Que país é esse?

Foto: Marcus Steinmayer

Os novos dados sobre pobreza divulgados pelo IPEA falam em aumento do desemprego e da violência e em queda da renda. Estimam em 53,9 milhões o número de pobres, dos quais 44% são negros e 20,5% são brancos. Isso corresponde a aproximadamente 24 milhões de negros e 11 milhões de brancos. Desse contingente de pobres, 22 milhões encontra-se em condições de indigência.

Suspeito que entre os 11 milhões de brancos pobres, encontram-se muitos como Ronaldo, o Fenômeno, que até se iniciar no futebol também era branco, segundo ele, e pobre, conforme sua história de vida.

Se o número de negros pobres é mais do que o dobro do de brancos pobres, isso significa que ser branco implica em 50% de chances a menos de ser pobre ou indigente no Brasil? Os números indicam que sim, e isso quase equivale a um seguro de vida.

Outra informação que sobressai dos dados é que a distribuição de renda no Brasil só não é pior do que a de Serra Leoa. Já fomos chamados de Belíndia, uma mistura de Bélgica com Índia, agora estamos disputando com Serra Leoa a taça de maior concentração de renda do mundo.

Ocorre que Serra Leoa, segundo dados de 1995, é um país que tem menos de 6 milhões de habitantes, 60% da população vive em situação de pobreza, tem o menor Índice de Desenvolvimento Humano do mundo, e conta com uma expectativa de vida de 35 anos para homens e 38 para mulheres. Porém, é um país que ainda enfrenta o trauma e a devastação de uma guerra civil que durou uma década e que terminou somente em 2002. Encontra-se agora empenhado num processo de reconciliação nacional acompanhado pelas Nações Unidas. A República brasileira, ao contrário, tem mais de 170 milhões de habitantes, uma economia gigantesca quando comparada à daquele país, um território continental, riquezas naturais abundantes, apesar dos desperdícios. É uma nação que já nasceu “reconciliada”, na qual, segundo a lenda, todos são iguais, sem distinção de qualquer natureza, e diferentes povos, religiões, etnias vivem em harmonia, e que desconhece, em sua história, uma guerra civil “oficial”. Ainda assim, consegue ser o país mais próximo em desigualdade de renda desse pequeno país africano com pouco mais de 70.000km², menor que o estado de Santa Catarina. Nem dispõe dos diamantes em profusão que em Serra Leoa são o motivo da cobiça de grupos nacionais, internacionais, guerrilheiros e contrabandistas, grandemente responsáveis pelos conflitos e dificuldades pelas quais passa o país.

Sempre me ocorre a pergunta: se a maioria das pessoas que estão na linha ou abaixo da linha da pobreza no Brasil, fossem brancas, descendentes dos imigrantes europeus, seria possível a permanência, tolerância ou indiferença com os índices de indigência humana a que se encontram submetidas às populações negras e indígenas? Muitos fatos fazem supor que não. Basta lembrar a repercussão e indignação pública que ocorrem quando pessoas brancas de classes médias são vítimas de violência, em relação ao anonimato e indiferença com que, em geral, são tratadas as vítimas cotidianas e anônimas de extermínio, também em geral negras. Desconfio que se tal fosse o caso, outras seriam as políticas públicas desde o início da República, outro seria o problema agrário, se é que houvesse, posto que possivelmente a reforma agrária teria sido realizada, como ocorreu na maioria dos países desenvolvidos, majoritariamente brancos, e outras seriam as opções em termos de desenvolvimento, que dificilmente seria tão concentrador e excludente.

Recorrentemente, diante da divulgação de novos números que indicam as mazelas sociais expressas pelos nossos indicadores sociais, me lembro da frase atribuída a Nelson Rodrigues, segundo a qual “subdesenvolvimento não se improvisa”. Então, ele é intencionalmente produzido. Dentre os múltiplos elementos que concorrem para ele estão, segundo o pesquisador Ricardo Paes de Barros (em seminário promovido pela Care Brasil, em dezembro de 2001), “critérios históricos” por meio dos quais são divididos os recursos federais para a assistência social, fazendo com que “o dinheiro do passado seja dividido como sempre se dividiu” e, “só se vier mais dinheiro é que se pensa nos pobres”. Na análise desses critérios e práticas, usando como exemplo a repartição dos recursos federais voltados para o atendimento de creches entre os estados da Federação, diz Paes de Barros, observou-se que “a última criança atendida em Santa Catarina tinha renda per capita de 50 reais. Em Pernambuco, a renda da criança era de cinco reais. Quem está abaixo da média são Sergipe, Piauí, Ceará, Bahia, Alagoas, Maranhão e Pernambuco. O que é isso? Isso é o Nordeste. Então, o Nordeste é aquele que menos recebe dinheiro”.
Provavelmente, fôssemos um país de inconteste maioria branca, seríamos uma nação com menor concentração de renda, porque não haveria a necessidade de excluir a metade da população da qual a sociedade brasileira sempre tentou se livrar com a ajuda do Estado, por ação ou omissão.

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