Quem ajudou favela na pandemia foi a própria favela, diz cineasta

FONTEUniversa, por Andressa Rovani

A cineasta Naná Prudencio passou os últimos meses circulando pelas áreas periféricas de São Paulo para documentar os efeitos da pandemia do novo coronavírus na realidade das favelas. Dessa experiência, ela traz alguns retratos: o maior medo nas favelas hoje não é o coronavírus, apesar das regiões visitadas figurarem no topo do ranking dos bairros com mais mortes na capital. Os políticos, ela conta, estão aparecendo agora nas vielas. Mas quem ajudou as comunidades durante a quarentena foi quem sempre esteve por lá.

Hoje, às 19h, ela lança “Pandemia do Sistema – O retrato da desigualdade na cidade mais rica do Brasil” documentou a mobilização de moradores e moradoras para ajudar vizinhos e vizinhas durante o período de quarentena em regiões como Sapopemba, Heliópolis, Brasilândia, Capão Redondo, Cidade Ademar, Pedreira e o município de Taboão da Serra.

O filme poderá ser visto na página do portal Alma Preta, no Facebook. A exibição será seguida por um debate com a participação de Douglas Belchior, da Uneafro Brasil, Luana Vieira, gestora-executiva do projeto Comunidade Pagode na Disciplina Jardim Miriam e Raimunda Boaventura, entrevistada no filme. A mediação será de Semayat Oliveira, jornalista e cofundadora do Nós, mulheres da periferia.

A cineasta Naná Prudencio, da Zalika Produções Imagem: Divulgação

Leia a seguir trechos da conversa com Naná.

UNIVERSA: Quando você tomou a decisão de fazer o filme?

NANÁ: Quando começou esse lance de quarentena, eu já sabia que o bicho iria pegar na periferia. As pessoas falavam que só pegava em gente rica, que os casos eram todos no Morumbi [bairro nobre de São Paulo]. Era só quem tinha ido para a Europa. Fazendo meus trabalhos na quebrada, eu falava: ‘Vai chegar aqui’. Eu já estava percebendo porque as lideranças, meus parceiros das favelas, começaram a se mobilizar para ajudar. Pessoas já estavam passando fome pela falta de emprego. E aí, eu comecei a acompanhar e decidi que era preciso registrar o que estava acontecendo, documentar esse momento, que acho que está inflamando a situação da desigualdade neste país. O meu foco é isso: documentar para depois não falarem que a gente estava mentindo, que a gente é doido, que a gente está de mimimi.

Por que você decidiu fazer um filme sobre a pandemia sob o olhar da favela? 

A intenção inicial do filme era essa de denunciar, de tentar fazer as pessoas falarem coisas que talvez elas não falassem para outras mídias. Falar de uma forma mais nossa, trocando ideia mesmo.

O que mais te chamou a atenção durante as filmagens? 

O que mais me chamou a atenção durante as filmagens é ver o quanto —eu sempre fotografei na periferia—, mas dessa vez eu percebi que a galera queria muito falar. Foi tanto que passou do nosso controle o número de personagens dentro do filme, sabe, porque a galera queria muito falar. Muita mulher na quebrada que está fora do filme. Então, o que mais me chamou a atenção é ver a quebrada com vontade de denunciar, com vontade de falar, com vontade de mostrar o banheiro da casa, a cozinha, “mostra meu marido doente”. São coisas que eles escondiam, por ter orgulho periférico. Isso foi o que mais me chamou atenção.

Qual foi o maior desafio nesse processo? 

Está sendo um desafio até hoje. E eu pensei: ‘se eu tenho uma lente da hora, se eu tenho um computador para editar o vídeo, foi porque eu vinha aqui na favela, mostrava. Nunca tive a intenção de fazer trabalhos voltados para as coisas negativas que têm dentro da quebrada. Eu sempre quis mostrar que a quebrada passa fome, mas se ajuda e acho que o filme tem um pouco dessa intenção também. Então eu sabia que era um investimento que não vai fazer bem só para mim. Quem sabe alguém dá uma olhada numa história e decide ajudar? Quem sabe aquela pessoa ganhe mais atenção da própria família, da própria comunidade.

Do que você observou, como a periferia tem encarado a doença? 

