituições, queda de ícones, esvaziamento de causas, por causa da falta de uma verdade que vá além dos discursos ideológicos. Falsas cabeças podem rolar na arena pública.  Se não tiver condições de sustentar o que professa é bom ficar em casa. É preciso osso, para sustentar na realidade, o que se idealiza.  V de Vingança bem disse “as ideias não sangram”, e há quem esteja disposto a esmagar corpos para ver certas ideias acontecerem. Nada de novo. Tudo de novo. Convulsão, contração e sangramento que pode também parir um novo Tempo.  Tempos extremos são também extraordinários. Extra!!! Abra-se cadabra-se o temor!

A grande guerra desse ciclo é venusiana, por mais paradoxal que pareça. É na encruzilhada entre preço e valor.  Valor de Vida e Morte.  Arte ou estética. Arte sem ética? A sereia midiática canta sobre a imunidade de rebanho, mas já sabemos que o destino de rebanhos desemboca direto no matadouro de Oris. Matadouro do brilho nos olhos, matadouro do devir. 

Júpiter e Saturno chamam para a responsabilidade coletiva, mas sem saber quem se é, torna-se apenas mais um no cardume. Esse também é um Tempo de “vá procurar sua turma”. Sabe a diferença entre um bolinho, e um clã? É bom saber.  Estar em coletivos, instituições, só para “não ficar sozinho na hora do recreio”, pelo título, pelo status, vai pesar nas contas afetivas, no autovalor, pode custar dignidades e caminhos.  Coletivos poderosos e realizadores se fazem com indivíduos fortes, expressivos e, devo dizer, cada qual na sua posição. Lidera quem sustenta a capacidade de dar resposta na hora que a vida ferve no front.  Lidera quem serve, e abre caminho.

Há um exercício sofisticado de equilíbrio, assunto de Vênus, entre o indivíduo e o coletivo. Clubes da amizade não dão conta de um desejo de pertencimento que pulsa na alma. Muita energia vital pode ser desperdiçada em bate boca estéril, palavras vazias, caô. Esse é um tempo radical, de extremos, excessos, que pode ser dádiva ou desgraça. Tempo de fazer o que nunca faria, e chegar onde jamais pensaria em chegar. Porque a presença da morte nos obriga a olhar o que importa. Ninguém mente para a morte. 

O espírito desse Tempo, enterra realidades, mata crenças, e nos espreme no esmeril da verdade de alma, de caráter, nos lapida, e de propósito nos provoca. Qual é mesmo seu propósito?

Devo dizer, à luz da astrologia que ninguém nasce na hora errada.  Fomos talhados para esse Tempo. Somos os ancestrais de um futuro que está logo ali. Cada um vive e traduz o espírito do Tempo conforme o que é em essência. As artes, os artistas estão na roda. Artes da cura, artifícios de sobrevivência. Canta para mediocridade subir, diga a logo a que veio, que a vida urge. Ocupe seu posto. Enquanto curo e recupero os pulmões, brindo ao meu Ori. Saúdo meu clã. Partilho contigo a crônica astrológica dessa hora. Espero te encontrar logo ali em 2022, para estourar champanhe, de alma lavada e cabeça erguida.   Para nós essa pátria é má- drasta. Mas Ya mi Òṣùpá é Mãe.  Deu meia noite, mas também deu meio dia! 

Aqui fala Leandra Silva, mensageira de um Céu Ancestral.  Astróloga na diáspora. 

Fêmea fértil, florescendo em Tempos áridos. 

Epílogo

O culto a Òṣùpá é profundo, restrito às mais altas e antigas sacerdotisas. Mas todos podemos louvar e pedir à Lua. Todos temos uma Lua dentro. É bom acompanhar seus ciclos e fases, porque ela é a alma e memória do mundo, a eterna companheira da Terra. Nada chega ao globo terrestre sem o filtro lunar.  O caçador, o pescador, o agricultor não tem êxito sem conhecer os ciclos lunares.  A Yalode, a anciã, a menina, precisam conhecer e ser íntimas das suas Luas. Transcende e ultrapassa gênero. 

Quem quer saber mais, tem uma série de 09 textos no @ceuancestral sobre a Lua. 

 ¹ Leandra Silva é Oloya. Iniciada, discípula  e devota de Ya mi Oya.  Astróloga, bailarina, coreógrafa, atua na criação e condução de processos artísticos a partir de singulares tecnologias ancestrais. É graduada em jornalismo pela UFBA. É membro do programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Negras Femininas, pelo Fundo Baobá, fundadora, diretora e coreógrafa da Cia VERVE de Arte Negra. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

 

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