A periferia tem encarado a doença de uma forma muito, muito estranha. É tudo ou nada. Tem os que não saem de casa, que só cumprimentam de longe. Já há outros que estão aglomerados nos botecos, sem máscaras, não estão nem aí mesmo, Então acho que a periferia tem lidado com o tudo ou nada, tipo: eu quero me proteger do vírus, mas é preciso trabalhar para comer. Não dá para ficar só de doação do governo. Eu acho que também teve uma contradição muito grande, de famílias felizes com a pandemia. Eu fiquei muito triste com isso. Famílias felizes porque elas viviam com R$ 80 e agora, com a pandemia, acabaram conseguindo o auxílio, que nem todo mundo conseguiu. Mas tem gente que conseguiu e está vivendo com R$ 600. Então para ela, está num luxo. É muito amplo dizer como a periferia está lidando, sabe? Eu acho que cada pessoa está enfrentando de um jeito.

Você mostra que a pandemia expôs problemas muito maiores do que o risco de contaminação. Qual é o maior deles?

Acho que um dos problemas que batem de frente com o coronavírus é a renda mesmo, porque a maioria não está com renda. A galera precisa trabalhar, precisei buscar comida. Tem gente nos bares, nas ruas, mas aglomeração mesmo é em ponto de ônibus e no metrô. A gente só tem deveres. Os direitos a gente vai deixando para depois. Então tem muita família que acabou sendo infectada porque o marido é motorista de busão, porque o cunhado, açougueiro, não parou de trabalhar. Pandemia mostrou que para gente nesse país que não tem nenhum colchãozinho não dá para descansar.

No filme, parece que todo mundo que você encontrou usava máscara, mesmo sem ter muito o que comer. Era assim mesmo?

Os locais que a gente foi são locais que são ligados a projetos, não só de combate à fome, mas combate à desinformação. Elas são pessoas que estão informadas. E a gente exigia a máscara, todas usavam, os filhos também. Essas máscaras, a maioria foi doada pela Cufa (Central Única das Favelas) ou por outros projetos, com efeito formiguinha.

Do que você observou, o auxílio emergencial teve algum impacto nessas famílias?

Como eu já falei, tiveram famílias que pegaram muito e que ficaram muito felizes com os R$ 600. Mas também estão preocupadíssimos em saber se vai ter mais [parcelas do benefício]. Não se sabe quando vai ter R$ 600 de novo. E, pelas favelas em que eu passei, a maioria não pegou [o benefício]. A maioria ficou presa na análise ou nem o cartão do Bolsa Família está regularizado. Porque tem muita gente que tem Bolsa Família, mas está com um problema no cadastro. Ou está com problema no banco e têm esse dinheiro preso. Tem muita gente nessa situação.

Qual é o maior medo da periferia hoje? 

Não é o vírus. No último sábado eu estava numa ação ali, entregando bolachas e uma mulher falou para um garotinho de 5 anos: “Vai pôr a máscara”. Ele não foi. “Quer ver ele entrar rapidinho? Olha a viatura, olha a viatura.” Um moleque de cinco anos! Ele olhou e entrou todo assustado.

Eu acho que a gente tem outras pandemias. Por isso que o filme chama a “Pandemia do Sistema”. E eu acho que isso foi um dos motivos também de fazer o filme, foi perceber que a própria periferia não está de chapéu, sabe o que está acontecendo, sabe que só é muito mais do que Covid-19. Tem “coronatiro”, “coronobia”, tantos coronas aí para enfrentar.

Eu percebo também que as pessoas não estão com nenhum tipo de esperança para o futuro. Isso também mexeu muito comigo. Você vê que a galera naturalizou passar fome, naturalizou morar na beira do rio, “Sempre morei não vai ser agora que vou prum lugar melhor”. No começo estava todo mundo desesperado, agora se durar mais um ano, tudo bem. O brasileiro é ensinado a isso.

Como os paulistanos podem ajudar? 

Acho que cada um pode fazer sua parte, sabe? Eu vejo muita gente falando que não vai doar porque tem político envolvido. Eu não vi político nenhum dentro da periferia. Agora eles começaram a andar, porque já anunciou a data da eleição. Eu vi gente tentando combater a fome, tentando ajudar na higienização de famílias inteiras, na alimentação, na amamentação. Gente querendo ajudar com fralda, absorvente, roupa. Muita coisa pode ajudar. Eu acho que o que o brasileiro precisa, não é só o paulistano, é olhar para o outro com mais compaixão. Falta sabe mais humanização fora, porque lá dentro da favela tem. Quem ajudou a favela na pandemia foi a própria favela, não foi o empresário. O empresário ajudou com seus motivos para ajudar. Quando a gente estiver ajudando para ter seguidor, não está ajudando.

Acho que esse é um recado maior: fazer as pessoas enxergarem o outro de forma mais humana. Não é porque você mora no sobradinho e o cara na viela, que ele é menos que você. Eu acho que nessas ideias que a “Pandemia do Sistema” parte: “nóis só tem nóis, já era”. E esse “nóis” precisa aumentar, se expandir.

 

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